40 crianças na cama do Papa

Fortaleza de coragem e Fé, Pio XII salvou 750.000 judeus e permitiu que outras vidas viessem ao mundo em seu quarto de dormir. Albert Einstein, Moshe Sharett e Golda Meir foram explícitos em seu respeito e valorização ao Santo Padre

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Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro - Wikimedia Commons

Ele pertencia à aristocracia romana e à elite intelectual da cidade. Ele falava nove idiomas e, medindo 1,82, pesava apenas 58kg devido ao seu estilo de vida frugal. Suas jornadas de trabalho começavam invariavelmente às seis da manhã, quando seus passarinhos de estimação, voando pelos aposentos papais e logo pousando em seu corpo, o acompanhavam para fazer a barba e logo para repassar os primeiros despachos e ouvir as notícias do dia à mesa de café da manhã. A atividade se estendia até a madrugada. A luz de seu escritório era visível da Praça de São Pedro e, com frequência, as buzinas dos automóveis e os gritos da multidão conseguiam que ele ali aparecesse para dar-lhes as bênçãos nas pequenas horas da noite.

Eugenio Pacelli tornou-se sacerdote aos 23 anos e doutor em direito aos 26. Aos 41 anos foi ordenado bispo sem saber que, naquela mesma exata data de 13 de Maio de 1917, ocorria a aparição de Nossa Senhora de Fátima em Portugal. Este fato haveria de marcá-lo por toda vida.

Naquele mesmo ano de 1917 Eugenio Pacelli foi enviado como núncio apostólico (o equivalente ao cargo de embaixador) para a Baviera, no sul da Alemanha. Eram os anos conturbados da Primeira Guerra Mundial, da derrota seguida de hiperinflação, miséria e convulsão social no país. Naquele contexto de agitação a primeira grande força a se alçar como protesto e alternativa foi o Movimento Comunista. Já em 1919 foi proclamada, por curto tempo, a República Soviética da Baviera. A Nunciatura Apostólica em Munique foi atacada, teve seu automóvel depredado e o próprio Eugenio Pacelli foi ameaçado à mão armada. Ao ocaso do Movimento Comunista na Alemanha sucedeu-se o crescimento do Partido Nazista. Durante os doze anos em que Eugenio Pacelli serviu como núncio no país ele fez 44 discursos públicos oficiais. Destes, em 40 ele teceu severas e explícitas críticas ao Nazismo. A reação foi à altura e, por exemplo, o popularíssimo jornal nazista “Der Stürmer”, de Julius Streicher, deixava clara a hostilidade com artigos e charges contra Eugenio Pacelli e a Igreja Católica. O jornal estava em linha com o que já havia sido dito, por exemplo, por Joseph Goebbels, no sentido de primeiro liquidar os judeus e depois dar conta dos católicos. A fala de Goebbels e a campanha de mídia não eram fortuitas. Já em 1930 um dos principais ideólogos nazistas, Alfred Rosenberg, havia proclamado em seu infame livro “O Mito do Século XX” que a alma alemã teria sido judaizada por causa da Bíblia e da Igreja Católica. Para quem tiver curiosidade de ver contrastes na mentalidade nazista neste sentido, sugiro buscar o pôster de campanha dedicado a Lutero, lançado em 1933.

Em que pese o clima de hostilidade entre a Igreja Católica e o Nazismo, naquele mesmo ano de 1933 seguiu-se a política de concordatas com países, de reconhecimento mútuo diplomático. No caso da Alemanha Nazista isto permitiu que as atividades e cobertura soberanas da Igreja Católica fossem, pelo menos oficialmente, reconhecidas. O Estado da Cidade do Vaticano tinha sido recentemente criado como ente de soberania nacional e juntou-se ao reconhecimento diplomático da Alemanha que já existia por parte dos demais países, como E.U.A, Reino Unido, França etc. A política de concordatas, de reconhecimento diplomático como país, não significou, porém, uma mudança da postura católica. Pelo contrário, demonstrou ser uma valiosa ferramenta para salvar vidas quando estourasse o morticínio. Prova da persistente postura católica é, por exemplo, a publicação da Carta Encíclica “Mit Brennender Sorge” em 1937 que condenava, entre outras coisas, o racismo e o antissemitismo nazistas. Pouco se comenta que esta Carta Encíclica, distribuída em 11 mil paróquias pela Alemanha, foi, à época, provavelmente a única condenação formal de grande impacto emitida contra o Nazismo por parte de um ente com reconhecimento diplomático. Eugenio Pacelli, que havia participado ativamente da redação desta Carta Encíclica, foi eleito papa em 1939 com o nome de Pio XII.

