Formei-me em Artes Plásticas e, por sorte, obtive o título de bacharel em Pintura pela secular e pioneira Escola de Belas Artes da UFRJ. Costumo dizer que, durante os sete anos em que estive por lá (que não são poucos), não aprendi a pintar nada, mas aprendi a olhar tudo. Penso que o ensino de Arte deve, em primeira instância, não se render à vaidade do estudante a ponto de ele dizer: “eu sei fazer arte”. O estudo de Arte é mais modesto, ao meu ver. Ele estimula aquilo que você tem, mas que desconhece. Por isso, no caso das Artes Visuais, o ensino reorienta o olhar, nos (re)apresentando não só a natureza do que se esconde de nossos olhos, como também (re)apresentando o que nosso olho esconde na natureza – ou na história.
Heitor dos Prazeres é o artista em questão desse artigo e eu só pude realmente conhecê-lo agora, em razão desse estudo. No entanto, a escola que deveria me ensinar sobre ele não cumpriu seu papel pedagógico a contento. Estudei Matisse, Picasso, Van Gogh, Dalí. Até passei pelo Brasil, analisando brevemente obras de Tarsila, Anita e Portinari. Eu dizia abobado para meus amigos: “Veja! Guignard! Veja! Brecheret!” Mas e Heitor? Nada. Nem sombra de seu nome. Heitor foi um desses seres escondidos que a história brasileira preferiu não ver.
A vida e a obra de Heitor valem um calhamaço de pesquisa. Mas não é nisso que quero me focar, quer dizer, não abrangerei o que geralmente os livros ou os textos acadêmicos tendem a fazer. O que me levou a pensar em Heitor como tema de artigo é exclusivamente a sua rica produção pictórica e a forma com que esse genial artista transpôs as necessidades de sua vida e de sua imaginação para o plano bidimensional da tela. O que teria levado Heitor a pintar?
Nascido na Praça Onze, em 23 de setembro de 1898, o negro delgado e franzino Heitor dos Prazeres, desde a infância, manteve contato com a atmosfera artística. Com o pai, que era músico na banda da Guarda Nacional, aprendeu a tocar clarineta. Anos depois frequentou as casas dos bambas que agitavam a boemia sambista do Rio de Janeiro, como a casa de Tia Ciata; e, assim, compartilhou das festividades na igreja da Penha, dos encontros musicaisna Praça Onze, com Donga, João da Baiana, Sinhô, Pixinguinha e Paulo da Portela. Graças a essa convivência profícua, colaborou substancialmente para a formação das primeiras escolas de samba. Durante a década de 20, se dedicou exclusivamente à vida musical. Compôs inúmeras canções, em geral sambas, que foram gravadas por nomes icônicos como Francisco Alves.
Mas foi com a década de 30 que a pintura despontou em sua vida. Da mesma forma que sucedeu com Frida Kahlo, em que a pintura surgiu como atividade regular após um incidente trágico, sucedeu com Heitor. Ele só começou a pintar aos 38 anos, depois que sua esposa Glória (com quem teve três filhas) faleceu. No documentário HeitordosPrazeres (1965), feito por Antônio Carlos Fontoura, o artistaabriu o jogo: “a minha pintura para mim é importante. É uma fuga das minhas dores, das minhas mágoas, do meu sofrimento, das minhas paixões. Eu me sinto num outro mundo, um mundo sofredor, um mundo gozador, um mundo de felicidade.”
Por meio do sofrimento, a pintura ocupa o espaço e o tempo da vida de Heitor. A pintura aparece não como uma atividade corriqueira ou banal a qual se recorre simplesmente com vistas ao prazer momentâneo ou uma mera distração pequeno burguesa. Heitor fala em felicidade, que é algo ainda mais intenso e profundo; ele fala da felicidade como transposição de um mundo em que a aflição vigora. Por isso, a pintura é um passaporte, um veículo transcendente. No entanto, esse “outro mundo” não é um mundo além daquele em que vive. O que Heitor chama de “fuga”, na verdade, é um reencontro com a realidade, não da forma prosaica e insípida como muitas vezes se nos mostra.O que se vê em Heitor como apelo estético é buscar, na arte, uma forma de reviver o que lhe causa felicidade. Em outro momento do documentário, ele assinala que a realidade, mesmo dura e mesmo cheia de adversidade, é a fornecedora de todo material de que necessita: “não consigo fazer nada que não existe porque eu não me sinto bem”.
