Tudo o que é feliz não tem direito à eternidade

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A inspiração se assenhora do espírito por vias indecifráveis. Quando ocorre uma ideia, não sempre sei bem de onde ela proveio nem o porquê; porém, sei identificar qual é seu plano de fundo: é ela, a música; que sempre compõe meu pensamento. Agora mesmo, para escrever esse artigo sobre Roberto Ribeiro, me vi ruminando um tema cantado por Milton Nascimento, cuja bela letra de Nelson Ângelo diz o seguinte: “e a meninada/respirava vento/ até virar noite/e os velhos falavam/coisas dessa vida/ eu era criança/ hoje é você/ e, no amanhã/nós”.

“E, no amanhã, nós”. Todos nós, crianças? Ousado demais querer determinar isso. Sem meios precisos, não posso contar com a permanência de um espírito lúdico capaz de embalar as pessoas no respirar do vento. É tão raro se dedicar a esse tipo de prazer hoje em dia. Nesse mundo transtornado que vivemos, as pessoas estão bem mais preocupadas com a eternidade do que com a felicidade. Fala-se muito por aí sobre o valor do “ter” sobrepondo o valor do “ser”.

Reportando-me à infância, onde a felicidade era o decreto régio da vida, penso nessa canção de Nelson e Milton, penso no vento ameno que eu respirava, nas noites estreladas que desfrutei ao lado dos velhos que falavam coisas da vida, lembro dos “tios na varanda”; lembro que meu coração está lá ainda. Penso em Madureira e em Roberto Ribeiro. Nessa passagem de imagens, feito um trem encarrilhado, a memória me acossa trazendo uma vivência que não ficou apenas registrada em mim, mas registrada em obras de arte. Na música de Roberto, ouço o mundo que me envolvia: “todo menino é um rei (…) porém, menino sonha demais”.

Roberto Ribeiro frequentava a casa de meus avós, onde eu morava, na Rua Doutor Joviniano, 418. Mais comumente conhecida como Serrinha, uma das terras natais do samba carioca, tal era o cenário constante desse artista. Alegre e carinhoso, Roberto estava sempre na varanda proseando com meu avô João Gradim, minha avó Altair, minha tia Eulália e outros “tios” bambas fundadores do Império Serrano. Eu, meus irmãos e meus primos rodeávamos o espaço preenchendo-o com gritos, correrias e joelhos ralados; e Roberto lá, com aquele sorrisão aberto. Alex, seu filho, era o Lequinho, o “primo” emprestado com quem dividíamos a mesma juventude. Na época eu vivia minha primeira infância, beirava a faixa dos 5, 6 anos; por isso tenho tudo meio vago na memória. O que extraímos de nossas lembranças não é a nitidez fotográfica dos fatos, mas sim o espectro das impressões, o que a poeira do tempo não ocultou.

Almoços de domingo, com todos reunidos numa larga mesa, fatalmente tinham Roberto na trilha sonora. Cresci ouvindo essa melodia e essa voz que ecoava da vitrola em alto volume. Mas, somente anos depois, já adulto, compreendi que aquela não era qualquer voz, mas uma senhora voz, cujo timbre é de uma preciosidade que só se encontra em Dick Farney. Roberto cantava ainda melhor, sem tanta polidez artificial;afinadíssima no seu tom aveludado, sua voz era o símbolo que a Serrinha escolheu como forma de mostrar a beleza e a força de sua gente.

