Vejo alguns aspectos na premiação de Dylan como Prêmio Nobel de Literatura.
Como eu mesmo disse no ensaio sobre música e literatura, a música possui significantes específicos que lhe são intrínsecos. Ao traduzir, por exemplo (e a tradução é uma excelente “prova dos nove” para haurirmos elementos literais e literários de um texto oral ou escrito), muitas vezes tenho de me prender mais à métrica e à prosódia do que à conotação, à polissemia, às metáforas e metonímias, à literariedade do texto, em resumo. Isso porque o encaixe semiótico da letra de música, ao lado de poder ser poesia (nem se discute isso), necessita aderir ao significante do compasso da música, seu ritmo e pausas, o que recai sobre a métrica e a prosódia de que falei.
Este seria um aspecto, digamos, técnico, mas nem por isso menos importante.
A questão que foi levantada amiúde foi sobre os possíveis “critérios” para a premiação de Dylan.
Ora, os critérios, como brinquei em entrevistas que já dei, estão simplesmente “blowin´ in the wind”.
É bom lembrar que, na Europa e Estados Unidos, há certa distinção entre literatura e poesia. Na Bélgica, por exemplo, onde dou aula, são gêneros com estudos muito aprofundados e específicos. Há Universidades, como a de Nüremberg, que dispõem de programas de estudos sobre “interpretação de letras em canções eruditas e populares”. A poesia poderia englobar a música cantada, que, como eu mostrei, pode ir para além (ou aquém) do texto poético. E já nem é preciso que se debata que, no fundo, todas as artes provêm da alma humana, naquilo que Nietzsche, para citar apenas um dos interessados nessa interseção, mostrou ao afirmar: “A arte existe para tornar a vida suportável”.
É inegável que a vitória de Dylan constitui uma quebra de paradigmas, nas acepções científicas de Popper, Kuhn e Feyerabend. A propósito disso, quando os primeiros prêmios Nobel de Literatura foram dados a poetas (como Prudhomme), e não a prosadores, tratou-se, também, de uma quebra de paradigmas, de uma abertura, tendo em vista que, como eu disse, literatura e poesia se distinguem, desde sempre, na Europa. Tratou-se de uma tentativa de mostrar-se que, ali, se premiavam as letras tout court.
Então, pelo ponto de vista da ampliação de fronteiras, a premiação foi excelente. Como eu costumo dizer (e este aforismo está registrado em meu romance Os Arcanjos), a ciência observa para ampliar fronteiras, e a arte amplia fronteiras para observar.
Há quem diga, com todo o meu respeito, que não se deveria premiar um músico do mercado pop, pois já há muitos prêmios específicos para música (como o Oscar, o Grammy etc.), e, também, por ser uma premiação que, supostamente, “choveria no molhado”, ao iluminar alguém que já dispõe de todos os holofotes e sóis mercadológicos.
Permito-me discordar. O pop é arte. O fato de dispor dos holofotes e sóis mercadológicos não dirime a arte que os propulsiona. Com efeito, uma das quebras de fronteiras permeada com essa premiação parece ter tocado no aspecto “pudorado” dos artistas (e pior: dos críticos), que, talvez inconscientemente, creiam que o homo artisticus deve mendigar seu público e seu farnel, deve ser sempre uma espécie de sombra consequente da sociedade, ficando-lhe ao encalço, recolhendo-lhe as migalhas. Nesse modo de pensar, o artista que, por exemplo, ganhe muito dinheiro com sua arte-ofício e amplie o seu público para além dos muros intra-acadêmicos deveria ser banido e rechaçado como alguém que prostituiu a arte ao permitir que a plebe indócil acedesse a ela. É um condicionamento tolo, mesquinho, pequeno-burguês, dogmático, desafeito à ciência e à arte, pois odeia ampliar fronteiras, ato e fato que se encontra no âmago das nove Musas, de Euterpe a Urânia. Nesse ponto, ficarei feliz que um dia Paulo Coelho arrebate o laurel de Estocolmo. Ficarei feliz também que cineastas e outros “tipos” de escritores alcem a medalha da Academia Real.
Se tudo é arte, se tudo é ciência, se nosso século é caracterizado pela transdisciplinaridade fundamental, que no século XIX e XX precisava ser pudica e fazer cada ciência e cada arte delimitar com clareza suas fronteiras a fim de granjear foros de legitimidade, hoje é preciso saber lidar com o cruzamento epistêmico a fim de compreender-se o mundo.
Nesse aspecto, parece que estamos revisitando fertilmente os séculos XVIII e início do XIX, em que as fronteiras entre o “pop” e o “acadêmico” eram muito menos inertes. Haja vista que Beethoven, Mozart e Liszt eram superstars populares, e nem por isso deixavam de alumbrar os requintados gostos da nobreza e do alto clero imperial. Faziam Rock´n´roll da melhor qualidade, que levava os plebeus ao delírio, ao mesmo tempo em que acetinavam os mais sofisticados gostos da corte educada nos nobilíssimos salões fechados de Viena.