Dois Contos, Dois Finais, Uma Noite: Os Caminhos de João na Virada do Ano

Antônio Sá traz dois minicontos sobre João, um menino em situação de rua

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O Ano Novo é um momento que carrega consigo a promessa de recomeços, mas nem todos têm a oportunidade de vivenciar essa esperança. João, um menino em situação de rua, é o protagonista dos dois minicontos abaixo, que apresentam realidades opostas: uma com final triste, onde o abandono e a exclusão falam mais alto, e outra com final feliz, em que a solidariedade transforma sua vida.

Esses contos refletem as possibilidades que existem para aqueles que vivem à margem da sociedade. Qual delas prevalecerá depende, muitas vezes, de nossas escolhas como indivíduos e como sociedade. Leia abaixo as duas versões e reflita sobre o impacto de nossos atos no destino de quem precisa de ajuda.

A Última Luz do Ano

Na esquina mais escura de uma rua esquecida do centro, estava João, um menino de doze anos que já parecia carregar décadas de cansaço. O vento frio cortava sua pele fina, e o asfalto gelado sob o papelão que o cobria parecia zombar de sua existência. Ele olhava para as vitrines iluminadas das lojas, onde manequins enfeitados com roupas brilhantes pareciam dançar sob luzes que ele nunca alcançaria.

Era véspera de Ano Novo, e o mundo ao redor dele pulsava com uma alegria distante. As pessoas passavam apressadas, carregando sacolas cheias de promessas para um novo ciclo. Ele não pediu nada, não estendeu a mão. Sabia que ser invisível era sua maior proteção.

Ainda assim, naquele dia, um gesto inesperado aconteceu. Uma mulher bem-vestida parou e, contrariando a pressa do mundo, ofereceu a ele um pedaço de panetone e um refrigerante. João aceitou com um aceno tímido e murmurou algo que nem ele entendeu direito. A mulher sorriu, mas não ficou. Ele observou enquanto ela desaparecia entre as luzes.

Com o panetone nas mãos, João caminhou até uma praça próxima. Sentou-se no banco de concreto, onde um gato magro se enroscava. Dividiu o panetone com o animal, que ronronava em agradecimento. Enquanto mastigava lentamente, olhou para o céu. Os primeiros fogos de artifício explodiram, colorindo a noite com tons que ele não sabia descrever.

“Talvez seja esse o tal ‘novo’ que eles falam”, pensou. Mas logo a realidade o puxou de volta. Não havia “novo” para ele, só a repetição do frio, da fome e do esquecimento.

Pouco antes da meia-noite, João caminhou até o alto de uma passarela que cruzava uma avenida movimentada. Dali, podia ver os fogos estourando sobre a cidade, mas o barulho era abafado por sua própria solidão. Ele fechou os olhos e imaginou, por um momento, uma vida diferente: uma casa quente, uma mesa cheia, uma voz chamando seu nome com ternura.

Quando a contagem regressiva começou ao longe, ele abriu os olhos. A multidão gritava: “Dez, nove, oito…” e o som ecoava como uma melodia cruel. Ao chegarem ao “um”, a cidade explodiu em um coro de celebração, mas, para João, era apenas silêncio.

Do alto da passarela, ele deu seu último passo.

O mundo continuou a celebrar, inconsciente de que uma pequena vida havia se apagado. Na manhã seguinte, quando os garis limpavam as ruas cheias de confetes, ninguém reparou no corpo do menino no asfalto, coberto com o cobertor de papelão que ele tanto conhecia.

A última luz do ano, para João, não foi o brilho dos fogos, mas a estrela que ele encontrou no céu enquanto caía, finalmente livre do peso do mundo.

Um Ano Novo, Uma Nova Vida

Era a noite de Ano Novo. João estava sozinho em uma praça, observando as luzes e os fogos que iluminavam a cidade. Ele sentia o contraste entre a festa que parecia tomar conta do mundo e a solidão que o abraçava. A cada explosão de cores no céu, lembrava-se de que era só mais uma noite fria, sem abrigo e sem esperança.

