Márcia Silveira – Crítica literária: Terra Úmida

Terra Úmida, primeiro romance da autora amazonense Myriam Scotti, conta a história de uma família de judeus que saiu de Marrocos no início do século XX para viver em Manaus

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Terra Úmida, primeiro romance da autora amazonense Myriam Scotti, conta a história de uma família de judeus que saiu de Marrocos no início do século XX para viver em Manaus, em busca de prosperidade e de liberdade para exercer a sua religião. Àquela época, a região amazônica estava em pleno desenvolvimento em função do ciclo da borracha e muitos judeus marroquinos, perseguidos por sua religião, faziam a longa viagem de navio para o Brasil em busca de uma vida mais tranquila para suas famílias.

O livro é dividido em duas partes. A primeira é narrada por Abner, filho mais velho de Syme e Judah. O personagem, já idoso, alterna entre lembranças da infância em Tânger, da adolescência, quando veio para o Brasil com a família, e da idade adulta, quando sofreu com a morte de sua mãe. Judah e o filho caçula, Isaac, trabalham como regatões – vendedores que navegam pelos rios amazonenses para levar mercadorias aos povoados mais longínquos. Abner, por sua vez, escolheu trabalhar na marinha mercante, o que o fez se afastar de sua família e também das tradições judaicas. Em função de suas profissões, pai e filhos passam semanas longe de casa, o que provoca profunda solidão e amargura em Syme.

A segunda e maior parte do livro contém os diários de Syme, encontrados pelos filhos Abner e Isaac após sua morte. Syme, na tentativa de compreender sua própria complexidade, resolve escrever, pois vê no diário a única forma de não ser julgada pelo que sente e pensa. São relatos que vão desde a juventude até as vésperas de sua morte. Ao acompanhar seus escritos, entramos em contato com o que se passa na mente da personagem, que precisou renunciar a seu sonho de estudar e ser professora para viver o que lhe foi imposto pela tradição – um casamento com alguém que pouco conhecia, o silenciamento e a obediência. No Brasil, sentindo-se abandonada pelo marido e pelos filhos, Syme tenta seguir em frente, mas a saudade da família e da terra que precisou deixar para trás a prendem ao passado.

Para escrever esta obra, a autora Myriam Scotti empreendeu uma extensa pesquisa, que incluiu uma viagem ao Marrocos, além de buscar as lembranças de sua própria família. Esta investigação afetiva faz de Terra Úmida uma bela narrativa, com comoventes descrições de paisagens amazônicas e marroquinas, cores e sabores que fazem parte da vida das personagens e envolvem o leitor. Além disso, através da narração de Abner e dos diários de Syme, tomamos conhecimento de rituais da tradição judaica, como a shivá, o período de luto pela morte de uma pessoa próxima:

“O fim da shivá significava que a pior parte do luto havia se cumprido e seria o momento de voltarmos a nos preocupar com o nosso corpo, com a nossa casa e, acima de tudo, em como viveríamos os nossos dias dali em diante. À medida que eu limpava a poeira dos cômodos e começava a pôr em ordem o que estava fora do lugar, sentia mais e mais necessidade de me organizar por dentro.”

A história contada por Myriam explora a complexidade das relações familiares e os conflitos que podem ocorrer, especialmente quando entram em jogo uma tradição familiar e religiosa e o papel imposto às mulheres na sociedade. É um romance com personagens ricos, de personalidades distintas; uma história que fala de sonhos, perdas e desilusões. Traz também uma importante desmistificação da maternidade, quando trata da relação problemática entre Syme e seu filho mais velho.

Terra Úmida foi publicado em 2021 pela editora Penalux. Antes de ser lançado, foi escolhido como melhor romance no Prêmio literário Cidade de Manaus 2020, na categoria regional. No Spotify é possível encontrar uma trilha sonora que remete ao clima, aos personagens e à história deste belo romance.

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Livro: Terra Úmida
Autora: Myriam Scotti
Editora: Penalux
Páginas: 268
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Nota: 5 (de 5)

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