Em outro artigo publicado nessa mesma coluna, intitulado “Emoção, uma conduta mágica”, desenvolvi a ideia de emoção, dando uma visão geral sobre esse assunto muito em voga no momento. Partindo de fundamentos filosóficos, escolhi Jean-Paul Sartre como pensador norteador do debate sobre o que é emoção, que nos revelou três grandes problemas. O primeiro diz respeito ao fato de que a emoção não é desordem fisiológica, oriunda de perturbações nervosas, mas sim uma ordem da consciência, um sentido que a consciência dá ao mundo. O segundo problema é que a emoção não se encontra nem no sujeito emocionado nem no objeto emocionante; a emoção é uma relação entre sujeito e objeto. O terceiro problema nos mostra a emoção não sendo apenas afetiva, mas também transcendente, algo que a consciência faz com vistas a transformar o mundo, imprimindo qualidades novas às coisas. A emoção seria o que Sartre chamou de conduta mágica.
O fato de a emoção não ser desordem fisiológica retira dela qualquer possibilidade de descontrole espontâneo. A emoção é intencionalidade da consciência; e, portanto, é a atenção que damos ao mundo quando nos afeta, ou seja, nos perturba e nos pressiona. Quando o afeto nos arrebata, exigindo algo de nós, a intencionalidade da consciência é reclamada para que o sujeito atue, que saia fora do estado afetivo, e qualifique e modifique o objeto. Existem raivas que são descontroladas, não como resposta imediata, afetiva, mas como ato transcendente, ou seja, como escolha feita pelo sujeito diante do mundo. Nesse caso, há conduta mágica porque o sujeito imprimiu sua marca através da emoção.
O ator compõe a categoria de sujeito que estabelece relações com os objetos através da conduta mágica. Tanto para atores quanto para não atores, a emoção é constituída ontologicamente da mesma forma, quer dizer, é do próprio ser da emoção, da própria estrutura da consciência, transcender rumo ao mundo; o que significa, portanto, ser capaz de conduzir-se na magia, modificando e interferindo relações com objetos. A diferença entre atores e não atores é que, enquanto os últimos são afetados, os primeiros, graças a certa habilidade especial, não são afetados para conduzirem-se magicamente. Por quê?
Segundo afirma Sartre, o ator “imita a alegria, a tristeza, mas não está alegre porque essas condutas se dirigem a um universo fictício. Ele imita a conduta, mas não se conduz”[1]. Sabemos, não só pela declaração de Sartre, mas por comprovação empírica, por experiências cênicas que acumulamos, por peças de teatro, filmes, seriados ou novelas que acompanhamos, que o ofício do ator não possui compromisso com a realidade. Por mais que nos deixemos levar pela magia de arte tão ancestral, é ingênuo crer que a atuação desse ou daquele ator, considerando seu talento incrível para incorporar personagens, seja similar à realidade. Tal peculiaridade não está aí desde agora, mas remonta aos tempos helênicos, mais precisamente às primeiras linhas da Poética de Aristóteles, na qual está dito que a essência da arte dramática não é outra coisa senão imitar pessoas em ação[2].
Sendo assim, é insuficiente que a arte do ator seja apenas uma conduta mágica operando apenas em vista da consciência emocional. A arte do ator é também, em igual medida, habilidade mimética. Por conseguinte, se o ator, através da emoção-conduta, opera a mágica, imprimindo qualidades no mundo – neste caso, no mundo cênico – e se toda a ação do ator é imitar pessoas em ação; logo, compete a ele imitar a emoção; ou, dito de outro modo, a atribuição de seu ofício é imitar pessoas enquanto se conduzem magicamente, catalisando no público esse antigo prazer humano por coisas imitadas[3].
Partindo desse silogismo, compreendendo o modo como se dá a relação entre o ator e o atuar, resta-nos definir o que é imitar. Uma maneira simples e eficiente de acessarmos esse conceito se dá mediante exemplos dados. É sabido que algumas vezes atores de novelas de grande audiência foram abertamente hostilizados nas ruas ou nos shoppings por causa das más condutas de seus personagens. Tal reação do público só era possível porque ingenuamente havia a crença de que a imitação fosse ipso facto ao imitador, como se houvesse uma consequência necessária e aproximação absoluta entre o ator e seu atuar.