Ao longe, uma multidão comemorava, mas João continuava ali, afastado, com um pedaço de pão seco que encontrara no lixo. Era o suficiente para enganar a fome, pelo menos por algumas horas. Ele se encolheu debaixo de uma velha coberta e olhou para as estrelas, como se procurasse algo — um sinal, uma promessa de que sua vida poderia ser diferente.

De repente, uma voz interrompeu seus pensamentos.

— Ei, garoto, o que faz aqui sozinho?

Era um senhor idoso, carregando uma sacola cheia de comida e um olhar bondoso. João, desconfiado, apenas encolheu os ombros.

— Vem comigo. Ninguém deveria passar a virada do ano assim.

João hesitou, mas o olhar do homem era diferente dos outros que costumava encontrar. Ele parecia genuíno, sem julgamento ou pena. Lentamente, João se levantou e seguiu o senhor até um pequeno quiosque onde um grupo de pessoas compartilhava comida, risadas e histórias.

— Meu nome é Pedro. Este aqui é o lugar onde recebemos quem precisa de uma pausa na vida dura — disse o homem, enquanto colocava um prato cheio de comida nas mãos de João.

A princípio, João mal sabia como reagir. Ele não estava acostumado a tanta generosidade. Mas, aos poucos, o calor das pessoas ao redor começou a derreter a frieza que o acompanhava há tanto tempo.

Quando os fogos anunciaram a chegada do novo ano, João estava cercado de pessoas que o tratavam como igual. Pela primeira vez, sentiu que não estava completamente sozinho.

Pedro, percebendo a necessidade do menino, prometeu ajudá-lo.

No dia seguinte, enquanto ainda dormia sob uma marquise, João foi abordado por um rapaz chamado Alfredo. Ele disse que era voluntário em uma Organização Não Governamental – ONG local que acolhia crianças em situação de rua e que teria sido procurado pelo senhor Pedro que lhe contou sobre a situação do João.

Observando a fragilidade e o potencial escondido nos olhos do menino, Alfredo ofereceu ajuda. João, desconfiado no início, aceitou com relutância. Era difícil acreditar que alguém realmente se importava. No entanto, a bondade sincera de Alfredo acabou por convencê-lo a tentar algo diferente.

Ao chegar à ONG, João foi recebido com um prato quente e um sorriso acolhedor. Lá, ele encontrou mais do que abrigo: encontrou pessoas dispostas a ouvi-lo, a ajudá-lo a superar suas dores e a oferecer uma nova perspectiva. A ONG o matriculou em uma escola e ofereceu apoio psicológico e atividades que despertaram sua curiosidade e criatividade. Aos poucos, ele começou a recuperar a confiança e a sonhar com um futuro diferente.

João começou a estudar, aprendeu a ler e descobriu talentos que nunca imaginara ter.

Com o passar dos anos, João não só concluiu seus estudos como também descobriu um talento especial para a música, algo que a ONG incentivou. Ele se tornou professor de música e voltou à mesma ONG para ensinar outras crianças, ajudando-as a encontrar esperança como um dia ele encontrou. A história de João não foi apenas uma vitória pessoal, mas também uma inspiração para a comunidade, mostrando que, com apoio e oportunidade, até mesmo os desafios mais difíceis podem ser superados.

Nos anos seguintes, já com a vida transformada, João passa a retornar, a cada final de ano, ao quiosque onde tudo começou. Nessas ocasiões, ele leva sacolas de comida e esperança para outros meninos e meninas que se encontram na mesma situação em que ele esteve um dia.

Nesses dias, enquanto os fogos iluminavam novamente o céu, João sorria. Ele sabia que a virada de um ano não era mágica, mas podia marcar o começo de algo novo, desde que existisse alguém disposto a estender a mão.

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