Aconteceu no Rio Antigo – O Passeio Público surgiu de um sonho ouvido atrás da moita

Fernanda Duarte conta a origem romântica do Passeio Público, um dos parques mais importantes do Rio de Janeiro

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Jardim do Passeio Público (Foto: Fernanda Duarte)

A cidade do Rio de Janeiro até 1779 não possuía nenhum jardim que fosse público e que as pessoas pudessem passear. No vice-reinado de Luís de Vasconcelos e Sousa (vice-rei de 1779 a 1790) inicia-se a grande construção do Passeio Público, e como nossa cidade sempre tem muita história por trás de cada coisa, essa construção não poderia ser diferente.

Há uma antiga tradição que envolve um amor platônico e um sonho escutado clandestinamente, quem nos conta é Joaquim Manuel de Macedo em seu livro “Passeio pelo Rio de Janeiro”.

O vice-rei Luís de Vasconcelos e Sousa era um homem muito jovem, o mais jovem a assumir o cargo, e era muito amigo do arquiteto e artista Mestre Valentim. Em um dia, ao cair da tarde do ano de 1779, estando o vice-rei na janela do Largo do Paço observando a movimentação, chama o Mestre Valentim, que trabalhava na construção do chafariz da Praça XV para ir ter com ele.

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Vice-Rei Luís de Vasconcelos e Sousa. Pintura de Leandro Joaquim no séc. XVIII. (Wikipédia)

Convidou-o a segui-lo em um passeio pela cidade. Montaram nos cavalos e seguiram para o Morro de Santa Teresa, percorrendo as ruas de São José e da Ajuda, ladeando o Convento da Ajuda, e seguindo pela margem de uma lagoa feia e fétida que se estendia até ao fim da atual Rua do Passeio.

Esta era a Lagoa do Boqueirão que exalava um cheiro desagradável além de ter um terrível aspecto. O local era desestimado, a população da cidade interrompia-se naquele ponto, e se viam apenas três ou quatro humildes casinhas, uma delas na beira da lagoa. O mestre Valentim não tinha entendido porquê o Vice-rei quis justamente pegar esse caminho, até que uma bela jovem, chamada Suzana, aparece na janela para vê-los passar e logo o mestre sorriu e compreendeu o motivo do caminho esquisito.

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Lagoa do Boqueirão. Pintura de Leandro Joaquim em 1790. (Google Arts)

Chegaram no morro de Santa Teresa, conversaram a respeito dos aquedutos e desceram quando já estava escurecendo. Fizeram o mesmo caminho de volta e quando chegaram perto da lagoa, pararam para ouvir a voz doce e melancólica de Suzana que cantava.

Luís de Vasconcelos encheu-se de encanto e disse para o Mestre Valentim:

Mestre, é verdade: amo aquela mulher. Vamos ouvir de mais perto o canto de Suzana; há uma moita de arbustos que nos será propícia. Veremos e ouviremos sem ser vistos.
Já falou alguma vez àquela menina, Sr. Vice-rei?
Nunca.

Suzana estava sentada na relva junto ao tronco do coqueiro e, quando acabou de cantar, um jovem rapaz veio juntar-se a ela. Chamava-se Vicente e estavam noivos.

Começaram a conversar e Suzana comentou que o vice-rei tinha passado pela rua mais cedo. Vicente, possesso de ciúmes, ficou indignado afirmando que ele a queria, pois frequentemente passava ali para olhá-la.

A jovem então revelou a Vicente um sonho inocente que tivera naquela noite com o vice-rei.

Sonhei. Por que hei de mentir ou esconder um sonho inocente? Sonhei que um gênio benigno me aparecia risonho e afetuoso. Era um gênio, mas tinha o rosto do vice-rei. Era apenas uma sombra, mas não me assustava, nem eu lhe fugia. A um movimento de sua mão branca e transparente tu apareceste, e ele nos ligou com um laço de flores. O gênio levou-nos para fora, e tirando do ombro uma túnica, estendeu-a sobre a lagoa do Boqueirão, que, de súbito, se transformou em um belíssimo jardim. Depois, o gênio… a sombra foi-se esvaindo, até desaparecer de todo; felizes e contentes, nós corremos como duas crianças travessas pelo jardim. Depois, ah! Vicente! Depois, eu desatei a chorar, porque nesse imenso jardim procurei debalde este coqueiro, cuja sombra, um dia, pela primeira vez, e joelhos aos pés de minha avó, tu lhe disseste o que eu já sabia… que me amavas. O sonho parou aí, porque… eu acordei, chorando.

Após um tempo, o vice-rei e o mestre saíram discretamente e voltaram ao palácio, o trajeto todo foi em silêncio e os olhos do vice-rei estavam marejados.

Ao se despedirem, Luis de Vasconcelos pediu que o mestre estivesse às 10h no palácio, pois eles tinham muito o que conversar. No dia seguinte, conforme combinado, mestre Valentim se apresentou no palácio, o vice-rei disse sorrindo:

Mestre, já temos onde aproveitar a terra do desmoronamento do Monte das Mangueiras (antigo monte que ficava no local da rua de mesmo nome, na Lapa). É na Lagoa do Boqueirão, que vamos transformar em jardim público. Dei a um engenheiro as ordens para tratar de fazer esgotar imediatamente essa lagoa. O jardim fica por sua conta, mestre. Note, porém, que eu me empenho em que nos ornamentos do nosso jardim seja reproduzido um certo coqueiro que indispensavelmente teremos que derrubar.
É um sonho que se realiza, Sr. Vice-rei.
Silêncio, mestre Valentim! Não há sonho, nem gênio, nem loucura da noite passada. Haverá somente um Passeio Público, que a cidade do Rio de Janeiro vai ganhar.

E foi assim, segundo essa antiga tradição, que surgiu o nosso belíssimo Passeio Público, com sua origem um pouco romanesca. Se é verdade ou ficção nunca saberemos, mas são tradições que Joaquim Manuel de Macedo recolheu em antigos manuscritos e que passaram de geração em geração. Sao tradições que fazem parte da nossa história.

Você já visitou o Passeio Público ou já conhecia essa história?

Veja o vídeo completo da matéria no Instagram (clique aqui).

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