Sabe aquele filme que você nem daria nada, acha que vai ser uma coisa, um tiroteio desenfreado, com ação maluca, mas que acaba sendo muito mais? Muito mais. Sim, Pecadores (Sinners) é uma obra que mergulha na ancestralidade de uma forma extremamente bela, pontual e lírica. Com uma trilha sonora arrepiante e uma mescla de terror, drama e crítica social, o novo longa-metragem de Ryan Coogler (Creed, Pantera Negra) é, basicamente, um filmaço.
Inclusive, peço perdão pelo trocadilho infame, mas, sem dúvidas o pecado é não ver Pecadores no cinema. Não espere para chegar no streaming. Um rapaz comentou na saída da cabine de imprensa que é “Um Drink No Inferno melhorado”. Não, meu caro rapaz, o filme que citou, de 1996, é divertido e assisti muitas vezes na minha infância e adolescência. Com George Clooney, Quentin Tarantino e Salma Hayek, tem excelentes cenas de ação, empolga e entretém, contudo, está bem longe das camadas e da profundidade que Pecadores entrega. Entretanto, vale ressaltar que Ryan usou sim esse bom filme como inspiração.
Em Pecadores, Ryan Coogler mergulha no terror sobrenatural para investigar traumas históricos e pessoais enraizados na experiência negra americana. Ambientado no Mississippi da década de 1930, o filme acompanha os irmãos gêmeos Fumaça e Fuligem (ambos por Michael B. Jordan, que não decepciona) em seu retorno à cidade natal, onde forças ocultas os confrontam com uma violência ancestral. Ao integrar folclore, espiritualidade afro-americana e blues em sua narrativa, Coogler constrói um cinema que mescla gêneros e dialoga com o passado escravocrata, a segregação racial e fantasmas da memória coletiva.

O jovem Sammie (o ótimo Miles Caton) tem o dom da música, um dom que abre portais entre tempos e mundos. Aliás, uma cena em especial, quando ele toca no clube, é de uma beleza, de uma riqueza simbólica tão afinada que me fez sorrir embasbacado enquanto assistia. Por outro lado, Delta Slim (Delroy Lindo) é um alívio cômico perfeito. Em momentos de grande tensão, ele entrega piadas inesperadas e bem colocadas.
Impossível não ressaltar e elogiar a trilha sonora de Pecadores. Afinal, é um mergulho sensorial e ancestral que eleva a obra a um novo patamar de intensidade e profundidade emocional. A base é de Ludwig Göransson, o qual é peça fundamental na criação das atmosferas presentes no longa. A trilha como um todo costura raízes do blues do Delta, cantos irlandeses (filídh), tradições griots da África Ocidental e espiritualidade afro-americana com uma precisão quase mística. Há hip-hop também e canções como This Little Light of Mine, na voz do DC6 Singers Collective e do Pleasant Valley Youth Choir, ecoam resistência e fé, enquanto clássicos como Pony Blues, My Babe e Grinnin’ In Your Face recuperam o espírito cru do blues original. O uso de vozes como a de Cedric Burnside, Rhiannon Giddens, Big Joe Williams e Rod Wave conecta gerações e experiências com intensidade visceral. Em Pecadores, a música não acompanha a narrativa — ela a convoca, a encarna e a amplifica, tornando-se parte indispensável da alma viva do filme.
Pecadores é um projeto íntimo de Ryan Coogler, que revisita suas origens familiares no Mississippi para construir uma história enraizada em dor e pertencimento.

Ao ambientar o filme durante a era Jim Crow, um dos períodos mais cruéis da segregação racial nos Estados Unido, o diretor entrelaça racismo, espiritualidade e resistência cultural numa trama densa e simbólica. As múltiplas referências que alimentam o longa não apenas enriquecem a ambientação, como transformam o terror em ferramenta de reflexão sobre identidade, ancestralidade e memória coletiva. Ryan vai pincelando dores, amores e referências históricas com maestria. Contando um pouco aqui e acolá e deixando o bastante para a percepção do espectador.
Enfim, é o melhor filme que vi em 2025 até agora. Aquele que todos os jornalistas e críticos presentes saíram comentando. Veja só, isso não acontece sempre, pelo contrário. Muitas vezes a exibição acaba e as pessoas saem falando de outras coisas, outras obras. Mas aqui não. Cada um saiu com suas próprias impressões e simbologias captadas. É filme para ver mais de uma vez para poder perceber as nuances e cores, símbolos e sabores.
A forma como Pecadores começa e a forma como termina é linda, poética. Verdadeiramente emociona. Um único dia que muda tantas vidas. O diálogo final encerra a trama com uma melancolia pungente. Ah, e fique até depois dos créditos, vai valer a pena. É divino.