No outono de 1943 as tropas alemãs entraram em Roma. O chefe da Gestapo Herbert Kappler exigiu então à comunidade judaica da cidade 50 quilos de ouro, com a ameaça de deportar duzentas pessoas caso não entregassem. A comunidade judaica, porém, conseguiu reunir apenas 35 quilos de ouro. Ao tomar ciência da situação, Eugenio Pacelli, o Papa Pio XII, se ofereceu a fornecer os 15 quilos faltantes, que seriam obtidos a partir do derretimento de cálices e pertences sacros das igrejas da cidade. Finalmente, foram os fiéis católicos de Roma que intervieram decisivamente e contribuíram com uma quantidade superior ao que faltava. Este ouro excedente, aliás, finda a guerra, foi doado para o futuro Estado de Israel.

Ao receber o carregamento de ouro o Obersturmbannführer Herbet Kappler cumpriu com sua promessa de não deportar este contingente de judeus mas, de forma vil, mandou prender a todos. Foi então que Eugenio Pacelli, Pio XII, interveio novamente e, botando todas as suas cartas na mesa, conseguiu a soltura ante o General Reiner Stahel. Foi à partir daí que a comunidade judaica de Roma, em peso, se refugiou na Igreja. Estima-se que apenas em Roma 155 conventos e mosteiros abrigaram judeus e a lista de refúgios incluiu a Universidade Pontifícia Gregoriana e até mesmo o Instituto Bíblico, que passou a ser a residência emergencial de 60 pessoas. O mais emblemático de todos os refúgios foi a residência de verão dos papas, Castel Gandolfo, que abrigou mais de mil pessoas. E foi então que, na necessidade e no improviso, o quarto do papa virou uma maternidade. E, na cama do papa, quarenta crianças de ascendência judaica vieram ao mundo durante aquele tempo.

Daria para contar ainda como Eugenio Pacelli, Pio XII, interveio para salvar Roma da completa destruição, o que teria sido mais um possível crime de guerra dos aliados na sua lista de cidades de patrimônio cultural universal varridas do mapa sem justificativa militar. Daria para contar também como, ao invés de se esconder no bunker como insistiam, ele correu, sem máscara e sem álcool gel, para acompanhar o povo durante um bombardeio. A foto deste momento, de Eugenio Pacelli bravamente levantando os braços em meio à multidão, animando-a a pedir proteção divina e a intercessão de Nossa Senhora, enquanto caiam as bombas ao redor da arruinada Igreja de São Lourenço Extramuros é, talvez, um dos registros mais emocionantes do Século XX. Um mês depois deste acontecimento, em Agosto de 1943, Eugenio Pacelli ganhou a capa da revista Time Magazine.

Seria interessantíssimo também divagar acerca do plano nazista de sequestrar Eugenio Pacelli. Houve o anúncio da Radio da Republica de Saló em 7 de Outubro de 1942 e o relato do oficial da SS Karl Wolff acerca dos detalhes, entre tantas outras evidencias. Havia também uma carta de renúncia já assinada que seria divulgada caso o sequestro de fato ocorresse, privando assim os nazistas do “prêmio” de levar um papa preso.

O mais valioso, porém, é concluir com o impressionante saldo de salvação de vidas em meio ao morticínio e do genocídio da época. O diplomata e historiador Israelense Pinchas Lapide estima em 750.000 judeus salvos pela intervenção de Eugenio Pacelli, Pio XII. Este é um número que poderia ainda ser maior. Houve também tratativas nas quais o papa operou mais discretamente. Para citar apenas um exemplo, Eugenio Pacelli, Pio XII, coordenou com o General Francisco Franco da Espanha para que este aplicasse mais do que generosamente uma lei da Primeira República, de concessão de passaportes para descendentes de Sefarditas. Assim, por exemplo, na Hungria, um significativo contingente de judeus se livrou dos campos de concentração, pela saída de um inesperado passaporte espanhol em mãos.

É provável que Eugenio Pacelli, Pio XII, além de fiel Guardião da Igreja Católica, também tenha sido o maior protetor dos judeus durante a guerra. De acordo com Gary Krupp, o empresário judeu que criou a “Pave the Way Foundation”, um quarto da população judaica mundial estaria atualmente viva devido à heroica atuação deste papa. Contemporâneos como Albert Einstein, o Rabino Chefe de Israel, Isaac Herzog, ou Primeiro-Ministros como Moshe Sharett e Golda Meir foram explícitos em seu respeito e valorização do Santo Padre. A campanha que posteriormente colou em Eugenio Pacelli, Pio XII, rótulos como o “Papa de Hitler” e “Papa Nazista”, e que continua até hoje, mostra a extensão da perfídia engenhosamente propagada, cuja possível origem e objetivos deixo ao critério do caro leitor.

