Alberto Gallo: O Estado democrático de direito

Em 2022, na celebração dos dois séculos da independência, foi publicada a Carta da USP; mas dá uma “vergonhazinha” da intelectualidade que aceita o pau no lombo de Chico, mas brada quando o pau bate em Francisco

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Há um provérbio popular que diz que “pau que dá em Chico, dá também em Francisco”. Isso indica que a régua da Justiça, do Estado, não deve fazer distinção entre um simples cidadão, o Chico em comparação com uma figura relevante, o senhor ilustríssimo Francisco. Se dá o nome de isonomia ou “igualdade perante a lei” ao princípio fundamental do sistema político e jurídico justo, garantindo que todos os cidadãos sejam tratados com igualdade, sem privilégios ou discriminações injustificadas.  A Constituição Federal deixa claro no Artigo 5° que diz “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade […].”

Estudar a Democracia é necessariamente estudar o “Estado Democrático de Direito” , um conceito que une a visão democrática com as leis. A sociedade que defendemos de um regime político que se baseia na soberania popular, na igualdade de todos perante a lei, na proteção dos direitos fundamentais, da liberdade de opinião e de manifestação e da garantia da participação dos cidadãos na tomada de decisões políticas e principalmente num ambiente jurídico de leis e regulamentos que devam ser aplicadas e respeitadas por todos os cidadãos.  

O Estado Democrático se baseia em instituições e na separação dos poderes de forma independente, com liberdade de imprensa e mecanismos de controle social. A constituição deve ser a principal norma de organização da nação e deve ser respeitada por todos, inclusive pelos mais poderosos e pela elite jurídica.

Vale lembrar que o conceito de divisão dos poderes remonta as cidades gregas que foram o berço da democracia. Inicialmente controladas por aristocratas, monarcas ou oligarcas até que homens livres adquiriram status de cidadãos e passaram a ter direito a participar do governo. Foi neste cenário que surgiram ideias nas quais um povo soberano tem o direito de se governar e dispor de instituições para tal fim. A concepção de constituição mista de Aristóteles é o registro mais antigo que temos quando centramos na questão do equilíbrio do poder como elemento fundamental para o bom funcionamento do governo. Portanto, Aristóteles é um dos pensadores da Grécia Antiga que contribuíram para o desenvolvimento do equilíbrio do poder. 

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E para evitar a tirania daqueles que controlam o poder, surgiu a ideia da separação dos poderes, John Locke e Montesquieu foram importantes pensadores que contribuíram para a evolução do pensamento. Montesquieu ressaltou a importância da constituição mista e considerou a monarquia constitucional o sistema político mais capaz de assegurar a liberdade. Os federalistas norte-americanos, por sua vez, deram novos ares à constituição mista, na falta de uma “aristocracia natural” nos Estados Unidos, vindo a resultar no bicameralismo moderno utilizado em uma ampla gama de países. Portanto, a separação de poderes evoluiu a partir da preocupação com o acúmulo de funções em um mesmo representante ou grupo de representantes.

A chamada teoria tripartite, que consiste em atribuir ao Estado as três esferas de poder: o Legislativo, que faz as leis para sempre ou para determinada época, bem como as aperfeiçoa ou revoga as que já se acham feitas; o Executivo, que se ocupa das relações exteriores e da segurança dos cidadãos; e finalmente o Judiciário, que dá ao príncipe ou ao magistrado a faculdade de punir ou julgar os crimes da ordem civil. O sistema de freios e contrapesos é fundamental para garantir a independência e o equilíbrio entre os poderes em um sistema político, que funciona de forma que cada poder exerce um controle sobre os outros poderes, de modo a evitar que um deles se torne dominante e abuse do poder.  

No Brasil, em teoria, nossa democracia se baseia no sistema de separação e equilíbrio entre os poderes, bem como no estado democrático de direito, onde a estrutura jurídica propõe o império da lei.  E assim, por ocasião da celebração dos duzentos anos a independência, a intelectualidade tupiniquim propôs com justa razão uma carta defendendo os princípios da lei e da ordem para manutenção da democracia e do sistema eleitoral. Foram mais de 900 mil assinaturas, nas versões on line, com destaque para os grandes juristas, jornalistas, artistas e diversas celebridades; além de entidades como FIESP, UNE, USP, CUT, OAB entre outras.