Roberto foi intérprete do Império Serrano; mas, quando chegou aqui no Rio, em 1965, vindo da cidade de Campos, ele era Demerval Miranda Maciel. Trazia na alma um desejo ardente: ser jogador de futebol em algum time carioca. Passou uma temporada no Fluminense, mas, por sorte, a música o atraiu mais do que a bola. Do campo partiu para a Rádio Mauá, cantando no programa “A hora do trabalhador”. Por meio do ouvido apurado de Liette Souza, sua futura esposa, o talento de Roberto se destacou e, sem transição, ele já se acomodava ao círculo de sambistas do Império Serrano, no que resultou em um convite para que o ex-jogador de futebol, agora cantor, representasse a escola na avenida. No ano de 1971, Roberto dava voz ao genial samba “Nordeste, seu povo, seu canto, sua história” de Maneco, Heitor e Wilson Diabo, garantindo a terceira colocação para a agremiação de Madureira. Nos anos de 1972 e 1973, gravou seus primeiros discos em parceria com Elza Soares e Simone. Depois disso, se consagrou no cenário do samba acompanhado de bambas como Monarco, Wilson Moreira, Ivone Lara. Compositor e cantor, Roberto tinha a marca de compor e gravar com abundância; nos anos 70 e 80, lançava um álbum por ano. O que prova que a coroa e o cetro dados a um certo rei Roberto talvez tenham sido um engano, que terminou trocando o Ribeiro pelo Carlos.

Seja como for, Roberto compunha canções excelentes, dispersas entre sambas de roda, sambas-enredo, sambas-canção e afoxés. Mas o que torna a arte de Roberto algo singular não é uma propriedade musical, mas um atributo da vida. Vejo em sua obra um estado de alegria constante. Em “Liberdade”, de Délcio Carvalho e Ivone Lara, há um verso que acredito ser um dos mais profundos cantados por Roberto: “tudo o que é feliz não tem direito à eternidade”. Ele nos faz pensar que a felicidade é um princípio que se opõe à eternidade. A eternidade é o aprisionamento num tempo que nunca cessa de existir; mas a felicidade, não. Para ser feliz é preciso existir, mas também sofrer com esse existir até o dia em que as coisas chegam ao fim.

A eternidade é uma longa e interminável posse do viver. A felicidade, ao contrário, não se apossa de nada; ela simplesmente permite, libera que o viver seja o que é: um “mar de ilusão” em que navegamos. Ora o viver é jogo de “sombras”, a dor do remorso de uma “triste melodia”, a saudade entrando em cena, a solidão surpreendente, ora o viver é “a ternura de um amor sem falsidade”, a mocidade que sonha, que confia na felicidade, que aprende lições duráveis. Ser feliz é ter que aceitar essa dualidade, vivendo na intensidade de emoções contraditórias.

Em “Vazio”, de sua autoria, o amor faz falta quando é perdido, gera um mar de prantos; o amante sabe que seu coração não é de aço e “que a vida passa”; e, por isso, tem que reagir; a eternidade não lhe pertence, mas a vida, sim; e a vida é esse torvelinho que nos exige “tomar a decisão de levantar o pano do barco”, e partir. O poeta que se vestiu de pureza, certo que seria rei, extravasou o viver, agarrou-se ao amor, pois ser feliz é soberania do espírito. Em “Amei demais”, Roberto confessa que “o peito cheio de alegria” o leva para dois caminhos contrários: amar demais e deixar o samba se calar; a felicidade não existe sem oposição de forças, sem paradoxos insuperáveis; viver assim é o que resta; o direito à eternidade não nos cabe.

Nosso dever é viver e ser feliz, ainda que na adversidade. Um “coração derrotado” viveu o que tinha que viver; alcançou o limite e não se isentou de nenhum assombro. A eternidade nos afasta de tudo isso. Oferece uma garantia de um presente sempre presente, de algo que não morrerá nem nascerá, porém nos priva do que tem sangue, cor, pulsação,amor, saudade, medo e melodia. Por isso, Roberto canta a felicidade, a vida, canta o hoje como em “Amor de verdade”: “tem que ser agora ou nunca mais/ deixar pra amanhã por quê?”A felicidade, presente em sua obra, quer “mergulhar no mundo do prazer”. Como o amanhã não é segurança para nada, então que o agora seja celebrado pelo amor e pelo samba. Salve, Roberto!

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