Alexandre Arraes: A parte de cada um

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Alexandre Arraes Foto: Divulgação

  Não há o que explicitar: o artigo 144 é o único da Constituição Federal a tratar de segurança pública. E o texto não deixa dúvidas. Segurança pública é dever do Estado, entenda-se: União, estados e municípios. Direito e responsabilidade de todos, entenda-se: sociedade. Cada um dos três níveis de governo tem obrigações definidas. O dever da União é não permitir a entrada de drogas e armas no país, policiar vias federais e cuidar de parte do sistema prisional; aos estados cabe policiar ostensivamente, manter a ordem pública e investigar os crimes de sua competência; os municípios devem atuar com suas próprias guardas na proteção dos bens públicos e seus usuários e cuidar dos espaços públicos, evitando sua degradação, cenário mais favorável para o crime. Que tal cada um começar a fazer a sua parte?

 O caos de insegurança em que vivemos não pode ser justificado por falta de recursos, tamanho das fronteiras, interesses corporativos de categorias envolvidas, insatisfação dos operadores de segurança, carência de vagas no sistema penitenciários, equívocos da legislação penal e outros argumentos do gênero. Afinal, segurança, educação e saúde devem ser prioridades do governo, em todos os níveis. Então, merecem toda a atenção e se houver algum recurso deverá ser investido nessas três áreas. Além do mais, de alguma maneira, todos somos responsáveis por essa situação de insegurança generalizada e de total desarranjo institucional sistêmico, pois elegemos a cada dois anos nossos representantes. Sair dela vai exigir investimento, atitude e disposição para transformar.

 A complementaridade das ações é a base de funcionamento do Sistema Único de Segurança Pública – SUSP, criado pela Lei nº 13.675/2018. Ocorre que União e municípios se omitiram de suas obrigações durante décadas. Sua omissão sobrecarregou os estados, que se viram obrigados a arcar com todo o ônus e assumir funções em segurança pública de outras esferas. Obviamente, não poderia funcionar. Forças de segurança estaduais chegaram ao seu limite, perderam a batalha contra o crime e vêem seus efetivos serem reduzidos por baixas naturais e mortes. E, no Estado do Rio de Janeiro, ainda temos o agravante de uma gestão pública temerária, associada à corrupção sistêmica que atingiu parte das corporações policiais, gerando, inclusive, a proliferação de milícias.

 No Estado do Rio foi necessária a medida excepcional da intervenção federal na área de segurança, entre outras razões porque a União falhou ao não policiar as vias federais e ao não impedir a entrada de armas pesadas e drogas por terra, mar e ar durante anos. Era inimaginável que com a epidemia de violência instalada, continuasse a se omitir. Segundo o Instituto de Segurança Pública do Governo fluminense, foram 6731 homicídios em 2017, o que significou 30% a mais em relação ao ano anterior, roubos subiram 91,5%, roubos de cargas 304%. Sem mencionar números estratosféricos quanto ao roubo de veículos particulares, de coletivos e de telefones celulares.

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 Diante de números assim, o Governo federal não pode mais se omitir. Cumpriu, enfim, sua obrigação, ao destinar recursos necessários para aprender armas e drogas que sua inércia crônica permitira que entrassem em nosso território. A simples existência de armas e drogas em grande quantidade no Rio é a prova material da incapacidade da União de exercer sua obrigação constitucional. Armas de alto poder de fogo, que aterrorizam e matam a população e dizimam policiais; drogas, de valor econômico incalculável, que financiam a corrupção das forças policiais, decisões favoráveis no Legislativo e Judiciário e a ocupação de grandes territórios urbanos, bem como de espaços governamentais.

 A redução de todos os índices de criminalidade após o período de intervenção federal demonstra a incapacidade estadual de assumir a segurança pública sem a maior participação da União e a ajuda dos municipios.

