Cris Linhares e Filipi Gradim: Chico Buarque, o aedo brasileiro

Mesmo com as reviravoltas amorosas de que é capaz, podemos afirmar que o casamento mais duradouro de um cantor é com sua própria voz. Chico Buarque que o diga!

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Mesmo com as reviravoltas amorosas de que é capaz, podemos afirmar que o casamento mais duradouro de um cantor é com sua própria voz. Chico Buarque que o diga! Em “A voz do dono e o dono da voz”, canção lançada em Almanaque (1981), ele entrega o jogo ao revelar que “casal igual a nós, de entrega e abandono/de guerra e de paz, contras e prós/fizeram bodas de acetato”[1]. Tirante o senso de humor típico do compositor carioca, podemos extrair desses versos razões que justificam o ofício do cantor. É na entrega e no abandono, na guerra e na paz, no contra e no pró que a música vem à tona como um signo, ou seja, que ela se realiza como canção; e, por fim, essa canção integra um álbum, um bloco de sensações sonoras. “O dono prensa a voz” e “a voz resulta um prato”, uma bolacha de vinil[2]. Chico está nos dizendo, no íntimo, o que sucede no processo genético do artista, que muitas vezes acreditamos ser solitário, mas não é. O cantor seduz a voz, com ela tem uma cópula, e da cópula vem o filho. Criar é, então, conceber em parceria.

Tendemos a crer que o processo criador é puro prazer, já que depende, por assim dizer, do ato sexual, como defendeu Nietzsche[3]. Para Chico, copular com a própria voz é doloroso, já que “às vozes, Deus só deu seu dó”[4]. Sendo assim, cantar não é um ato mecânico de soltar a voz, meramente cuidando em acompanhar as notas. É bem mais que isso! Há dor, há contradição; e é preciso impregnar de sentido essa luta para dar vida à canção. Então, Chico não adere ao que Milton e Brant defendem em “Canções e momentos”: “há canções e há momentos/que não sei como explicar/em que a voz é um instrumento/que eu não posso controlar”[5]. Mesmo que o cantar seja arroubo bandido, que nasça de um conflito entre o cantor consigo mesmo, a intenção de Chico é outra, já que, ao soltar a voz, “o tempo canta”; e ao cantar o tempo, e tudo o que por ele é atravessado, o artista incide certa luz, pois “os poetas, como os cegos, podem ver na escuridão”[6].

Ainda assim, com tal poder visionário, o artista apenas tateia a realidade, sem vê-la por completo, a olho nu. Diante das musas, Chico não ousa tanto: “serei eu esse cantor confuso que te rodeia”[7]. Antes, se satisfaz rodeando indivíduos, afetos e gestos, atualizando o drama do poeta helênico, que invoca as Musas para que cantem acontecimentos de momentos históricos cujo acervo é inacessível aos despossuídos do dom da lírica. O dote artístico do cantor é ter ouvidos abertos ao sussurro das Musas, captando a revelação concedida por elas; e, através do belo canto, essa revelação não venha por inteira, tal como é realmente, mas travestida de obscuridade.

Desde os tempos homéricos, tudo o que o cantor narra, ao se atentar ao que as Musas assopram, é composto e inseparável da utilização do recurso da Alétheia, ou seja, o ato de ocultar e desocultar condições de realidades existentes, mas também lançar luz sobre o que não pode ser esquecido, mas que também não se mostra em completude. É lúdica a relação entre o cantor e sua inspiração, já que ele experimenta um jogo duplo, que convida o artista a apostar na brincadeira, pois essas divindades sonoras, as Musas, quando são invocadas, ora apresentam ora escondem o que acreditam ser necessário, cabendo ao poeta/compositor a parte que será matéria prima de sua epopeia; e, por conseguinte, compartilhá-la com a comunidade, com o auxílio da lírica.

