O Hino Presidencial Argentino é de uma partitura brasileira capturada em batalha. O Brasil até hoje não fez um aceno ao país vizinho para um exame grafológico que confirmasse a autoria. Assim, continuaremos sem saber se o hino tocado na Casa Rosada é realmente de Pedro I. O mistério de 1827 continua.
Esta já era uma guerra herdada, da época em que espanhóis e portugueses se enfrentavam numa área que se estendia da desembocadura do Rio da Prata, no que hoje é aproximadamente o território do Uruguai, até o Sul do Brasil. Por aquelas bandas, às margens orientais da foz do Rio da Prata, está a cidade de Colônia do Sacramento que, sob domínio português, provocava notáveis prejuízos ao Império Espanhol por estar fora de sua jurisdição de arrecadação de impostos. Sob domínio português, Colônia do Sacramento era de certa forma similar a uma zona franca e contava com todo um sistema de túneis para a logística do comércio e do contrabando. Para quem morava em Buenos Aires, na margem oposta do rio, sempre haveria a tentação de escapar do fisco espanhol e cruzar para o lado português em busca de melhores preços.
Nas disputas entre Portugal e Espanha, Colônia do Sacramento foi destruída algumas vezes e em diversas ocasiões mudou de mãos. Mas nem tudo foram prejuízos ao fisco, disputas armadas e a geopolítica do controle da desembocadura do Rio da Prata. A cidade de Colônia do Sacramento tem também um valor simbólico para nós e para a luta por liberdade de expressão. Foi lá que, em 1774, nasceu Hipólito da Costa quem, mais tarde, fundou em Londres aquele que é considerado o primeiro jornal brasileiro da história, o “Correio Braziliense” que era publicado no exílio.
A disputa por Colônia do Sacramento, pelo atual território do Uruguai e por parte do Rio Grande do Sul que ocorria entre Portugal e Espanha foi depois assumida pela República Argentina e pelo Império do Brasil. No saldo geral desta guerra, que se popularizou com o nome de Guerra Cisplatina, o Império do Brasil levou a pior e o seu momento mais dramático foi talvez a pouco lembrada e surpreendente Batalha de Ituzaingó. Incrivelmente, os ecos desta batalha ressoam, literalmente, até hoje.
Era o dia de 20 de Fevereiro de 1827 e tudo indicava que o Império do Brasil sairia vitorioso na Batalha de Ituzaingó que ocorreu próximo da cidade de Rosário no Rio Grande do Sul e que no Brasil ficou também conhecida como a Batalha do Passo do Rosário. Tínhamos vantagem de posição mais favorável no campo de batalha. Tínhamos vantagem de números também, especialmente após o Imperador Habsburgo Francisco José, sogro de Pedro I, enviar reforços de militares da Europa sob o comando do General Braun. O comando supremo das tropas brasileiras havia sido confiado ao Marquês de Barbacena a quem, além da liderança, o Imperador também tinha confiado uma partitura que deveria ser tocada como marcha da vitória. Como é sabido, Pedro I era também um compositor mais do que respeitável. E, enquanto sua obra musical vai sendo resgatada aos poucos, o nosso Hino da Independência que foi composto às pressas pelo Imperador se mantêm popular e inspirador até nossos dias.
Voltando ao campo de batalha as tropas argentinas, além de estarem em desvantagem, também ameaçaram se rebelar por conta da sucessão confusa e imprevisível de ordens e contraordens de seu comandante, Carlos Maria de Alvear. O oficialato envolvido no que seria a iminente Batalha de Ituzaingó estava descontente e desorientado. Entre os oficiais descontentes havia um famoso francês, Carlos Luís Frederico de Brandsen, um veterano de guerra que por sua bravura e audácia fora pessoalmente condecorado por Napoleão Bonaparte nos campos de batalha da Europa. Após uma última atuação militar durante o Governo dos Cem Dias de Napoleão, Brandsen foi para as Américas, seu corpo cheio de cicatrizes, para seguir sua carreira revolucionária. Ele se distinguiu por bravura ao lado dos revolucionários de Simon Bolívar e, mais tarde, obteve o reconhecimento de José de San Martin da Argentina que o promoveu ao coronelato.
