Ao pensar em dissertar sobre estética da Música abordando a função sensorial e imagética que tal arte suscita no artista e no ouvinte, não posso me esquecer do grande Arthur Schopenhauer, filósofo a quem me dedico estudar desde meus primeiros passos no campo da investigação conceitual. A razão pela qual me apego ao seu modo singular de pensar é a seguinte: Schopenhauer atribui à Arte uma potência até então não notada por outros pensadores. Conforme ele, a Arte é a bela ou sublime aparência, a representação adequada não do que é patente aos nossos olhos, e sim da verdade invisível em todo ser vivo.
Essa verdade profunda, reclusa, inacessível, o filósofo preferiu nomear como Vontade. A título de esclarecimento, para não incorrermos em equívoco conceitual, confundindo “Vontade” com “desejo”, com o mero querer pessoal, acrescento ao conceito “Vontade” outros epítetos similares: “energia”, “pulsão de vida”, “força natural”. De modo que Vontade se refere a algo imanente e transcendental a todas as coisas vivas e não somente ao humano.
A Arte transborda aparências dessa força natural; e, quando torna perceptível que espécie de pulsão vibra no interior do ser humano, ela realiza esse transbordar de forma perfeita e comunicativa. Não acessamos a “Vontade” de uma flor, de uma raposa, por exemplo; apenas supomos o que seja. Temos, por outro lado, acesso ao fundo que pulsa no interior de nossas vidas. Nossa intimidade é passível se tornar Arte. Logo, a Música, como meio transbordante, alcança essa dimensão e anseia, em sua essência, tornar audível o que se acha vivo e entranhado em nosso ser. O que pulsa lá dentro de nós quer ser ouvido: mas o quê?
O rock and roll é uma das linhagens musicais que realiza o transbordar de nossa Vontade imanente e transcendental, de maneira eficiente e eficaz. Ele expressa a veia nervosa que corre no interior de nossa vida. O que ouvimos através do rock é profundo; ele emerge feito um grito curto ou alongado, como resposta a alguma irritação ou excitação; daí a canção que transborda efetua fora de si uma ressonância retumbante: o ouvinte é tomado por sua eletricidade. Todavia, tal eletricidade é plugada não fora, mas dentro de nós, extravasando certo fio de tensão vital que o querer, que o ritmo de nossa alma quer tornar audível.
O grupo Nirvana, liderado por Kurt Cobain, é o exemplo significativo da audição do que pulsa de nervoso no interior da vida humana. Tendo sido criado na virada para os anos 90, quando o heavy metal havia chegado a certo limiar de suas forças, já tendo explorado o pouco de recursos que tinham, o Nirvana tinha diante de si um campo aberto de experimentação melódica. Exagerando no volume, acelerando o pedal, distorcendo ao máximo a guitarra, era preciso saltar por cima do formato pomposo e superficial que Metallica, Guns e Iron Maiden haviam cimentado na música; e a regra adotada foi a desintegração dos velhos clichês.
Nirvana tomou para si esse encargo de reconstruir a música, mesmo sem querer, sem assumir um compromisso estético definido; e, assim, quando os anos 90 se deram conta, estavam de volta no cenário o movimento punk e seus niilismos conceituais. Digo, na verdade, que Nirvana espelha uma linha evolutiva inerente ao próprio rock; mas não antes de espelhar a linha evolutiva das gerações que sucedem umas às outras e que formam a teia histórica da cultura contemporânea. Nascido em 1967, Kurt Cobain é rebento da geração singular de artistas que eclodiu no espaço de tempo entre 1987 e 1994, a conhecida Geração X.
O clima libidinoso e festivo do rock dos anos 80 não correspondia mais ao pulsar geral, ao querer daquele espírito de época. Aquela geração precisava de uma nova expressão musical que pudesse vitaminar impulsos subjetivos, anseios e exigências de uma sociedade regida por outra ordem mundial. A “Vontade” coletiva de uma juventude apelava por signos adequados às necessidades interiores de suas vidas vazias, angustiadas e inquietas. Kurt tomou o corpo da geração da qual fazia parte e, por força do próprio movimento histórico, deu nascimento à estética musical do grunge, na cidade de Seattle, nos Estados Unidos.
O punk desgrenhado feito pelo Nirvana traduz uma Vontade que, contida no “si” de cada coração jovem ou no “todo” da geração inteira, estava asfixiada pelas forças do sistema neoliberal e que precisava ser ouvida. A Geração X exprimia a necessidade violenta de ser notada no seu modo displicente de viver, na ética informal e apartidária do come as you are. As letras de Kurt não falam de coisas, mas de um modo de viver alternativo que é repercussão de uma pulsão coletiva urgente e nervosa. Por isso, Kurt recorre a imperativos morais não categóricos: “Venha como você é”! O querer coletivo exigia: haja com naturalidade, seja você, escape dos esquemas ilusórios da sociedade tipificada pelo capitalismo, pelo consumismo, marcada pela mecanização dos costumes, do “case/reproduza/trabalhe/morra”. Stay away!
Na esteira de uma geração iconoclasta, Kurt era o porta-voz de um moralismo individual que se converteria num éthos “estúpido e contagioso”. Liberdade, sim, mas só no espasmo, no surto, na ruptura brusca; o que visava era gritar o que, por dentro, estava incompleto; era fazer florescer a vida que o modelo neoliberal de sociedade quer sufocar. O apelo da “Vontade” é permanecer in bloom, prestes a explodir. Kurt ouvia esse apelo e queria causar barulho com sua sonoridade suja, para dizer que a juventude, da qual se envergonhava, agonizava numa epidemia: a apatia, que consome o que deveria ser o teen spirit. Resultado: libido oprimida, flutuação de humor, consumo descontrolado de drogas, tendências suicidas – efeitos danosos que ele não só cantou como angústia, mas que viveu na pele até o fim.
VERDADE!!!
Como MUITOS outros SERES DOTADOS DESTA ” VONTADE, ” NÃO SUPORTOU A DESCARGA ELÉTRICA
DA IGNORÂNCIA humana./ ( com minúsculas, mesmo )