Dauro Machado – Todos os reis estão nus: Uma pequena crônica sobre a realidade política

Colunista do DIÁRIO DO RIO compartilha texto de Railson da Silva Barboza, bacharel em Filosofia e Doutorando e Mestre em Política Social

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Recebí este interessante texto sobre o atual momento que vivemos e acho que vale muito compartilhar com os leitores de nossa Coluna por tratar diretamente de temas tão em voga no Brasil e no próprio Rio de Janeiro. Com a devida autorização do autor republico este importante arrazoado na Coluna:

TODOS OS REIS ESTÃO NUS: Uma pequena crônica sobre a realidade política.

Railson da Silva Barboza.

Bacharel em Filosofia (PUC-Rio). Doutorando e Mestre em Política Social (UFF)

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No início desse ano ganhei um exemplar do livro que faço menção no título desse texto, organizado pelo jornalista Rafael Carriello e escrito pelo saudoso escritor e psicanalista Contardo Calligaris (1948-2021). A obra compila diversas crônicas escritas durante cinco anos (2008-2013), abordando temas como política, comportamentos e cultura em geral. Prende a atenção, além do título, a desenvoltura de Calligaris ao trabalhar diversos temas do nosso dia-a-dia sem perder a eloqüência e o tom irônico-crítico, que sempre me chamou a atenção. Sem dúvida foi uma grande virtude do italiano, que consequentemente me influenciou.

Pois bem. O título do livro faz menção ao conto famoso do dinamarquês Hans Christian Andersen, que conta a famosa história de um rei muito vaidoso e um bandido espertalhão, que se passa por alfaiate. O falsário, conhecendo as fraquezas vaidosas do rei, promete que fará uma veste maravilhosamente bela que somente os mais inteligentes conseguiriam ver. Ou seja, não seria destinada aos “olhos ignorantes”. Do momento de confecção até o momento final, os nobres elogiavam e maravilhavam-se com o trabalho do pseudo-artesão, sendo que não existia absolutamente nada ali produzido. Era tudo uma farsa. Porém se algum atestasse o contrário seria tachado de estúpido e ignorante, ficando manchada sua reputação dentro da corte. Na apresentação de sua veste magna para a corte, realizada numa grande parada na cidade, o rei desfilava convicto de sua realeza e magnitude sabedoria, critério primordial para a manifestação ocular das vestes. Ninguém esboçava reação, não havia coragem no povo, tanto em denunciar a nudez explícita do rei quanto em se “autoproclamar” ignorante. 

Uma criança no meio da multidão, em sua ingenuidade e sinceridade, ao olhar tal cena grita: “O rei está nu, coitado! O rei está nu!”. A partir daquele brado feito pela criança o povo, aos poucos, murmurou e afirmou gradativamente: “o rei está nu!”. A partir do episódio cômico e vexatório o rei entrou em seu castelo e não quis mais sair, envergonhado. Todavia com o passar do tempo, a rotina da região voltou ao normal; a monotonia das atividades cotidianas retornou; o escândalo acontecido foi esquecido pelo povo. Tudo voltou ao normal.

Esse belo conto poderia ficar nos catálogos de ficção e ser lembrado como uma primorosa criatividade do autor, sem nenhuma relação com a realidade dos fatos cotidianos. Poderia, sim. Mas tragicamente parece uma análise dos fatos escrita sob o gênero literário, utilizando-se da inspiração diária das relações entre os políticos e povo. Quase uma “profecia”.

Na realidade brasileira, em especial a carioca, o rei diariamente se encontra exposto às mazelas diárias da realidade social, dentre as quais destacamos a pobreza, a falta de acesso aos bens públicos, além dos tantos direitos que o Estado nos garante constitucionalmente, mas que na prática são apenas contos. Mesmo diante disso preferem o recluso de seus palácios, como fizera o rei de Andersen, e por vezes se tornam outro personagem do conto: o falso alfaiate. 