As tropas brasileiras estavam fortemente entrincheiradas e eram protegidas por um fosso. Sob qualquer ótica militar, a cavalaria argentina não teria praticamente nenhuma outra possibilidade a não ser virar um alvo fácil e ser dizimada caso arriscasse um ataque frontal. E eis que o caprichoso e volúvel comandante argentino Carlos Maria de Alvear teve a ideia de fazer exatamente isto. Foi uma amarga surpresa para o condecorado veterano francês, o Coronel Brandsen, saber que seu desafeto declarado lhe ordenava a cavalgar para a morte. O Coronel Brandsen não tardou a criticar seu comandante, fazendo notar que aquela ordem equivalia a uma claríssima missão suicida para ele e para seu regimento. Há relatos que o Comandante Alvear ficou indignado com a crítica de Brandsen e alfinetou o orgulho e o ego do francês, afirmando que este jamais teria questionado uma ordem de Napoleão Bonaparte. Supostamente ferido em seus brios Brandsen acabou obedecendo e, resignado, ele e seu regimento cavalgaram para o previsível sacrifício. O que era menos previsível é que esta missão suicida de Brandsen provocou um desencadeamento de acontecimentos que culminou com um descuido fatal das tropas brasileiras. Concluída a missão suicida e dizimados Brandsen e seu regimento, as tropas argentinas simularam retirar-se do campo de batalha. E foi aí, neste grave erro de avaliação, que as tropas brasileiras abandonaram suas posições seguras e se dispersaram em grupos menores, crentes que perseguiam um inimigo moribundo e derrotado que debandava em desordem. Havendo desperdiçado a vantagem das posições e dos números, os contingentes menores de tropas brasileiras que se espalharam a descoberto pelo campo foram vencidos em emboscada argentina. Em poucas palavras foi assim que o Império do Brasil deixou escapar uma vitória provável, que talvez reconfigurasse o mapa que temos hoje.
Em meio ao material que as tropas brasileiras abandonaram no campo de batalha estava o cofre do Marquês de Barbacena. E neste cofre os argentinos encontraram aquela partitura que D. Pedro I teria dado para celebrar musicalmente a vitória brasileira que não ocorreu. A partitura foi então levada como espólio de guerra para Buenos Aires e recebeu o nome de “Marcha de Ituzaingó” em homenagem ao surpreendente êxito argentino. Para enaltecer ainda mais o feito, a “Marcha de Ituzaingó” foi adotada como Hino Presidencial Argentino para ser tocada nos seus atos oficiais e assim continua até hoje. Há de se reconhecer ao menos a delicadeza do protocolo argentino, que tem o bom senso de não tocar nesta velha ferida desnecessariamente. Na presença de representantes brasileiros em eventos oficiais da presidência da Argentina, evita-se, excepcionalmente, tocar esta marcha. É compreensível que expor a sua origem histórica poderia azedar injustificadamente as boas relações.
Pessoalmente, ainda que não possa confirmar, creio que a peça musical encontrada naquele cofre deixado no campo de batalha tem boas chances de ser de autoria de Pedro I. A importância geopolítica daquele conflito e o expediente de compositor do nosso Imperador justificariam apostar neste gesto que seria tão simbólico e marcante para endossar uma eventual vitória brasileira. Numa brevíssima conversa com Rosana Lanzelotte, que é pesquisadora e especialista no assunto, soube que esta dúvida sobre a autoria da partitura poderia ser de fato esclarecida se o Brasil pedisse à Casa Rosada o manuscrito original, ou uma boa cópia dele, para análise grafológica. O porquê isto nunca ocorreu é um mistério dentro de outro mistério que já dura quase duzentos anos.
Enquanto não se desvenda o mistério sugiro uma interessante dica de turismo em Buenos Aires, no famoso Cemitério da Recoleta. Quis uma ironia atroz do destino que o Comandante Carlos Maria de Alvear fosse sepultado em frente ao Coronel Brandsen, que ele ordenou cavalgar para a morte no campo de batalha. Os dois desafetos declarados, um carrasco do outro, acabaram se encarando de perto na eternidade e na lembrança da batalha que nos fez perder para a Argentina uma melodia que esquecemos.