Nas presentes linhas, chamamos Chico Buarque de Holanda de Aedo, o homem acasalado com a própria voz, que tem por ofício o compartilhamento de uma experiência lúdica com as deusas musicais; que, na verdade, é resultado de um esforço de memória, ou seja, de tudo o que a imaginação do artista reteve no jogo poeta-Musas. Esse compartilhar amplia a experiência do indivíduo para uma esfera conjunta comum/social. Desse modo, o mecanismo lúdico e imagético do apresentar-esconder faz com que a experiência de inspiração divina seja coletiva, provocando o público que ele se posicione como testemunha dos acontecimentos revividos pelo poeta.

Na antiga Grécia, talvez o período histórico no qual o poeta mais gozou de prestígio, o ofício do aedo era fundamental, uma vez que seu canto era o fenômeno que trazia à presença do povo algo que se encontrava oculto pelo próprio mundo. O que vinham à tona eram imagens míticas dos heróis e dos deuses que serviam de esteio ético à população. Somente ao aedo era dado o direito desse pronunciamento e o dever de cantar a cultura e a tradição do seu povo.

Observando o modus operandi em que se dá a epifania aédica na sua maneira de fazer poesia, notam-se evidentes similaridades entre poetas gregos e o compositor popular brasileiro.  Em Paratodos (1993), Chico nos dá pistas de que é uma espécie de aedo pós-moderno que narra um percurso de imagens vividas através de “tortuosas trilhas”, ao longo de trinta anos de história: “vi cidades, vi dinheiro/bandoleiros, vi hospícios/moças feito passarinho/avoando de edifícios”[8]. Dessa narrativa, Chico lança luz sobre diversos personagens, remontando à mesma busca estética dos gregos, pois o cantor brasileiro tem também como foco ocupar-se dos dramas existenciais resultantes do páthos humano que se dispersam em territórios múltiplos que formam o tecido social brasileiro. Destarte, Chico Buarque concebe o que José Ruy Gandra definiu muito bem, a saber, a capacidade de “construir tanto grandes mosaicos poéticos da realidade brasileira quanto traduzir de um modo altamente inspirado as glórias e misérias do cotidiano”[9].

Chico, o aedo brasileiro, demonstra, ao mesmo tempo, tamanha habilidade e intimidade com palavras e harmonias e com a vivência de mundo, descortinando conflitos e trazendo à boca de cena o trágico como problema central de suas composições. Mesmo nos momentos nostálgicos presentes na fase sessentista, o trágico está lá encorpando dramas, coabitando com o teor lírico neorromântico herdado da escola viniciana, como vimos em “Ela desatinou”: “ela desatinou/viu morrer alegrias/rasgar fantasias”[10]; ou em “Retrato em branco e preto”, quando o poeta canta que já conhece “as pedras do caminho”, seguindo “passos dessa estrada” que não vão “dar em nada”[11]. No ato compositivo de Chico, letra e música tornam-se algo único e irremediavelmente inseparáveis em seu propósito de não permitir que o conflito do personagem seja esquecido.

Para além da aventura onde o eu lírico revive seu drama, o aedo Chico também pinta uma paisagem onde as identidades das gentes são vislumbradas e seus perfis mesclam-se com a história do Brasil, até mesmo nos personagens mais determinantemente caricatos. Chico aponta cirúrgica e incontestavelmente para aquilo que seria o mais desprezível ou mesmo escandaloso em muitos nichos da sociedade. Vale frisar que, pela voz reveladora do aedo pós-moderno, acessamos não o desconhecido, como faziam os poetas na Grécia antiga, mas sim aquilo que queremos esquecer e invisibilizar. O oculto é o que em nós se encontra em estado inconsciente; mas o ocultado é o que, ao contrário, não se quer ver, o que insistimos em apagar com certa regularidade e indiferença.