Há muitas reflexões possíveis acerca desta fascinante trajetória do Homem, do Sacerdote e do Líder que foi Eugenio Pacelli, Pio XII. Destaco apenas uma, que caberia como imagem na foto dos braços bravamente estendidos, em meio ao povo, sob o bombardeio. Em palavras, esta única reflexão se encontraria aqui mesmo no Brasil pelas mãos do escritor Guimarães Rosa que conclui sucintamente: “A vida….o que ela quer da gente é coragem.”

Nota:

As informações acima podem ser livremente constatadas pela internet. Destaco também duas recomendações de leitura, ainda que não estejam publicadas em Português: as memórias da Irmã Pacalina Lehnert que no seu livro “His Humble Servant”, descreve as décadas de convivência próxima com Eugenio Pacelli. E o excelente livro de Ernesto Garcia Vicente: “Pio XII, El Papa Maldito” que traz um prodigioso esforço de pesquisa e síntese.

Versão em inglês:

Forty Children in the Pope´s Bed

He belonged to the Roman aristocracy and the intellectual elite of the city. He spoke nine languages and, standing 1.82 meters tall, weighed only 58 kg due to his frugal lifestyle. His workdays invariably began at six in the morning, when his pet birds, flying through the papal chambers and soon perching on him, accompanied him while he shaved, reviewed early dispatches, and heard the day’s news over breakfast. His activities extended into the early hours of the morning. The light in his office was visible from St. Peter’s Square, and often, the honking of cars and the shouts of the crowd would bring him out to bless them late at night.

Eugenio Pacelli became a priest at 23 and earned a doctorate in law by 26. At 41, he was consecrated a bishop without knowing that on that same date, May 13, 1917, the apparition of Our Lady of Fatima was taking place in Portugal—a fact that would mark him for life.

In 1917, Eugenio Pacelli was sent as Apostolic Nuncio (the Holy See’s equivalent to an ambassador) to Bavaria, southern Germany. These were the turbulent years of World War I, followed by defeat, hyperinflation, misery and social upheaval in the country. In this context of unrest, the first major force to rise in protest and as an alternative was the Communist Movement. By 1919, for a brief period, the Communist Movement proclaimed the Bavarian Soviet Republic. The Apostolic Nunciature in Munich was attacked, its car vandalized, and Eugenio Pacelli himself was threatened at gunpoint.

With the decline of the Communist Movement in Germany came the rise of the Nazi Party. During his 12 years as Nuncio in the country, Eugenio Pacelli delivered 44 official public speeches, 40 of which contained severe and explicit criticisms of Nazism. The reaction was harsh, exemplified by the popular Nazi newspaper Der Stürmer, edited by Julius Streicher, which published hostile articles and cartoons against Pacelli and the Catholic Church. The newspaper echoed previous statements by Joseph Goebbels—the liquidations of Jews would come first, then they would tackle the Catholics. Goebbels’ speech and the media campaign were not random. As early as 1930, one of the main Nazi ideologists, Alfred Rosenberg, had proclaimed in his infamous book The Myth of the Twentieth Century that the German soul had been Judaized by the Bible and the Catholic Church. For those curious about contrasting Nazi viewpoints, I suggest looking at the campaign poster dedicated to Luther, released in 1933.

Despite the hostile climate between the Catholic Church and Nazism, in 1933 the policy of concordats with nations followed, establishing mutual diplomatic recognition. In Nazi Germany’s case, this allowed the Catholic Church’s presence and activities to be officially recognized on increasingly hostile terrain. The Vatican City State, a recent creation as a sovereign entity, thus joined the diplomatic recognition of Germany already granted by countries like the U.S., the UK, France, etc. The policy of concordats did not trigger a shift in the Catholic stance however. One example of the resoluteness of Catholic stance is the 1937 Encyclical Letter Mit Brennender Sorge, which condemned, among other things, Nazi anti-Semitism and racism. It is often overlooked that this Encyclical Letter, distributed across 11,000 parishes in Germany, was likely the only formal condemnation of Nazism by a diplomatically recognized entity at the time. Eugenio Pacelli, who had actively participated in the drafting of this Encyclical Letter, was elected pope in 1939 under the name Pius XII.

In autumn 1943, German troops entered Rome. Gestapo chief Herbert Kappler demanded 50 kilos of gold from the city’s Jewish community, threatening to deport 200 people if it wasn’t delivered. The Jewish community managed to gather only 35 kilos. Upon learning of the situation, Eugenio Pacelli, Pope Pius XII, offered to provide the remaining 15 kilos by means of melting chalices and sacred items from the city’s churches. Ultimately, devout Roman Catholics decisively contributed with more than the required amount. The surplus gold was donated after the war to the future State of Israel.