Em linhas gerais, a carta defende obviamente a democracia. Mas muito além das belas palavras, (que apoiamos), há uma grande omissão de muitos que assinaram.  Dá vergonha ver nossa elite se acovardar, dependo do que está em jogo. Como se a lei valesse para calar o Chico; mas para o Ilustríssimo Senhor Francisco, a lei não vale. Não parece que isso é democracia. 

E a imprensa que deveria ser imparcial ou no mínimo dar voz ao contraditório, acaba servindo de apoio à tirania do “consórcio da verdade”. Dá uma “vergonhazinha” ao perceber que muitos juristas, jornalistas e intelectuais, passam o pano nos abusos e desrespeitos à lei.  Vale tudo politicamente, para derrotar “os inimigos da democracia”? Até ser antidemocrático está valendo?  Até passar por cima da lei, perseguir e executar politicamente os opositores?  Essa é a “democracia jacobina” da revolução, que levava para a forca qualquer voz de oposição? Regimes assim prosperaram pelo mundo, na União Soviética, China, Cuba e Venezuela. A velha máxima de cassar ou exterminar quem pode se organizar politicamente para pleitear votos de oposição.

Onde estão aqueles que assinaram a carta da USP, quando vemos uma escalada do ativismo judiciário, em abusos de falas e ações e um total silêncio das entidades?  Quando vemos narrativas do jornalismo chapa branca, que voltou a faturar bem das verbas oficiais? Nossa democracia brasileira precisa se fortalecer, com valores, coerência e a partir de uma elite que não sucumba ante em relações promiscuas com o governo, como tem acontecido ao longo de nossa história.

No livro Como as democracias morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, os autores demonstram como muitas vezes os próprios governantes e a elite se apoderam das instituições democráticas, de modo a transformá-lo numa autocracia. Vivemos hoje no Brasil, momentos delicados com a polarização recente, mas ao invés de avançarmos para uma vitória da democracia, nos parece que o risco de autoridades abusivas e sem freios institucionais permanece presente. E para vergonha dos brasileiros, há uma elite com dois pesos e duas medidas: Aceita ataques à democracia e a transgressões à lei de algumas autoridades. abusos e covardia de outras, desde que seja conveniente.  Porém quando são aqueles considerados “inimigos”, há todo uma união de esforço para vencê-los. 

O caminho, segundo os autores é da tolerância e do rigor das leis. E no Brasil, será que há juízes intolerantes e tiranos? Ou que a lei só é rigorosa a favor dos poderosos convenientes?

Referências:

Darrieux, R. S. P. (2016). O equilíbrio do poder na história do pensamento político democrático: da constituição mista à separação de poderes e o bicameralismo. Cadernos de Estudos Sociais e Políticos, 5(9), 1-26.

Levitsky, S., & Ziblatt, D. (2018). Como as democracias morrem. Editora Schwarcz-Companhia das Letras.

da Silva, J. A. (1988). O estado democrático de direito. Revista de direito administrativo, 173, 15-24.

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1 COMENTÁRIO

  1. Nos EUA, também houve perseguição aos grupos de esquerda. Na Europa atual, todo discurso contra o apoio à Ucrania (uma ditadura aberta) na guerra contra a Rússia é silenciado. Países governados pela direita são também autoritários e anti democráticos.

    Se o Estado é verdadeiramente de direito e TODOS, sem distinção, devem ter suas necessidades fundamentais atendidas, por que os serviços de interesse públicos são dados de mão beijada para entes privados lucrarem em cima? Por que o direito à propriedade ociosa e improdutiva se suplanta ao direito universal e inalienável de acesso à terra e à moradia. Por que o maior parcela dos gastos públicos é direcionada para banqueiros privados ao invés de ser investida no bem estar da população como um todo?

    O discurso bonitinho da letra da lei cai por terra ante à realidade concreta. O direito e a liberdade só existem para quem pode pagar por eles. No fundo, a única liberdade que importa para os amantes do dinheiro é a liberdade para ganhar mais dinheiro, e pisar em cima de quem não ganha. Aliás, é só pisando em milhões que se consegue acumular milhões.

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