A pintura de Heitor não parte de um delírio da imaginação, nem de um extravasamento da subjetividade fantasiosa. Heitor pinta o prazer. Foi o sambista Monarco quem enumerou “os prazeres do Heitor”: o prazer de fazer samba, de vadiar na orgia e de pintar. Por isso, é correto afirmar que, o que a tinta óleo cobria por sobre as figuras sinuosas e lineares dos personagens urbanos que pintava, como músicos, foliões, crianças, lavadeiras, feirantes, boêmios, jogadores e toda espécie de gente simples, não eram meras formas, mas sim a forma da vida, a forma doprazer. E isso não quer dizer queo motivofosseum prazer pessoal, fechado em si mesmo.
Para justificar o conteúdo, para que entendamos o que se extrai de profundo da camada superficial da pintura, eis o que diz o autor: “eu sou Heitor dos Prazeres. (…) Esse prazer que eu tenho no nome é o prazer que eu divido com o povo. Esse povo que eu reparto esse prazer. Esse povo que sofre, esse povo que trabalha, esse povo alegre que eu compartilho com a alegria desse povo. A alegria desse povo, o sofrimento desse povo é o que me obriga a trabalhar, é o que me faz transportar para a tela o sofrimento desse povo. Esse povo que sou eu.”
Daí já compreendemos que a razão de pintar não era uma escolha e sim uma propensão objetiva, material, uma força ainda maior do que tendências estéticas ou gosto pessoal. Heitor era levado pelo sublime; e “não há nada mais sublime do que a massa humana”, dizia ele. “O povo é a massa humana, a voz do sangue. O povo é a carne humana”. Então, o suporte de sua pintura não é uma cópia de um modelo. Heitor usava sua própria vida e sua memória para pintar. E o que era a vida de um homem como ele, boêmio, músico e dançarino senão uma vida de prazer? Ele dizia: “Estas figuras que eu faço são de coisas que eu já vi, que ainda existem, estes bailes, estas macumbas, estes sambas, estas coisas que existem. Tanto existem que eu sou um dos que existem. Não preciso ver mais, não preciso de modelo. Eu tenho tudo aquilo do passado e de agora, dentro da minha memória.” É a memória quem pinta aquilo que o povo lhe inspira. E o que o povo lhe inspira se torna testemunho vivo do que o artista é, do que lhe define.
A “carne humana” retratada nas pinturas de Heitor é a carne do povo preto que compunha o quadro real de sua vida. O povo que sofre, trabalha, canta e dança é o povo afro-brasileiro, vigoroso, trigueiro e cheio de esperança, que circula pela Praça Onze, local que serviu a Heitor de motivo pictórico, assim como a Paris marginal de Toulouse Lautrec. “A Praça Onze é que é meu negócio. Meu atelier é na Praça Onze, onde me sinto feliz.” Sem distanciamentos entre a vida e a arte, Heitor recompõe o mundo, conforme ele disse, “vendo meus panoramas, da favela, da rua General Pedra”. Ele assinala também que “eu pinto a cidade antiga porque está dentro de mim. A minha pintura são coisas que passou por mim e eu passei por ela.”
Heitor trilhou em sua obra o mesmo percurso de muitos artistas ditos geniais, o que não o restringiu, em hipótese alguma, de se inserir nessa mesma galeria, ainda que o racismo vigente no Brasil pretendesse o contrário. Ele também fez como seus contemporâneos europeus, como Kandinsky, Matisse ou Picasso: transpôs o conteúdo interior, as vivências espirituais, as memórias mais profundas para dentro do espaço da tela, renovando a forma erompendo com a representação rigorosamente miméticado modelo real. Fazendo uso de simbolismos, de adornos, de uma paleta multicolorida, de figuras dispostas de forma incomum e artificial, Heitor propôs um mundo feliz, artístico, em que o povo preto protagonizava o cenário pictural.
A simplicidade (e não ingenuidade) de Heitor revelou a necessidade de traduzir o cotidiano carioca do samba e do núcleo pobre da cidade. E Heitor não só obteve um resultado plástico original, com imagens que nos reforçama marca de sua linguagem inconfundível, bem como imprimiu um traço verdadeiramente autêntico na tendência representativa e pictórica do povo; já que, a rigor, quem pintava o preto, quem pretendia fazer do povo preto um tema constante não era um homem branco, de classe média, de formação acadêmica, cuja posição social lhe distanciava daquilo que sua pintura representava. A pintura de Heitor dos Prazeres prova que quem pinta o povo preto é o próprio homempreto, de origem humilde, analfabeto, cujo talento era mais poderoso do que qualquer retórica supremacista racial.