A identificação é uma das condutas mágicas que a consciência emocional do público costuma apresentar diante do prazer pela imitação. Ao sentir raiva na relação com o objeto visto em cena, o público chega ao paroxismo de agredir o ator com xingamentos; ou, em outro caso, sentindo alegria em esbarrar na rua com o galã da novela, o público reage beijando-o ou abraçando-o, como se dele fosse íntimo. O arrebatamento emocional que Brecht condenou, essa forma alienada de conduta mágica diante da arte, tem perigos, mas também tem ganhos. É possível que o público tome outra conduta mágica, e faça da tristeza sentida em uma cena o estímulo crítico para arregimentar forças de resistência[4].
No entanto, há uma separação radical entre o ator e o atuar que deve ser considerada, não só com vistas a evitar situações em que o arrebatamento emocional prevaleça na relação ator-público, mas também para elucidar um conceito tão vital para a sociedade como é o conceito de ator. Convém retornarmos a Shakespeare, a fim de que não esqueçamos as razões que conferem tamanha relevância ao papel do ator na sociedade, porque os atores são “a crônica sumária e abstrata do tempo”[5].
Se bem observarmos, veremos que a consciência emocional que atravessa o ator, e se efetiva no corpo, só acontece enquanto ele está em cena. Camus nos fala que a glória do ator é efêmera e que dura na medida em que a peça decorre; terminada a sessão, a imitação acaba[6]. Por aí entende-se que a mimética do ator revive ações humanas que devem começar e acabar dentro de uma situação determinada em tempo e espaço restritos. Assim ocorre com a peça, com o filme ou com a novela. A imitação está fadada a morrer e o ator a se livrar dela, tão logo o trabalho termine. A máscara que sustenta não suporta tanto.
O atuar significa permitir a ação começar e findar. Ora, mas é assim também com os não-atores: deixam as coisas acontecerem dentro de um tempo determinado. Com a arte cênica, é diferente. Ela permite a ação começar e findar, mas o ator mesmo não segue esse fluxo. O ator controla o atuar, quando o imita, e não se entrega aos afetos sentidos durante o processo, da forma como os não-atores fazem em suas vidas comuns. Pelo contrário, o ator se encontra ultrapassando a emoção-afeto, conduzindo magicamente o corpo, sem ser conduzido e perturbado por pressões externas que, a rigor, atrapalhariam a eficiência do atuar. Inclusive por, às vezes, afetar-se demais em cena, retorcendo-se de emoção, o ator prejudica a imitação, cujo fim é “exibir um espelho à natureza”[7]. Convém moderar-se e, portanto, ter domínio de si. Desse modo, o ator se modifica modificando a relação com o mundo; ele ultrapassa a si mesmo, ao conduzir os próprios afetos[8].
Para o ator, o atuar não implica necessariamente em fusão com seu corpo, isto é, não representa uma verdade lógica que o ator realiza, porque, ele mesmo, enquanto sujeito, significa ultrapassagem em relação ao objeto-personagem. É mais correto afirmar que o sujeito-ator sobrevoa o personagem, avistando-o do alto, distanciado. No teatro, a emoção que rei Lear vive não é a emoção de Ian Mackellen, nem tampouco, no cinema, a emoção que Dora vive, em Central do Brasil, é a emoção de Fernanda Montenegro. Ambos não estão imbuídos da mesma consciência emocional que seus personagens; eles atuam sem que haja coincidência entre a imagem e o atuante; e, caso haja, será exceção à regra.
O personagem é a imagem que o ator incorpora no ato de imitar. Imitam-se imagens: Hamlet, Hanibal Canibal, Odete Roitman. Mas estão essas imagens presentes? Sim, nós a vimos na tela do cinema, no palco ou na televisão, sendo imitadas por alguém dotado de certa técnica, que nos faz acreditar nelas, que a efetiva como vivência convincente. Mas o que a imagem oferece como sua tessitura aparente, está ali também presente? Quando vimos Hamlet, Hanibal e Odete os vimos tais como são, em si, na realidade? Ou o que se dá como aparência é a imagem e não aquilo que ela sugere em sua aparição?