Chico restitui, em forma de poesia, uma classe de indivíduos rasurados pelo classismo, pelo machismo e pelo racismo. Por isso, os refletores incidem sobre a vida em corda bamba do “Pivete” que “zanza na sarjeta”, que “meio se maloca/agita numa boca/descola uma mutuca/e um papel”[12]; sobre o destino do “Meu guri”, que “já foi nascendo com cara de fome”, que “chega no morro com o carregamento/pulseira/cimento/relógio/pneu/gravador”[13]; sobre a agonia da mãe do guri que reza para o filho não ser triturado pelo sistema; sobre a “Gente humilde” que “vai em frente/sem nem ter com quem contar”[14]; sobre o operário da “Construção” que “agonizou no meio do passeio público/morreu na contramão/atrapalhando o tráfego”[15]; sobre a “Geni”, cujo “corpo é dos errantes, dos cegos, dos retirantes, é de quem não tem mais nada”[16]; e sobre o malandro que “anda de viés” “entre deusas e bofetões/entre dados e coronéis/entre parangolés e patrões”[17].

Ao dar forma e voz a tais imagens, Chico desenha, conforme um trabalho brilhantemente arquitetônico, diversos perfis que, na vida, carecem de visibilidade, de compreensão e de inclusão. O poeta/cantor, então, subverte o sistema ao enaltecer pessoas ordinárias e plasmar imagens de heróis que são dotados de virtudes; mas que, no entanto, expõem as feridas sociais e desgraças cotidianas, sem o menor pudor, assim como ocorre em Édipo Rei ou em Medéia, inúmeras vezes encenados e cada vez mais essenciais. Contudo, essas muitas vezes desprezíveis personas, são responsáveis por desnudar a humanidade de seus valores ultrapassados, pois trazem às vistas suas fragilidades e retificam o quanto que, enquanto pessoas, somos parecidos em nossas misérias. Forçando-nos, assim, a reconhecer qual é o nosso lugar comum, ou seja, nosso topos sem hierarquias, crenças ou qualquer tipo de ação que justifique supremacias sociais ou raciais.

Conforme dissemos, em muitas canções, Chico dedica-se a individualizar dramas, sejam os seus, ou seja, os do próprio poeta, sejam os de seus personagens vivos. Mas também o aedo Chico canta os vícios e virtudes do povo, como, por exemplo, em “Vai passar”, quando, através da mnemotécnica, nos faz recordar páginas felizes (e infelizes) da nossa história. Vê-se que é de total responsabilidade do aedo nos despertar do sono dogmático e nos apresentar o espelho de nossas imperfeições. Por isso, urge cantar que “a nossa pátria mãe tão distraída/sem perceber que era subtraída/em tenebrosas transações”, que “seus filhos erravam cegos pelo continente/levavam pedras feito penitentes/erguendo estranhas catedrais”; mas que, ainda assim, “um dia, afinal, tinham direito a uma alegria fugaz/uma ofegante epidemia/que se chamava o carnaval”[18].

Na obra imagética de Chico, as gentes traduzem-se como imbatíveis forças da natureza; são dotadas de um inacreditável poder de reconstrução, que só o trabalho é capaz de oferecer; elas afagam a terra, conhecem os desejos da terra, fecundam o chão forjando o milagre da vida, como vimos em “O cio da terra”. Sendo assim, procuram ir até o limite de sua humanidade, buscando alcançar a justiça e o bem comum. Desse modo, através do exemplo moral destituído de cânones e de normatividades, Chico Buarque compõe aparências de realidade que exortam o que há de demasiado humano em todos nós. Através da experiência lúdica e gozosa do belo, fazendo uso de canções – e não de máximas morais – o aedo pós-moderno, inspirado pelas Musas, alimenta e desenvolve a formação ética do público. Ele incita aos que apreciam os sambas, modinhas, choros e blues, a construir uma consciência reflexiva e aprofundada, resultante dessa escavação da alma humana empreendida pelo artista. Com isso, permite que a busca pelo “o quê”, “o porquê” e o “para quê”, ou seja, perguntas originárias que sempre se nos insinuaram, possam se manter vivas e, por conseguinte, abrindo caminho para o reconhecimento de si e o questionamento constante.

