Antes de ser um ponto de passagem rápida no centro do Rio de Janeiro, a Praça Onze de Junho era o coração pulsante de um bairro vivo, popular e profundamente enraizado na história cultural e social do Brasil. O que hoje é cruzado por viadutos e ladeado por grandes avenidas já foi sinônimo de samba, religiosidade, comércio popular, imigrantes e uma convivência multicultural rara nas grandes cidades da época.
Por que o nome Praça Onze de Junho?
A antiga praça recebeu esse nome em homenagem à Batalha Naval do Riachuelo, travada em 11 de junho de 1865, durante a Guerra do Paraguai. A vitória brasileira foi considerada decisiva no conflito, e várias ruas e praças em cidades brasileiras passaram a homenagear essa data patriótica. Assim, nasceu o nome Praça Onze de Junho, mais tarde simplificado na boca do povo para apenas “Praça Onze”.
Um bairro de identidade múltipla
A antiga Praça Onze não era só uma praça, mas um bairro inteiro, cheio de vida. Suas casas eram simples, muitas em alvenaria de um ou dois andares, outras de madeira, e conviviam com cortiços e quintais compartilhados. As ruas de paralelepípedos serviam como extensão da casa — ali se cozinhava, conversava, cantava e tocava.
O bairro era formado por uma impressionante diversidade de moradores:
Negros libertos e descendentes de escravizados, que mantinham tradições religiosas, musicais e sociais oriundas da África;
Judeus sefaradim, que vieram da Península Ibérica e do norte da África, em especial do Marrocos; os mizrahim, provenientes do Oriente Médio, principalmente do Iraque, Iêmen, Irã, Líbano e Síria; e os Ashkenazim, que se originam da Europa Central e da Europa Oriental;
Imigrantes árabes, sírios e libaneses que trabalhavam no comércio;
Portugueses e italianos pobres, carregadores, carroceiros, pedreiros;
Nordestinos recém-chegados ao Rio em busca de oportunidades.
Essa mistura de culturas e classes fazia da Praça Onze um microcosmo da cidade. O bairro era conhecido tanto pela solidariedade entre vizinhos quanto pela vitalidade de seus terreiros, feiras livres, mercados, festas populares e rodas de samba.
Berço do samba e da ancestralidade
Foi ali, nos quintais e porões da Praça Onze, que nasceu o samba urbano carioca. Personagens como Tia Ciata, Donga, João da Baiana, Heitor dos Prazeres, Pixinguinha e Sinhô circulavam com frequência pelas casas da região, que recebiam as famosas “reuniões musicais” (frequentemente reprimidas pela polícia).
Mais do que lazer, o samba era resistência cultural. Em um país recém-saído da escravidão, onde expressões da cultura negra eram marginalizadas e perseguidas, as festas e os ritmos que ecoavam da Praça Onze desafiavam o racismo institucional e consolidavam a cultura afro-brasileira como identidade nacional.
O bairro também abrigava terreiros de candomblé e umbanda, irmandades religiosas, associações musicais e escolas de samba nascentes. É ali que surgiu, por exemplo, a escola Deixa Falar, precursora da atual Estácio de Sá, uma das mais tradicionais do carnaval carioca.
A destruição: quando a modernidade varre a memória
Tudo começou a mudar a partir dos anos 1930, com as reformas urbanas que visavam a “modernizar” o Rio de Janeiro. Mas foi na década de 1940, durante o governo de Getúlio Vargas, que o golpe fatal foi desferido: a construção da imensa Avenida Presidente Vargas.
Para abrir espaço para a nova via expressa, considerada símbolo do progresso, todo o bairro da Praça Onze foi demolido. Cortiços, casas, terreiros, mercados e praças inteiras foram ao chão. A memória de um bairro vivo foi varrida com o entulho.
A justificativa era o “higienismo urbano”, conceito importado da Europa, que pregava a remoção de áreas pobres e populares do centro das cidades em nome da ordem, da saúde pública e da estética monumental.
E o que aconteceu com a população da Praça Onze?
Os moradores foram desalojados às pressas. Muitos não receberam indenização. Alguns foram transferidos para zonas suburbanas mais afastadas, como partes da Zona Norte; outros foram simplesmente empurrados para os morros próximos, como o Morro da Providência, Morro de São Carlos, Morro do Pinto, entre outros.
A demolição da Praça Onze, ocorrida nos anos 1940 para a construção da Avenida Presidente Vargas, foi parte de um processo contínuo de remoções que já havia começado décadas antes. Durante as reformas urbanas promovidas pelo prefeito Pereira Passos no início do século XX, especialmente com a abertura da Avenida Central (atual Avenida Rio Branco), quando centenas de prédios antigos foram demolidos, incluindo muitos cortiços que abrigavam famílias de baixa renda. Essas demolições forçaram milhares de pessoas a procurarem moradia nas encostas dos morros próximos, como o Morro da Providência, contribuindo significativamente para o surgimento das primeiras favelas na cidade.