Para Sartre, a imagem é uma analogia com o que está ausente, com o que não se vê[9]; ela não pode ser o real, pois o real é o que é perceptível e captável pelos sentidos. Em cena, percebemos não o sujeito do personagem, mas o sujeito-ator fazendo o que tem que fazer, ou seja, imitando alguém. Aristóteles está certo em dizer que o ator imita pessoas em ação, mas ele o faz irrealizando essa ação. O que está sendo feito em cena não é a realidade, mas o irreal, o ausente, o que não está ali. O que nos é perceptível e, portanto real, é o sujeito-ator, um ser carnal, porém em uma relação objetiva conosco, servindo-se de imagem de nossa apreciação, dando seu sangue e suor em cena, ao burilar a aparência, talhando-a cada dia mais, aprimorando-a, embelezando-a. Sentimos o ator em cena em estado de mimese; não sentimos Hamlet, nem Odete, nem Hanibal. Sentimos o ator plasmando imagens, objetos emocionantes, diante de nossos olhos, a certa distância, como no palco, ou superdimensionado, na intimidade da sala escura, como no cinema.
A consciência emocional do atuar cria uma relação entre o ator e o mundo irreal, o que nos leva a considerar que a emoção não é de autoria nem do ator nem do personagem, mas, sim, da imitação cênica. O que mobiliza o objeto cênico incitar condutas mágicas no público, fazendo-o soluçar, gargalhar, roer as unhas ou socar a poltrona do cinema é a relação, o jogo que se estabelece entre o ator e a imagem, entre a realidade e a aparência. A emoção é da cena, no teatro, como na pintura a emoção é da tela, e não do pintor nem da tinta. Mas a cena é uma fabricação de imagens, um artifício mimético que, por parecer tão real – já que é um corpo, uma potência viva que os conduz – nos afeta e nos modifica.
Por fim, quando atua, o ator imita emoções diferentes daquelas do personagem; pode estar triste enquanto o personagem está alegre, como vimos na arte de excelentes atores cômicos, como Robin Willians, por exemplo, que sofria de depressão. Em vista disso, o ator encontra-se sempre uma oitava acima do real, ultrapassando-se. Tal é o éthos cênico.
Ser ator é conduzir-se de forma mágica, modificando o mundo para qualificá-lo com algo diferente do que a realidade determina. Então, a primeira coisa a ser modificada, para o ator, é ele próprio em seu mundo afetivo. Para ser ator é preciso estar disponível para efetivar, em cena, esse estado provisório de suspensão, mantendo-se transcendido por efêmeros momentos; sendo Outro, fora de si, mas em seu corpo; provocando um modo livre de ser, ao conduzir-se de modo a modificar-se enquanto corpo, enquanto suporte de afetos que perturbam e pressionam. O objetivo do ator é fazer, de si, imagem, irrealizando seu corpo e, portanto, ultrapassando a si e as situações que limitam sua condição humana.
[1] SARTRE, Jean-Paul. Esboço para uma teoria das emoções. Trad. Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 75.
[2] ARISTÓTELES. Coleção Os pensadores – Poética. Trad. Baby Abrão. São Paulo: Nova Cultural,2000, p.39.
[3] Idem, p.40.
[4] BRECHT, Bertold. Diário de trabalho – vol. I. Trad. Reinaldo Guarany e José Laurenio de Melo. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p.101.
[5] SHAKESPEARE, William. Obras escolhidas – Hamlet. Ato II, cena II. Trad. Millôr Fernandes e Beatriz Viegas Faria. Porto Alegre: L&PM, 2008, p.556.
[6] CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Trad. Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 92.
[7] SHAKESPEARE, William. Obras escolhidas – Hamlet. Ato III, cena III, p. 564.
[8] HEIDEGGER, Martin. “Sobre a essência do fundamento”. Trad. Ernildo Stein. Col. Os Pensadores – Heidegger. São Paulo: Abril Cultural, 1973, p.302.
[9] SARTRE, Jean-Paul. O imaginário. Trad. Monica Stahel. Petrópolis: Vozes, 2019, p. 37.