Roberto Anderson: A rua chama

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Oi, chama o moço, que o moço volta. Compro cobre, compro chumbo, alumínio e metal, pego seu fogão velho, sua geladeira velha, sua máquina de lavar velha, seu ar-condicionado velho. O moço tá passando e tá comprando. Oi, chama o moço, que o moço volta. Em seguida, toca uma música de tom evangélico, prometendo uma nova vida, uma nova história, meu bem.

Será uma nova vida para o item a ser reciclado ou para o doador? Se destinada ao primeiro, seria um favor enorme ao meio ambiente. Já ao segundo, considerando a sua boa ação, seria desejável lhe dar a opção da escolha. Nada garante que a nova vida oferecida seja melhor…

Em diversos bairros do Rio essa cantilena chega às janelas dos edifícios. Ela vem de kombis caindo aos pedaços que se confundem com a sucata que recolhem. Deve existir uma organização das kombis velhas a serviço da reciclagem. Elas passam invisíveis pela invisível fiscalização do estado de conservação dos veículos que rodam em nossas ruas. De qualquer forma, fica-se sem saber se algum morador de andares mais altos é capaz de descer correndo com o seu ferro velho a tempo de entregá-lo ao comprador.

Sinais, nem sempre claros para não iniciados, chegam das ruas. São os sons centenários dos vendedores, os verdadeiramente ambulantes, nas ruas de nossa cidade. Ôh vaassoureiiirooo! O vendedor da voz grave e das sílabas alongadas é um clássico que resiste ao tempo. A pé, carregando diversos tipos de vassouras, ele segue existindo nas ruas da cidade. Um herói dos velhos tempos, já que talvez seja o último a, verdadeiramente, ambular a pé. Quem, aparentemente, deixou de circular pelas ruas foi o amolador de facas. O som agudo, estridente, da sua roda de amolar raspando no metal está na memória de muita gente.

Em kombis ou caminhonetes seguem também o vendedor de pamonha e o de abacaxis. O primeiro já sofreu campanhas contrárias pela irritação dos moradores à insistência e à frequência com que passava nas ruas. Já o vendedor de abacaxis estaciona seu caminhão em algum bairro e confia na atratividade do cheiro adocicado do seu produto. Irresistível forma de atrair a clientela. Estratégia semelhante à do vendedor de goiabas, com suas lindas frutas em banquinhas nas esquinas. O homem do abacaxi, assim como o comprador de metais e o vassoureiro são personagens das ruas cariocas desde o século XIX, ou mesmo de antes.

Em O Rio de Janeiro do Meu Tempo, Luís Edmundo faz um relato das diversas profissões ambulantes existentes na cidade do Rio de Janeiro na virada do século XIX ao XX. Ali encontramos o preto fabricante de cestos, hoje talvez substituído pelo homem que conserta cadeiras de palhinha. Ali estão também o vendedor de carvão, o português dos perus, o italiano do peixe, o turco dos fósforos, o vendedor de abacaxis, o vassoureiro, o comprador de metais, o garrafeiro, a negra da canjica, o português que vende empadas nas portas dos teatros, o sorveteiro, o mascate de panos, o doceiro, a baiana e o vendedor de caldo de cana. Este último resiste nas feiras, sempre atraindo enorme clientela. Já os meninos vendedores de jornais, que chegaram a ganhar uma estátua, atualmente localizada na rua Sete de Setembro, encontram-se nas escolas. Finalmente, o trabalho infantil foi banido de nossa legislação.

Então, caro leitor, quando ouvir uma voz de vendedor vindo da rua, não se irrite. Eles estão ali há muito mais tempo do que todos nós.

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Roberto Anderson é professor da PUC-Rio, tendo também ministrado aulas na UFRJ e na Universidade Santa Úrsula. Formou-se em arquitetura e urbanismo pela UFRJ, onde também se doutorou em urbanismo. Trabalhou no setor público boa parte de sua carreira. Atuou na Fundrem, na Secretaria de Estado de Planejamento, na Subprefeitura do Centro, no PDBG, e no Instituto Estadual do Patrimônio Cultural - Inepac, onde chegou à sua direção-geral.

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