After receiving the gold, SS-Obersturmbannführer Herbert Kappler kept his promise not to deport that group of Jews but, treacherously, had them instead arrested. Eugenio Pacelli intervened again and, playing all his cards, successfully appealed to General Reiner Stahel and secured their release. From then on, Rome’s Jewish community sought refuge in the Church. It is estimated that 155 convents and monasteries in Rome alone sheltered Jews, including the Pontifical Gregorian University and even the Biblical Institute, which became an emergency shelter for about 60 people. The most symbolic refuge was the Pope’s summer residence, Castel Gandolfo, which sheltered over a thousand people. There, the Pope’s private quarters became a maternity ward and, on Eugenio Pacelli´s bed, 40 Jewish children were born during that time.

One could recount how Eugenio Pacelli intervened to save Rome from destruction—it would have been another potential war crime by the Allies, the erasing off the map, without proper military justification, of a world heritage city. One could also recall how instead of hiding in a bunker, as advised, he ran to aid the people during a bombing without wearing a mask and without any hand sanitizer. A photograph of this moment, showing Pacelli bravely raising his arms among the crowd, encouraging them to seek divine protection and the intercession of Our Lady as bombs fell around the ruined Basilica of Saint Lawrence Outside the Walls is perhaps one of the most moving records of the 20th century. A month later, in August 1943, he was on the cover of Time Magazine. It would also be intriguing to delve into the Nazi plot to kidnap Eugenio Pacelli, as broadcasted on October 7, 1942 on the radio of the Republic of Salò, and further corroborated by SS Officer Karl Wolff’s accounts. Pacelli signed, as a precaution, a resignation letter to deny the Nazis the “prize” of capturing a Pope in case the plot to kidnap him would take place and succeed.

 However, the most valuable takeaway is the remarkable tally of lives saved during that era’s genocide. Israeli diplomat and historian Pinchas Lapide estimates that 750,000 Jews were rescued due to Pacelli’s intervention. Gary Krupp, a Jewish entrepreneur and founder of the “Pave the Way Foundation,” posits that a quarter of the world’s Jewish population owes their lives to Pacelli’s heroic actions. Yet, those figures could be, significantly higher as there were also negotiations in which the pope operated more discreetly. To cite just one example, Eugenio Pacelli, Pius XII, coordinated with General Francisco Franco of Spain to apply, more than generously, a law from the First Republic that granted passports to descendants of Sephardic Jews. Thus, for instance, in Hungary, a significant number of Jews escaped the concentration camps by means of an unexpected Spanish passport in their hands. It is likely that Eugenio Pacelli, Pius XII, in addition to being a faithful Guardian of the Catholic Church, was, perhaps, also the greatest protector of the Jews during the war. Contemporary figures like Albert Einstein, Israel’s Chief Rabbi Isaac Herzog, and Prime Ministers Moshe Sharett and Golda Meir explicitly praised Pius XII. The later campaign labeling him “Hitler’s Pope” or “Nazi Pope” underscores the extent of ingeniously propagated slander, whose origins and objectives I leave to the reader’s discernment.

Eugenio Pacelli’s extraordinary journey as a Man, as a Priest and as a Leader allow for a vast array of insights. If I were to pick just a single one it would fit as an image in that moment he held his arms bravely raised among the people during the bombing of Rome. And, if I were to put this single insight into words, I´d recall the Brazilian writer Guimarães Rosa: “Life… all it asks of us is courage.”

Note:

The information above can be freely verified on the internet. I also highlight two reading recommendations: the memoirs of Sister Pascalina Lehnert, who in her book His Humble Servant describes decades of close coexistence with Eugenio Pacelli and the excellent book, a truly remarkable effort in research and synthesis, by Ernesto Garcia Vicente, Pio XII, El Papa Maldito.

*Olav Schrader é especialista em patrimônio cultural, escritor, palestrante, consultor e gestor de projetos. Tem Bachelor´s Degree e M.A. – Master of Arts pela Universidade de Amsterdam, Reino dos Países Baixos e Diploma de Pós-Graduação pela Universidade de Deusto, Espanha, na área de Relações Internacionais, com ênfase em História e Cultura. Desde 2006, participa de projetos ligados ao Patrimônio Cultural Brasileiro. Foi superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional no Rio de Janeiro, de  2020 a 2023. Olav Schrader  recebeu diversas distinções, entre elas: Medalha de Mérito da Biblioteca Nacional, Voto de Louvor e Reconhecimento da Câmara Municipal do Rio de Janeiro e Diploma de Amigo do Instituto Militar de Engenharia.  Schrader é Cavaleiro da Pontifícia Ordem Equestre do Santo Sepulcro de Jerusalém etc.

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