Duas coisas me chamam atenção, caro leitor e caríssima leitora. Em primeiro lugar, o caminho percorrido pelos reis para chegarem até o trono, ou como preferirem, ao governo. Se antes eram instituídos pela linhagem real – ou qualquer outra forma de conquista de um principado – atualmente o caminho é mais fácil: o do consenso da maioria do povo. Reconheço que não é muito diferente de outros séculos, se pegarmos como exemplo a Renascença italiana, trazendo como exemplo um escrito do mal interpretado e lido Nicolau Maquiavel (1469-1527), que ao recomendar ao príncipe um método de auxílio para permanência no governo, afirma que “nenhuma fortaleza é capaz de resistir ao ódio do povo”, em sua obra mais conhecida, “O Príncipe” (1532). De fato, tendo o consenso e o amor do povo, sem esquecer a pitada de temor sempre necessária, o príncipe pode construir um império forte e nele residir, como forma de poder e centralidade. Inclusive, tenho a ligeira impressão que muitos de nossos representantes leram e têm como livro de cabeceira essa obra do autor florentino, porém preferem não dizer. Entendo.

Em segundo lugar, se anteriormente o líder tinha a força brutal e sangrenta para intimidar o povo, e justamente era um dos medos que muitos tinham em desafiar os poderes públicos antigos, hoje o próprio povo se intimida e legitima a permanência desses líderes. O consenso da maioria se torna uma arma contra si. Faço mais uma vez menção ao autor florentino, que em seu Livro I dos “Discorsi” diz que “enganado por uma falsa aparência, o povo deseja sua própria ruína”. Acredito, inclusive, que essa falsa aparência seja como a do rei nu do conto dinamarquês, pois sabe-se o que está acontecendo, vê-se toda a nudez das falcatruas públicas, mas da mesma maneira afirma veementemente: “que vestes belas, meu rei!”. Diferentemente do conto, os reis atuais não estão preocupados com sua nudez exposta, muito menos com suas roupas reais invisíveis aos olhos “não sábios”, pois sabem que no final das contas tudo dependerá de um consenso, de uma interpretação, de uma transformação da realidade e dos fatos. O rei não mais entra no palácio para se esconder da nudez, pois não há vergonha, mas orgulho. Essa é a diferença crucial entre o rei do conto antigo para os reis atuais.

Uma afirmação interessante que retomo da apresentação da obra de Calligaris, que serve como norteador das relações públicas de modo geral, é aquela que “o indivíduo contemporâneo depende do olhar dos outros, pois não tem essência: como uma cebola, é feito de mil cascas sobrepostas, sem caroço central”.  Isso mostra o quanto somos movidos pela aparência nas relações, e quanto buscamos ser aprovados e reconhecidos nos olhares dos outros. É uma busca contínua pelo reconhecimento de si, mas que o caminho percorrido passa pela aprovação do outro. Contraditoriamente, busca-se o reconhecimento dos valores político – no caso dos representantes – pelo caminho da aprovação dos outros, da maioria, mas sem preocupação com a nudez exposta, visto que atualmente são algumas dessas peculiaridades que os tornam atrativos. Isso fica explícito na política atual, onde a maioria têm acesso à informação e mesmo diante dela escolhem elogiar a veste imaginária do rei.

Se no conto o povo teve medo em afirmar o que se passava com o rei, seja por não “ser considerado sábio o suficiente aos olhos dos outros” para ver a roupa do rei, ou pelos nobres e corte por mera conivência social e status, que somente após o grito sincero da criança a cena pitoresca foi desmascarada, hoje não há mais medo. Não há mais nada a esconder, está tudo à mostra. Não há a desculpa da roupa régia de mentirinha, ou da suposta sapiência em jogo. Hoje se escolhe e se elege sabendo da nudez, que nem na melhor das hipóteses pode ser coberta. O povo, no fundo, olha pro rei e afirma com alívio: estamos nus!

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