Crítica: ‘Graças a Deus’ (França, 2018)

Sem sensacionalismo, filme alerta e propõe uma reflexão sobre o problema do abuso dentro daIgreja Católica; último caso notificado no Rio é de 2013

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Foto: Divulgação/Graças a Deus

A Páscoa é o período em que os cristãos rememoram o martírio, o sacrifício e a ressureição de Jesus Cristo, que se entregou em corpo e sangue para salvar a humanidade. Para muitas pessoas esse é também um momento de reflexão: ”O que estamos fazendo para tornar o mundo um lugar melhor?”. Como cristão, tiro essa época para pensar em como tenho agido com a minha família, meus amigos e a sociedade na qual estou inserido de uma maneira geral, uma vez que me considero um carioca consciente. O curioso é que reflexões podem surgir do nada, em um instante de ócio, ou podem ser provocadas por fatores externos. Nesse sentido, filmes são para mim instrumentos muito poderosos. Eles me levam a lugares inimagináveis e me fazem pensar em coisas diferentes. Foi o que ocorreu, por exemplo, outro dia, quando revi ”Graças a Deus”, longa-metragem francês de 2018.

Com direção e roteiro do cineasta François Ozon, o filme é baseado em fatos reais ocorridos nos bastidores da Igreja Católica, em Lyon, na França. A história é assustadora. A partir da denúncia de um homem chamado Alexandre Hezez, descobriu-se que, mais ou menos, entre 1971 e 1991, o padre Bernard Preynat, um carismático capelão do grupo de escoteiros de Sainte-Foy-Les-Lyon, assediou e abusou sexualmente de centenas de crianças e jovens. A atitude do primeiro denunciante levou outras vítimas a prestarem denúncias bastante semelhantes. Alguns desses casos já tinham prescrito criminalmente e serviram, inicialmente, como alerta em relação a um problema gravíssimo. No entanto, em conjunto, os relatos desses crimes, passíveis de punição ou não, serviram de subsídio para a ação da justiça civil e eclesiástica.

Assim como em ”Spotlight” (2015), de Tom McCarthy, obra vencedora do Oscar que retrata um escândalo de pedofilia em Boston, nos Estados Unidos, o grande acerto do realizador foi não descambar para o sensacionalismo. Crimes foram cometidos e os culpados são homens como Preynat, criaturas falhas e dotadas do livre arbítrio. O cineasta se utiliza de um espectro amplo de personagens. Os criadores da ”Palavra Libertadora”, a associação que reúne as vítimas, são católicos, ateus e agnósticos. Quando se queixam de certa lentidão por parte das autoridades religiosas na hora de tomar providências, deixam claro que essas serão importantes para todos, inclusive para os fiéis que confiam na Igreja. Lá pelas tantas, alguém diz que a ideia de um padre cometer abusos é inconcebível. E é mesmo.

Após assistir ao longa-metragem em questão, refleti que não canso de me entristecer com a capacidade do homem em perpetrar o mal contra os indefesos. Existe uma bela passagem do evangelho de São Mateus que diz o seguinte: ”Então, trouxeram-lhe algumas crianças para que lhes impusesse as mãos e orasse por elas. Os discípulos, contudo, os repreendiam. Mas Jesus lhes ordenou: ‘Deixai vir a mim os pequeninos, não os impeçais, pois o Reino dos Céus pertence aos que se tornam semelhantes a eles”’.

Indo do campo religioso para o filosófico, nos livros ”O Mundo de Sofia” e ”O Dia do Curinga”, o autor norueguês Jostein Gaarder diz que os verdadeiros filósofos são aqueles que conservam a pureza e a ingenuidade infantil. Ter isso em mente e saber que religião e filosofia funcionam como construtos que visam a uma vida mais harmoniosa em sociedade só tornou minha reflexão mais triste.

Ao alcance de um clique e de uma rápida busca na internet, é possível constatar que o Rio de Janeiro não está livre da chaga que é o assédio e o abuso por parte de quem deveria pregar a palavra de Deus e ajudar a zelar pelos indefesos. No entanto, oficialmente, os últimos casos de que se tem notícia de pedofilia no seio da Igreja Católica fluminense datam de 2007 e 2013.

Ou seja: se não estamos totalmente imunes a esse mal, não vivemos a crise que Lyon e Boston viveram. Desta forma, ”Graças a Deus” funciona não só pelas qualidades técnicas habituais de uma produção de François Ozon, um dos cineastas franceses mais palpitantes da atualidade, mas como um lembrete de que devemos nos manter sempre alertas – já diriam os escoteiros – em relação ao zelo com os indefesos. Uma ótima Páscoa, desliguem os celulares e boa reflexão, digo, diversão.

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