Reconstruindo o Brasil em imagens musicais, Chico acaba por inculcar em nós a fé nessa terra ancestral, plural e fecunda, que ainda está em vias de construção. Por isso, abusa de uma inspiração contestadora e insubordinada que, à imagem e semelhança do divino, pela força da palavra cantada, funda um reino humano na terra, refazendo o mundo por sua conta[19]; reino esse pleno de lucidez e justiça, onde o humano ocupa, legisla e comanda; e onde, enfim, a canção de Chico é a tela, sobre a qual o ocultado resplendece tal como é, real, e nós nos reconhecemos nessa pintura de costumes como que integrantes e cúmplices do que nela se enquadra de denso e belo.


[1] O DONO da voz. Intérprete: Chico Buarque. In: Almanaque. Compositor: Chico Buarque. Rio de Janeiro: Philips, 1981.

[2] Idem, ibidem.

[3] NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. § 1. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

[4] O DONO da voz. Intérprete: Chico Buarque. In: Almanaque. Compositor: Chico Buarque. Rio de Janeiro: Philips, 1981.

[5] CANÇÕES e momentos. Intérprete: Milton Nascimento. In: Yauraetê. Compositor: Milton Nascimento e Fernando Brant. Rio de Janeiro: CBS Records, 1987.

[6] CHORO bandido. Intérprete: Chico Buarque. In: Paratodos. Compositor: Chico Buarque. Rio de Janeiro: BMG/RCA, 1993.

[7] ROMANCE. Intérprete: Chico Buarque. In: Paratodos. Compositor: Chico Buarque. Rio de Janeiro: BMG/RCA, 1993.

[8] PARATODOS. Intérprete: Chico Buarque. In: Paratodos. Compositor: Chico Buarque. Rio de Janeiro: BMG/RCA, 1993.

[9] GANDRA, José Ruy. In: Paratodos – Abril coleções. São Paulo: Abril, 2010, p.14.

[10] ELA desatinou. Intérprete: Chico Buarque. In: Chico Buarque de Hollanda vol.3. Compositor: Chico Buarque. Rio de Janeiro: BMG/RCA, 1968.

[11] RETRATO em branco e preto. Intérprete: Chico Buarque. In: Chico Buarque de Hollanda vol.3. Compositor: Chico Buarque. Rio de Janeiro: BMG/RCA, 1968.

[12] PIVETE. Intérprete: Chico Buarque. In: Chico Buarque. Compositor: Chico Buarque. Rio de Janeiro: Philips, 1978.

[13] O MEU guri. Intérprete: Chico Buarque. In: Almanaque. Compositor: Chico Buarque. Rio de Janeiro: Philips, 1981.

[14] GENTE humilde. Intérprete: Chico Buarque. In: Chico – 50 anos: o cronista. Compositor: Chico Buarque, Garoto e Vinícius de Moraes. São Paulo: Polygram, 1994.

[15] CONSTRUÇÃO. Intérprete: Chico Buarque. In: Construção. Compositor: Chico Buarque. Rio de Janeiro: Philips, 1971.

[16] GENI e o Zepelim. Intérprete: Chico Buarque. In: Chico – 50 anos: o cronista. Compositor: Chico Buarque. São Paulo: Polygram, 1994.

[17] A VOLTA do malandro. Intérprete: Chico Buarque. In: Chico – 50 anos: o malandro. Compositor: Chico Buarque. São Paulo: Polygram, 1994.

[18] VAI passar. Intérprete: Chico Buarque. In: Chico Buarque. Compositor: Chico Buarque. São Paulo: Polygram, 1984.

[19] CAMUS, Albert. O homem revoltado. Trad. Valérie Rumjanek. Rio de Janeiro: Record, 2008, p.294.

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