Nota: Informações sobre a batalha podem ser facilmente consultadas online. Sugeriria, em especial, também buscar a música sob “Marcha de Ituzaingó” ou “Himno Presidencial Argentino” para que cada um tire suas conclusões sobre uma possível autoria de Pedro I. Finalmente, há também um artigo no jornal argentino “Infobae”, de Adrián Pignatelli, no qual os principais eventos da batalha são excelentemente bem narrados.
Versão em inglês:
The Suicide Mission and the Score’s Seizure The Argentine Presidential Anthem originates from a Brazilian musical score captured in battle. To this day, Brazil has not approached the neighboring country to conduct a handwriting analysis that could confirm its authorship. As a result, we remain uncertain whether the anthem played in the Casa Rosada is truly a composition by Emperor Pedro I. The mystery of 1827 lingers on.
ever-present
The historical origins of the conflict trace back to the period when Spaniards and Portuguese clashed over a region extending from the mouth of the Río de la Plata (the River Plate)—now approximately the territory of Uruguay—to southern Brazil. On the eastern bank of the river’s mouth lies Colonia do Sacramento, a Portuguese-held city that inflicted significant losses on the Spanish Empire by operating outside its tax collection jurisdiction. Under Portuguese control, Colonia functioned somewhat like a free trade zone, equipped with a tunnel system facilitating commerce and smuggling. For residents of Buenos Aires, on the opposite riverbank, the temptation to evade Spanish taxes and seek better prices in Portuguese territory was ever-present.
Throughout the disputes between Portugal and Spain, Colonia was destroyed and changed hands multiple times. However, the city’s significance extends beyond financial losses, armed conflicts and geopolitical struggles over the River Plate´s estuary. Colonia also holds symbolic importance in Brazil’s pursuit of freedom of expression. In 1774, it was the birthplace of Hipólito da Costa, founder of the “Correio Braziliense”, the first Brazilian newspaper, published in exile in London.
The struggle for Colonia—located in what is now Uruguay—and parts of Rio Grande do Sul in Southern Brazil, initially contested between Portugal and Spain, was later continued by the Argentinian Republic and the Brazilian Empire. The Cisplatine War, as it came to be known, ended poorly for Brazil, with its most dramatic moment arguably being the lesser-known and yet surprising Battle of Ituzaingó. The echoes of this battle literally resonate to this day.
On February 20, 1827, the Brazilian Empire seemed poised for victory in the Battle of Ituzaingó, fought near the town of Rosario in Rio Grande do Sul (In Brazil, this fight is also known as the Battle of Passo do Rosário). Brazilian forces held advantageous positions and outnumbered their Argentine opponents, particularly after Emperor Pedro I’s father-in-law, Habsburg Emperor Francis I, sent European reinforcements under General Braun. The supreme command of the Brazilian troops was assigned to the Marquis of Barbacena, to whom the Emperor also entrusted a musical score meant to be performed as a victory march. A respected composer, Pedro I’s musical oeuvre remains iconic and continues to be rediscovered, with his hastily composed Brazilian Independence Anthem still widely celebrated and inspiringly popular to this day.
Back to the battlefield, the Argentine troops—already at a significant disadvantage— threatened to rebel due to the chaotic and unpredictable succession of orders and counterorders from their commander, Carlos María de Alvear. The officers, about to face the imminent Battle of Ituzaingó, were both discontented and disoriented. Among the disgruntled officers was the renowned Frenchman Charles Louis Frédéric de Brandsen, a war veteran personally decorated by Napoleon Bonaparte. After a final military engagement during Napoleon’s Hundred Days’ reign, Brandsen, his body marked with battle scars, journeyed to the Americas to continue his revolutionary career. He distinguished himself through bravery alongside Simón Bolívar’s revolutionaries and later earned recognition from Argentina’s José de San Martín, who promoted him to the rank of colonel.
