A história do Rio de Janeiro perdeu muito com a derrubada do Morro do Castelo nos anos 20 do século passado. Apesar das perdas arquitetônicas e monumentais registadas – como a perda da antiga catedral e dos casarios, a região ainda conta com indícios que podem ser identificados pelos observadores mais atentos.
Alguns deles podem ser vistos no antigo Largo da Misericórdia, configuração perdida, se resumindo hoje a um pequeno trecho de rua que beneficia mais os veículos do que os pedestres. No passado, o local foi o coração do Rio Colonial, cenário no qual a aristocracia celebrou as suas alegrias e viveu as suas agruras, e onde se deram os festejos e a vida comercial da cidade.
O espaço, no entanto, é altamente resiliente às transformações urbanas. A visibilização da historicidade do Largo é resgatada no recém-lançado “Rio de Janeiro: 450 anos – Largo da Misericórdia 1565-2015, do professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Jacques Sillos.
A obra cita algumas das construções mais importantes da cidade, entre elas está Igreja da Misericórdia, cuja obra foi iniciada em 1567 e, atualmente, é a Igreja de Nossa Senhora de Bonsucesso (a mudança de nome ocorreu após um milagre eucarístico relatado aqui no DIÁRIO). A igreja tornou-se o templo mais antigo do Rio, depois da demolição da Sé de São Sebastião, no Castelo. O livro cita ainda o que restou da Ladeira da Misericórdia, primeira via a receber calçamento de pé de moleque, em 1617; e o primeiro hospital da cidade, o da Santa Casa da Misericórdia, edificação erigida em estilo neoclássico com mais de 25.000m2 e fachadas imponentes.
Para Jacques Sillos, o Largo da Misericórdia pode ser considerado a primeira praça pública do Rio e onde, em 1584, foi realizada a primeira encenação teatral da cidade, por ocasião da festa de São Sebastião.
“Quando a sede da cidade foi transferida (em 1567) da Urca para o alto do Castelo, houve a ocupação da cidade baixa, que se transformou na parte central do Rio Colonial. No alto, foram erguidos os edifícios do poder, como a Casa de Câmara e Cadeia, e na Rua da Misericórdia se estabeleceu a aristocracia rudimentar e o primeiro comércio de produtos da terra. Na frente da igreja, aconteciam as festas religiosas e os os autos e mistérios da fé”, contou o professor ao jornal O Globo, acrescentando que a sua perspectiva de trabalho trata a região sob o viés da paisagem cultural.
Um das curiosidades da época está na encenação da batalha das canoas entre os índios temiminós e tamoios, promovida durante a festa de São Sebastião, com direito a fogos de artifício. Na ocasião, eram realizadas procissão, desfile de gala e danças. Nesta época, as Irmandades Católicas e suas procissões eram verdadeiras protagonistas da cidade. A população enfeitava as janelas das casas com lampiões e tapetes do Oriente. Infelizmente, esse espaço de congraçamento não existe mais.
A Praça João Paulo II, cujos banquinhos convidam a população ao descanso nos fundos do Museu Histórico Nacional (MHN), foi gradeada. A Igreja de Nossa Senhora do Bom Sucesso, que guarda os altares e os púlpitos da antiga Sé dos Jesuítas, abre hoje apenas em momentos especiais. Estes púlpitos e altares foram usados por figuras como São José de Anchieta. Movimento mesmo só no MHN, antiga Casa do Trem Bélico, que preserva a muralha do antigo Forte de Santiago, na antes Ponta do Calabouço. A fortaleza protegia a cidade do Rio de Janeiro, cuja vida ali transcorria.
“O Largo da Misericórdia faz parte do núcleo original de fundação da cidade, obscurecido com o fim do Morro do Castelo. É um lugar de grande importância, mas quase ninguém sabe onde fica. A falta de cuidado urbanístico leva à desvalorização histórica e cultural, e vice-versa”, afirmou o professor Sillos ao veículo.
Em meados do século XVII, teve início processo de deslocamento do Centro para o que hoje é a Praça Quinze, com as construções governamentais sendo levadas para o Terreiro do Carmo. Com isso, a área do Largo da Misericórdia ganhou ares militares. Sucessivos aterros, que alcançaram o seu ápice no começo do século XX e distanciaram o largo do mar, também alteraram a configuração do espaço. A derrubada do Castelo relegou a antiga praça ao esquecimento, piorado com a construção da Perimetral.
Mas intervenções públicas, como a derrubada do elevado que afastou a cidade do mar e a criação da Orla Prefeito Luiz Paulo Conde, entre o Museu Histórico Nacional e o Porto, são indícios de que o local está voltando à sua posição de protagonismo social e histórico. Além disso, o renascimento da gastronomia e da boemia nas imediações do Paço Imperial tem trazido novo protagonismo à região, que recebeu mais de 40 novos Centros de Cultura com o plano Reviver Cultural da Prefeitura.