Foi esse deslocamento forçado que impulsionou a expansão das favelas do centro do Rio — marcadas pela precariedade, mas também pela continuidade das tradições culturais que a cidade parecia querer apagar.
A destruição da Praça Onze não foi apenas física. Foi também simbólica. Arrasou-se um território de pertencimento e memória coletiva. Soterraram-se histórias, sotaques, tambores, afetos e religiões. No lugar, surgiu uma via larga e barulhenta, cortada por automóveis, mas silenciosa em relação ao passado.
Hoje: o silêncio sob o asfalto
Atualmente, a Praça Onze sobrevive como nome de estação de metrô e como ponto de referência para quem passa entre a Cidade Nova e o Centro. Mas sua alma não está mais ali — ou está, sepultada sob concreto e negligência.
Restam poucas marcas físicas daquele bairro vibrante. Mas a memória resiste: no samba, nas escolas de samba da Estácio, nos terreiros espalhados pela cidade, nas pesquisas, nos livros, nas fotos e nas lutas por preservação da memória afro-brasileira e popular.
Resgatar a história da Praça Onze não é nostalgia. É justiça histórica. É lembrar que o Rio de Janeiro que conhecemos hoje não nasceu das palmeiras imperiais, mas sim de quilombos urbanos como a Praça Onze, onde o Brasil real se reunia, criava e resistia.
Foi a partir de uma reportagem especial da Rio TV Câmara que me inspirei a pesquisar e elaborar este artigo sobre a antiga Praça Onze. Recomendo fortemente que, assim como eu, você assista à belíssima produção intitulada:
“Imagens inéditas revelam o bairro Praça Onze que desapareceu no Rio – Reportagem Especial 122”
Trata-se de um programa sensível, didático e visualmente rico, que utiliza imagens raríssimas do Arquivo Geral da Cidade — algumas guardadas por mais de 80 anos — para reconstituir os últimos momentos do bairro da Praça Onze antes de sua destruição, marcada pela abertura da Avenida Presidente Vargas. O documentário conta com fotografias históricas de Augusto Malta e narra de forma envolvente como era a vida no local, a diversidade cultural que o caracterizava e o processo que levou à sua desaparição.
Para assistir à reportagem completa, acesse o seguinte endereço:
Super recomendo para quem que, como eu, ama a cidade do Rio e sua história.
Essa é mais uma obra primorosa da Rio TV Câmara, que vem se destacando pela qualidade e relevância de seus conteúdos jornalísticos. Inclusive, vale registrar que a emissora foi recentemente premiada no 3º Prêmio MOL de Jornalismo para a Solidariedade, com a reportagem:
“Dia da Favela: Talentos e histórias que inspiram! – Reportagem Especial 115”
Essa matéria retrata as favelas cariocas não como espaços de carência, mas como territórios de potência, criatividade e transformação social. A reportagem conquistou o terceiro lugar na categoria Jornalismo Tradicional em Vídeo, ficando ao lado de dois gigantes da comunicação nacional: o Fantástico (TV Globo), com a reportagem “Cuidados Paliativos: Vida até o último dia de vida” (1º lugar), e o Balanço Geral Minas (TV Record), com a reportagem “Mão na Massa: Mulheres mergulham na construção civil em busca de construir o próprio lar” (2º lugar).
A premiação, promovida pelo Instituto MOL, reconheceu iniciativas jornalísticas voltadas à cultura de doação, solidariedade e protagonismo de comunidades. Segundo a diretora-geral de Comunicação da Câmara Municipal do Rio, Priscylla Almawy:
“A favela não é carência, é potência, e esse prêmio ajuda a amplificar essa mensagem para o Brasil inteiro.”
Para assistir diretamente à reportagem especial da Rio TV Câmara que foi premiada, acesse:
É pena que a região está meio abandonada pelo Poder Público. Casas mal conservadas (100% do moradores não tem recursos para manutenção), mecânicos fazendo lanternagem, pintura e mecânica nas ruas. Ruas que não recebem a devida atenção da Comlurb (não há coleta de lixo. O lixo é recolhido em caçambas ou containers que ficam exatamente na via principal que liga o centro a Tijuca, muitas vezes espalhados pelo chão), etc. Pelo seu relato e pela história deveria ser um local para receber mais atenção.
Exato, Paulo, lá, temos um abandono total. Um região tão importante para a nossa história não merece esse tratamento desleixado. Um abraço. Antônio Sá