O avanço das organizações criminosas é facilitado não só pelo vácuo de poder do Estado, mas também pela legislação penal permissiva, que lhes confere a certeza de impunidade. Aliás, é a certeza da impunidade a razão mais óbvia para os altos índices de criminalidade, que ainda sustentamos em todos os setores, numa escala que vai do assaltante de rua ou narcotraficante ao criminoso de colarinho branco. A decisão de cometer o crime é facilitada pelo baixo risco de ser punido efetivamente. É uma decisão pessoal e o tipo de crime cometido está relacionado à realidade em que vive o criminoso.

 No nosso país tem valido a pena cometer todo e qualquer tipo de crime. Por que? Apenas 8% dos homicídios têm seus autores identificados e menos de 5% são condenados conforme informações do Mapa da Violência. Apesar de ser um dos líderes em número de homicídios, o Brasil ocupa a 36ª posição no ranking de população prisional com 289 presos por 100 mil habitantes, segundo o Centro Internacional de Estudos Prisionais. Em 2019 esse percentual foi reduzido, pois o número de presos provisórios caiu significativamente, segundo o Mapa da Violência. Em 2018 havia, de acordo com o Banco Nacional de Mandados de Prisão, 373.991 mandados em aberto. Sim, e também ocupávamos posição vergonhosa no ranking da organização Transparência Internacional, graças ao fato de que 97% dos crimes de corrupção continuavam impunes, segundo estudo de 2016 da Fundação Getúlio Vargas, citado à época pelo procurador da República Deltan Dallagnol.

 Educar com qualidade é importante, isso não se discute, mas o estabelecimento de limites rígidos e consequências claras e incontornáveis para quem descumpre as normas é fundamental e, num entendimento mais amplo, faz parte do processo educativo. Por isso James Hackman, vencedor do Prêmio Nobel de Economia em 2000, sustenta que investir na primeira infância é a melhor “estratégia anticrime”. A meta é que todas as crianças com menos de 04 anos estejam nas creches, pois é nessa idade que ocorre a socialização e, nesse processo, a criança começa a entender que existem limites que devem ser observados. Educar no sentido apenas de dar informação de qualidade, numa sociedade onde a impunidade é o padrão, ao contrário do que muitos pensam, não tem o poder isoladamente de controlar a criminalidade. Criminosos com origens diferentes muitas vezes têm o mesmo fator facilitador para o crime: ausência de limites claramente estabelecidos ao longo de toda a sua vida. Para muitos os únicos limites que conhecem em sua existência são aqueles impostos pelo Estado. Se educar apenas no sentido de dar instrução, fosse suficiente para evitar o crime não teríamos tantos políticos, gestores e empresários – que tiveram acesso a bons colégios e universidades – e acabaram se tornando criminosos.

Para o SUSP, começar a funcionar os governos da União estados e municípios precisam fazer cada um a sua parte. Mas isso é suficiente? Com certeza não. O fim da impunidade deve ser perseguido e para isso o Legislativo teve a oportunidade de aprovar as medidas apresentadas pelo Ministro Sérgio Moro em seu pacote anticrime. Ainda que não tenha sido aprovado integralmente já houve algum avanço.

 Entretanto, o Conselho Nacional de Justiça estima que 30% das ações sob responsabilidade do Tribunal de Júri prescrevem. Portanto, aperfeiçoamentos no Código de Processo Penal e na Lei de Execuções Penais ainda precisam ser feitos para evitar as medidas protelatórias para cumprimento das penas e seu excessivo abrandamento. É o caso da urgente aprovação da prisão em segunda instância, seja através de emenda constitucional ou outro caminho. Todas essas alterações são necessárias para que todos tenham certeza de que o crime não compensa e que aquele que decidir correr o risco será punido. Esse é um dos alicerces fundamentais para se construir um novo país, onde as pessoas de bem possam gozar de segurança e a lei seja aplicável da mesma forma e intensidade para todos. 

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