Todo mundo escreveu sobre Clarice Lispector, no seu centenário, ocorrido no último dia 10.
Menos eu.
Chaya Pinkhasovna Lispector, ou, simplesmente, Clarice Lispector foi uma escritora e jornalista ‘brasileira’ nascida em 10 de dezembro de 1920, na cidade ucraniana de Tchetchelnik.
Autora de romances, contos e ensaios, é considerada uma das escritoras brasileiras mais importantes do século XX e a maior escritora judia desde Franz Kafka.
Descendente de judeus, Clarice chegou ao Brasil com seus pais Pinkhas Lispector e Mania Krimgold Lispector, em 1921, fugindo da perseguição aos judeus durante a Guerra Civil Russa.
A história de Clarice é incrível. Daria uma ótima crônica, mas, depois que li esse artigo escrito por Carlos Heitor Cony – e publicado numa revista semanal que não existe mais – vi que nada que eu escrevesse faria qualquer sentido, depois do texto do Cony.
Assim, resolvi publicar o mestre.
“Mulher bonita, mais que bonita: impressionante. Talvez nem fosse bonita, mas bastava olhá-la para nunca esquecê-la.
O rosto projetado para frente, um tipo eslavo, silencioso, pupilas claras que olhavam o mundo sem nunca deixar de ver dentro – sua pátria era ela mesma, aquilo que hoje poderemos chamar de ‘praia’.
Foram muitos os que se apaixonaram por ela – pela mulher, não ainda pela escritora. Durante anos, seus livros ficaram amontoados nos sebos da cidade. Nos jornais e revistas, volta e meia aparecia uma resenha amável feita de estima ou de homenagem à colega – Clarice era também jornalista, creio que trabalhou em ‘A Noite’, jornal antigo que pertencia ao governo e que teve a sua fase de grande vespertino.
Até ser publicada pela turma da Editora do Autor, ela foi uma curiosa espécie de inédita. Todos sabiam que Clarice escrevia e escrevia bem, mas poucos a liam.
Durante anos fez entrevistas, perfis, reportagens para a revista ‘Manchete’, onde colaboravam Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Vinicius de Moraes e outros que também integravam o elenco daquela editora que mais tarde se chamaria Sabiá.
Não foi a crítica que descobriu Clarice Lispector. Foram os leitores, principalmente leitoras, ao atingirem o nível universitário. O grande público custou a chegar, preferia então um tipo de ficção mais colorido e movimentado. O mergulho introspectivo em nossa literatura era seara de iniciados que apreciavam Cornélio Pena e tinham acesso a Katherine Mansfield.
De repente, sua obra começou a ser lida e discutida, era a preferida para teses de mestrado. Vieram em cascata as traduções e os estudos críticos, publicaram-se, no Brasil e no exterior, os primeiros ensaios acadêmicos sobre sua ficção. Nascia um fenômeno que vinha de baixo para cima, que subia do leitor para a crítica, do limbo para o olimpo editorial.
Mais ou menos pela mesma época, quando seus livros saíram do pó para o destaque das livrarias e da mídia, um acidente quase a matou.
Clarice gostava de escrever em uma pequena máquina portátil, que colocava ao colo. Fumava muito, muitas de suas fotos, hoje tornadas clássicas, mostra ela com cigarro na boca. Uns dizem que ela já estava deitada quando cochilou com o cigarro aceso. Saiu do incêndio com queimaduras que cirurgias reparadoras disfarçaram. O belo, o enigmático rosto de Clarice Lispector nunca mais foi o mesmo.
Morava no Leme, num apartamento recuado da rua General Ribeiro da Costa, pouco depois da ladeira onde morava Ary Barroso. Eram os dois moradores mais famosos do pedaço e talvez nunca se tenham conhecido. Clarice não era dada à badalação nem costumava frequentar lugares obviamente corretos.
Desquitada de um diplomata, com filhos já crescidos, ela podia ter entrado em circulação no complicado universo dos ‘casos’. Não faltavam pretendentes. É possível que ela tenha se ligado a um ou a outro, mas sempre discretamente. Paixão para ela não era segundo a carne -não foi à toa que escreveu ‘Paixão Segundo G.H.’
Por sinal, esse título nasceu depois de o livro estar quase pronto. No início dos anos 60, ela me telefonou, tinha uma amiga, a embaixatriz Maria Martins, que desejava me conhecer. Pediu que Clarice me levasse a seu apartamento, no Flamengo.
Apanhei-a em casa, eu tinha um Gordini cinza, era novidade na época, Clarice elogiou o carro. Apresentou-me a Maria Martins, conversamos sobre arte, leitura e um pouco sobre política, que estava fervendo naquela ocasião. Depois fui levá-la de volta ao Leme, e ela me perguntou o que eu estava escrevendo.
Não estava escrevendo nada, naquele momento. A editora Civilização Brasileira anunciava um novo livro meu, ‘Paixão Segundo Mateus’, título chupado de J.S. Bach, aliás, chupado dos evangelhos. Como sempre acontece comigo, tinha o título, mas não tinha a história.
Clarice tinha a história, mas não tinha o título.
Na crônica que escrevia no ‘Correio da Manhã’, sob a rubrica ‘Da Arte de Falar Mal’, não a acusei de ter roubado o título que afinal não era meu, era de Bach e do Novo Testamento.
Clarice já se instalara na prateleira mais nobre de nossa literatura, ‘A Maçã no Escuro’ estourara.
Ela chegou a pensar em só se dedicar às letras, mas o mercado era pequeno, teve de voltar ao jornalismo, a fazer entrevistas estranhas. Lembro de duas: com o ex-presidente Jânio Quadros e com a primeira-dama de então, dona Yolanda Costa e Silva.
Impressionante a sua capacidade de dar conta do recado profissional, traçar o perfil de personalidades que nada tinham a ver com Clarice Lispector, com seu mundo, sua alma.
A diferença é que ela vestia um escafandro para viajar em universo alheio. Sua arte, sua beleza, só vinham quando mergulhava nua em si mesma. Branca, enorme peixe fosforescente, iluminava com surpreendentes centelhas o mundo submerso no qual vivia e do qual nos trazia notícias”.