The Brazilian troops were strongly entrenched and protected by a ditch. From any military perspective, the Argentine cavalry had virtually no other option but to become an easy target and be decimated if it attempted a frontal assault. Yet, the capricious and unpredictable Argentine commander Carlos Maria de Alvear came up with the idea of doing exactly that. It came as a bitter shock to the decorated French veteran, Colonel Brandsen, to discover that his sworn antagonist had ordered him to ride to his death. Colonel Brandsen promptly criticized his commander, emphasizing that the order was unmistakably a suicide mission for both him and his regiment. According to some accounts, Commander Alvear was incensed by Brandsen’s criticism and taunted the Frenchman’s pride and ego, asserting that he would never have dared to question an order from Napoleon Bonaparte. Supposedly wounded in his pride, Brandsen ultimately obeyed, and with resignation, he and his regiment rode toward their inevitable sacrifice. Unexpectedly, this sacrificial act set off a chain of events that turned the tide of the battle. After Brandsen’s regiment was decimated, the Argentine forces feigned a retreat, triggering a critical misjudgment by the Brazilian troops. They abandoned their secure positions and scattered into smaller groups, believing they were pursuing a defeated, dying enemy retreating in disarray. Having squandered their advantage in position and numbers, the smaller Brazilian contingents that spread out across the open field were defeated in an Argentine ambush. In short, this is how the Brazilian Empire missed a likely victory, one that could have potentially reshaped the map as we know it today.
Among the military gear and supplies abandoned by the Brazilian troops on the battlefield was the chest belonging to the Marquis of Barbacena. Inside it, the Argentines discovered the musical score that Emperor Pedro I had intended to be played to commemorate a Brazilian victory that never materialized. The score was then taken as war booty to Buenos Aires and was named the “Marcha de Ituzaingó”, emphasizing Argentina’s surprising victory. To further honor the feat, the ‘Marcha de Ituzaingó’ was adopted as the Argentine Presidential Anthem for official ceremonies, a tradition that continues to this day. One must acknowledge the Argentine protocol’s tact however, as it thoughtfully refrains from reopening this old wound unnecessarily. When Brazilian representatives attend an Argentine presidential event, the march is exceptionally omitted from the ceremony. It is understandable that revealing its Brazilian origin and historical context could needlessly sour what would otherwise be excellent diplomatic relations.
Though unconfirmed, I believe the score found in the Marquis of Barbacena’s chest was likely Pedro I’s work. The geopolitical significance of that conflict, combined with our Emperor’s talent as a composer, would justify the assumption that this gesture would have been both deeply symbolic and impactful in supporting a potential Brazilian victory. In a brief conversation with Rosana Lanzelotte, a researcher and expert on the subject, I learned that the question of the score’s authorship could indeed be resolved if Brazil requested the original manuscript—or a reliable copy—from the Casa Rosada for handwriting analysis. Why this has never happened remains a mystery within another mystery that has endured for nearly two centuries.
While the mystery remains unsolved, here’s an intriguing travel suggestion in Buenos Aires: a visit to the renowned Recoleta Cemetery. In a bizarre twist of fate, Commander Carlos María de Alvear was buried directly across from Colonel Brandsen—the very man he ordered to ride to his death on the battlefield. The two sworn adversaries, now facing each other in eternity, remain a lasting reminder of the battle in which Brazil lost to Argentina a melody now long forgotten in our nation.
Note: Information about the battle can be easily found online. I would particularly suggest looking up the historical tunes under ‘Marcha de Ituzaingó’ or ‘Himno Presidencial Argentino’ to get a sense of the possible authorship by Emperor Pedro I. Additionally, an article by Adrián Pignatelli in Argentina’s Infobae newspaper provides an excellent account of the key events of the battle.
Olav Schrader:
Olav Schrader é especialista em patrimônio cultural, escritor, palestrante, consultor e gestor de projetos. Tem Bachelor´s Degree e M.A. – Master of Arts pela Universidade de Amsterdam, Reino dos Países Baixos e Diploma de Pós-Graduação pela Universidade de Deusto, Espanha, na área de Relações Internacionais, com ênfase em História e Cultura. Desde 2006, participa de projetos ligados ao Patrimônio Cultural Brasileiro. Foi superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional no Rio de Janeiro, de 2020 a 2023.