Com um olhar atento e muito conhecimento na ponta da língua que fala um ótimo português com sotaque de quem não é do Brasil, Nabby Clifford logo notou minha camisa da banda Mutantes e meu bloquinho de anotações com a capa do disco Clube da Esquina, de Milton Nascimento e Lô Borges. Começamos a entrevista com ele falando sobre música brasileira. As recentes mortes de Rita Lee, Moraes Moreira e a enorme presença africana no som que é feito em nosso país foram alguns dos temas. África é mais um dos tantos assuntos que Nabby domina. “Quando você fala cultura brasileira é África, é África”, disse. Nascido em Gana, ele está em terras brasileiras desde 1983. “Cheguei aqui igual pipa avoada”. Foram muitos voos e um de volta que está por vir.
Há quarenta anos, em 1983, Nabby Clifford estava na Guiana Francesa e acabou tendo que resolver questões burocráticas de documentação no Brasil e daqui nunca mais saiu. Como ele mesmo contou, veio descendo pelas regiões Norte e Nordeste até chegar ao Rio de Janeiro de onde só vai sair para voltar à sua terra natal.
“Meu filho, quando era criança, me disse que um dia iria ganhar dinheiro para pagar minha passagem de volta para Gana. Ele hoje tem um emprego público, mora em São Paulo. Estarei com ele nos próximos dias e vou lembrar essa promessa que ele me fez“, pontua Nabby, que ainda tem irmãs vivendo em seu país de origem.
O Embaixador do Reggae no Brasil leva uma vida pacata e modesta em Jacarepaguá, na região do Colônia, Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro. Grava suas músicas, participa de apresentações, é professor de inglês e francês, escreve, lê. Sempre distribui suas reflexões e conhecimentos em conversas informais com quem está disposto a uma boa troca de ideias. Publicou um livro ano passado e está preparando outro.
O título de Embaixador do Reggae se deu quando fazia um programa dedicado ao gênero musical na antiga Rádio Fluminense. Entre 1988 e 1994, Nabby comandou o “Positive Vibration‘ trazendo discos e muitos artistas para o Brasil.
Nesta época, o Reggae era pouco tocado por aqui. Nabby, com todo o seu conhecimento sobre o gênero musical e cantando suas composições, passou a apresentar e se apresentar bastante no Rio de Janeiro. “Quando tinha evento de reggae, eu era chamado. Cantei em muitos lugares, toquei discos em muitas festas. No início do Circo Voador, eu estava sempre lá me apresentando”.
Nabby formou um público grande entre surfistas. Isso o levou a morar na Barra da Tijuca. Com o tempo e as questões de menos shows e trabalhos, se mudou para Jacarepaguá para continuar perto desses fãs de Reggae.
Contudo, apesar de ter fixado residência na Zona Oeste do Rio, não é tão fácil encontrar Nabby. Para marcar essa entrevista, por exemplo, fiquei em contato alguns dias com o pessoal do Instituto Genivaldo Nogueira, onde o Embaixador do Reggae no Brasil costuma marcar presença, inclusive para dar aulas de inglês e francês.
Nabby no Instituto Genivaldo Nogueira, em Jacarepaguá. Foto: Felipe Lucena
“O Nabby é um artista incrível e uma pessoa realmente muito culta. Tudo o que ele fala tem fundamento. Era para ele estar tendo ainda mais destaque hoje em dia, mas a gente sabe como o meio artístico é complicado, ele teve problemas com empresários no passado. Ele ainda está cantando muito bem, produzindo. Era para estar fazendo muito sucesso e ganhando bem por isso“, opina o cineasta Washington Carvalho, que também tem projetos no Instituto Genivaldo Nogueira.
Vez ou outra, Nabby sai por aí, com um livro na mão e muitas ideias na cabeça pela cidade do Rio de Janeiro. O Arpoador é um dos destinos certos. “Tem muitos surfistas antigos que são meus amigos lá“, explica.
Conversar com Nabby é certeza de aprender algo novo. Ele fala sobre vários assuntos com profundidade e conhecimento. Uma de suas reflexões viralizou há alguns anos na Internet. No vídeo, ele fala sobre o uso das palavras “preto” e “negro”.
“A palavra negro, na língua portuguesa, só tem lado negativo. Isso é muito ruim para uma criança preta. Se é chamada de negra, ela cresce com isso. A palavra preto tem lados positivos e negativos, entende? Quando brasileiro fala de fome, ele fala de fome negra. Quando fala de muito dinheiro é grana preta. No mundo inteiro, se não é branco, é preto. Em Portugal, de onde veio o idioma, não se usa mais a palavra negro. A palavra negro tem conotação ruim”.
Após o sucesso desse vídeo, que teve mais de 40 milhões de visualizações na primeira publicação, Nabby vem sendo chamado para comentar o tema em diversos lugares, inclusive na TV Globo. Ele acredita que o debate racial no Brasil tem melhorado recentemente e isso é fundamental para o país.
“Um exemplo são as meninas que começaram a se afirmar como pretas, pararam de alisar o cabelo. As propagandas passaram a ter mais pretos. Algumas coisas têm melhorado nesse sentido no Brasil”, frisa Nabby, contudo, reforçando que as desigualdades racial e econômica ainda são muito aguçadas no país. “Em Gana, ricos e pobres moram próximos, são vizinhos, aqui fica tudo separado“. A violência no Rio de Janeiro também assusta o cantor e escritor.
No ano passado, Nabby publicou uma autobiografia intitulada “Preto é minha cor”. Nas plataformas de áudio, são oito discos disponíveis. “Não gosto muito das minhas primeiras gravações aqui no Brasil. Não era comum gravarem reggae aqui, então não ficou tão bom”.
Nabby está na ativa. Continua gravando, se apresentando com novos grupos de reggae. Recentemente, fez shows com a banda Via-Jah. “A nova geração do reggae no Brasil tem feito boas músicas. Reggae é música para fazer pensar, tem que ter letras para causar alguma reflexão. Isso tem acontecido“, garante Nabby.
Falando em provocar reflexão, Nabby está escrevendo um livro sobre a imagem de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil. O Embaixador do Reggae, que chegou como “pipa avoada” por aqui, está sempre pensando no próximo voo. Em breve, talvez um de volta para Gana, sua terra natal.