Centro Dom Vital: a Igreja e a crítica de cinema

No Brasil as organizações da Ação Católica que se dedicavam ao estudo crítico das obras cinematográficas se desenvolveu ao ponto de gerar um fenômeno conhecido como cineclubismo

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No Brasil as organizações da Ação Católica que se dedicavam ao estudo crítico das obras cinematográficas se desenvolveu ao ponto de gerar um fenômeno conhecido como cineclubismo. Se poderia considerar o projeto Igreja em relação ao cinema em três frentes levando em consideração o método clássico da Ação Católica:

1. Havia uma ação ampla, de censura e classificação, baseada na consideração dos efeitos negativos do cinema como meio de comunicação de massas e concorrente da Igreja;
2. Havia um direcionamento para ações restritas (no sentido não-massivo ou para grupos limitados), baseado na consideração dos efeitos positivos do cinema como meio de formação/educação, de caráter artístico e cultural; e
3. Para contornar a má influência do cinema ou para aproveitar as suas potencialidades, era necessária uma educação do público. E, para que essa educação se efetivasse, era necessária a competência dos seus agentes-mediadores: as ações de censura e classificação demandavam uma competência para ver e julgar por parte dos que compunham o grupo censor; do mesmo modo, para que as ações de formação fossem implementadas, era necessária uma determinada “habilitação” dos que atuariam como educadores. (Silveira e Santos, 2015)

Deve ser mencionado no contexto da relação Igreja/Cinema, e também no contexto da própria história da crítica cinematográfica no Brasil, o caderno de cinema da revista A Ordem do Centro Dom Vital, que por anos contou com a colaboração do acadêmico Otávio de Farias, o primeiro a aventurar-se no Brasil em uma história e teoria do cinema.

O caderno de cinema da revista A Ordem antecipou em algumas décadas um interesse que se tonaria frequente nos cineclubes da Ação Católica apenas nos anos 1940 e 1950. A capacidade firme de análise de Otávio de Farias fez com que conseguisse analisar de forma contundente os grandes movimentos de um cinema ainda embrionário.

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Crítica de cinema publicada em 1929 na revista A Ordem por Octavio de Faria

Ao referir à relação da Igreja Católica com o cinema moderno, imediatamente se recordará a encíclica, de 1936, Vigilanti Cura, do Papa Pio XI, que marca a primeira menção do magistério eclesiástico à questão. Com Vigilanti Cura, o primeiro passo estabelecido nessa relação não parecia cobrir a questão do cinema na inteireza da sua complexidade. Na verdade, se estava levando em conta primordialmente aspectos ligados ao conteúdo moral das obras e a legitimação dos órgão encarregados da censura e classificação dos filmes, especialmente centrado no cinema norte-americano.

Já com o Concílio Vaticano II, a perspectiva se transformará e se tornará mais cauta ao cinema, em uma concepção mais positiva e atenta ao fenômeno na sua totalidade. Será no Decreto Inter Mirifica sobre os meios de comunicação social, de novembro de 1963, que chegaremos a uma sentença e a um apelo de atenção ao fenômeno:

Como não convém absolutamente aos filhos da Igreja suportar insensivelmente que a doutrina da salvação seja obstruída e impedida por dificuldades técnicas ou por gastos, certamente volumosos, que são próprios destes meios, este sagrado Concílio chama a atenção para a obrigação de sustentar e auxiliar os diários católicos, as revistas e iniciativas cinematográficas, as estações e transmissões radiofônicas e televisivas, cujo fim principal é divulgar e defender a verdade, e prover à formação cristã da sociedade humana.  (Inter Mirifica n. 17).

E ainda mais adiante:

Todavia, como a eficácia do apostolado em toda a nação requer unidade de propósitos e de esforços, este sagrado Concílio estabelece e manda que em toda a parte se constituam e se apoiem, por todos os meios, secretariados nacionais para os problemas da imprensa, do cinema, da rádio e da televisão. A missão destes secretariados será de velar por que a consciência dos fiéis se forme rectamente sobre o uso destes meios e estimular e organizar tudo o que os católicos realizem neste campo. (Inter Mirifica n. 21).

Seria interessante procurar compreender a evolução da relação eclesial em seu modus pós-conciliar na mesma esteira em que se avançou na compreensão dos diversos temas de relevância social durante esse período. Parece haver uma saída de um relativo pessimismo e até de uma pré indisposição, para um otimismo receptivo e, por vezes, ingênuo. 

Em 1964, o diretor italiano Pier Paolo Pasolini, um reconhecido marxista, surpreendeu ao empreender um longa-metragem sobre a vida de Jesus Cristo a partir da narrativa do Evangelho de São Mateus. Surpreende ainda mais no prólogo da película a dedicatória da obra ao Papa João XXIII.

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O Evangelho segundo São Mateus (1964), filme dedicado por Pasolini ao Papa João XXIII

É certo que o Concílio institucionalizou uma prática já comum nos meios de ação do laicato, que organizavam com periodicidade grupos de análise fílmica que, apesar de em seus primórdios padecerem dos mesmos objetivos de resguardar a moral e contribuir com a censura, com o passar dos anos transferiram a finalidade para a primazia da crítica e da análise artística cada vez mais apurada.  

Como em outros momentos da história, o clero italiano dos anos 1960, especialmente os jesuítas, pareciam muito mais abertos a compreender e apreciar o mundo em transformação do que muitos setores reacionários do laicato, que contavam com o patrocínio desta mesma hierarquia, talvez mais motivados pela prudência, pelo senso institucional e pela manutenção do status quo do que pela convicção pessoal. Pasolini, ao enfrentar dificuldades para o lançamento de sua adaptação do Evangelho, encontrou o patrocínio do ultraconservador Cardeal Siri, de Gênova, como relata Luis Antonio Vadico:

Quando pediu apoio financeiro do grupo ‘Pro civitate Christiana’, seu diretor procurou o conselho do poderoso e conservador arcebispo de Gênova, Giussepe Siri que, surpreendentemente, encorajou-o a promover o projeto de Pasolini. (Vadico, 2016) 

Talvez não seja tão difícil intuir o porquê de uma ação como essa. Seria reducionista pensar que o clero, especialmente o alto clero, que contava com uma privilegiada formação intelectual fosse se fechar a uma evidente obra-prima como a de Pasolini por mero capricho ideológico. Ainda que neste período não se pudesse dar o devido reconhecimento oficial e público por parte das altas esferas eclesiásticas, este não tardaria por vir.

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