Filipi Gradim: Bate-bola, bate o pé

Colunista do DIÁRIO fala sobre a tradição popular do Bate-Bola

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O Carnaval, essa imensa tradição orgiástica que povoa o imaginário do Brasil há mais de dois séculos, é tão vasto que nos surpreende com suas variações expressivas. Quando revivemos na memória as imagens, pensamos no Carnaval exclusivamente sob o aspecto do que é bom: a alegria e a celebração da vida. Afiguram-se para nós, de forma automática, sem nenhum esforço mental, a beleza, o colorido, o lúdico, o encantador, o cintilante, o apoteótico, o alegórico, o irreverente, o palhacesco. É o que conseguimos ver de imediato quando é simplesmente pronunciado o epíteto “Carnaval”. 

Diante disso, torna-se incômodo, inclusive, apelar para qualquer imagem que contradiga tal automatismo. Evitamos pensar o contrário. De modo que se torna impossível atribuir feiura, desencanto, tristeza, etc. a um fenômeno como o Carnaval. Qualquer sentimento que não favoreça o sentido de festividade implícito parece-nos ilegítimo de compor o cenário. Dispensamos que no Carnaval haja violência, por exemplo, uma vez que fazer festa significa estar em dia com nosso mais alto poder civilizatório. Ser capaz de festejar, por natureza e essência, exclui atos de barbárie. 

Tomando o Carnaval do Rio de Janeiro como objeto de observação e pesquisa é inevitável falar de festa e não falar de terror. Existe na cultura carioca um signo que extrapola a unilateralidade de perspectiva. Por isso, para além da noção de festa como celebração pomposa e alegre, existe uma imagem-ruptura que propõe uma experiência carnavalesca adversa: o bate-bola. As variações expressivas sobre as quais falávamos acima são tão amplas que contemplam a singeleza do Pierrot, a brejeirice da baiana e a agressividade do bate-bola. E isto se dá pelo simples fato de sermos um povo talhado nas diferenças e nas mestiçagens e, por conseguinte, sermos vulneráveis às variações de impregnações, vitais para marcarem a separação dos modelos da cultura europeia. 

O bate-bola representa o ponto fora da curva de uma tradição carnavalesca que carregamos desde a chegada da família real portuguesa em 1808. Até seu surgimento, a noção de Carnaval esteve estritamente associada à ideia de uma comunhão alegre do povo. Inexistia na cultura popular a presença de fantasias que causassem efeitos contrários ao tradicionalmente aceito pela sociedade. A partir da invenção do bate-bola, tornou-se desconfortável saber que algum folião mascarado sairia às ruas evocando nas pessoas sentimentos contraditórios como a alegria e o terror. 

Curiosamente, por influência dos portugueses, o Brasil conheceu os entrudos, no início do século 19 e acompanhou os foliões se emporcalhando com limão de cheiro, água, ovos, farinha e gesso e se golpeando com vassouras e colheres de pau. A qualquer um dos envolvidos isso era o que havia de alegria, de festa. Depois disso, o Carnaval se elitizou e ganhou estampa de beleza e de “civilização”, empurrando as manifestações contrárias para as periferias da cidade. Foi nesse estado de exílio que surgiu o bate-bola. 

Sem exageros podemos comparar a fantasia do bate-bola à figura do deus Pã componente da cultura grega. Ambos se aproximam, pelo aspecto que lhes define uma singularidade expressiva: a imagem de assombro. Pelo que sabemos da mitologia grega, o deus Pã compunha o cortejo brincante de Dioniso. Se a origem do Carnaval remonta ao mundo antigo, em especial à orgia promovida pelo deus do vinho; e se Pã, junto às bacantes, ninfas e sátiros, formava o corpo de baile da festa, então, no contexto da alegria das danças e da bebericagem, incluía-se um elemento – para nós inconciliável – que era o terror. Afinal de contas, Pã, além de possuir um corpo grotesco (mistura de humano e animal), ainda assustava as pessoas na floresta quando caía a noite.  

É da etimologia de Pã [Pan] que advém a palavra pânico. Camões introduziu a expressão, na língua portuguesa, não como substantivo, mas como adjetivo. Daí a variação que torna o medo um medo pânico [tárakhos panikós].“O relativo a Pã” tornou-se, séculos depois, o conceito de pânico na acepção moderna, ou seja, “susto ou medo, geralmente sem fundamento” ou “susto ou medo súbito que pode provocar uma reação descontrolada de um indivíduo ou um grupo.”[1] Se Pã fazia ruídos estranhos, se se revelava no meio das sombras da noite da floresta, se arrumava formas de desestabilizar as pessoas, pela mesma lógica os bate-bolas agiam no intento de se divertirem.  

Podemos afirmar que a fantasia do bate-bola é uma imagem pânica, que tem cuja finalidade é produzir um sentimento que, por meios adversos, assusta aqueles que são acometidos de surpresa; mas que, por outro lado, diverte aqueles que o produzem. O simples fato de assustar torna-se a alegria do folião que veste a fantasia do bate-bola. 

Desde sua origem, na década de 1930, o bate-bola era uma fantasia genuína, cujo objetivo era o brincar de assustar. Teve seu início na zona oeste carioca, quando militares alemães, em função da construção de um hangar de zepelim, na base aérea de Santa Cruz, passaram a se vestir da palhaço com o propósito de infundir o pânico. O estrangeirismo dos foliões terminou por cunhar a fantasia chamando-a de clown que, com o tempo, sofreu a corruptela da língua, passando a se chamar clóvis. E quem assim o batizou foi a comunidade brincante carioca, incorporando o já tradicional palhaço ao repertório de fantasias, porém carregado de outro sentido e significado. 

No decorrer dos anos 70, a evolução do clóvis, seu desligamento da batuta estrangeira, sua plena incorporação à cultura carioca, conduzia-o ao que ficou marcado no imaginário popular, especialmente nos bairros da zona oeste e zona norte. O palhaço clóvis não se vestia visando ser ridículo, mas visando ser temido. Assim revelou um dos componentes das turmas de bate-bola: “antes era aquelas fantasias de pirulito, né? Se chamava de bate-bola de pirulito. A ideia era essa: tocar o terror. Aquela máscara de terror, aquela máscara killing, aquela bexiga de boi, né? A ideia era assustar a galera.”[2] 

No aspecto da indumentária e dos adereços, o bate-bola pirulito – que é o mais interessante em meu entender – vestia macacão de cetim bicolor, meia de futebol, a assustadora máscara killing feita de tela de arame, pintada com um semblante pânico, coberta por tecido preto e cabelo colorido, ostentava longas capas decalcadas com caveiras e morcegos, trazia na boca um apito e nas mãos a bexiga que – segundo relatam os veteranos – era enchida “com canudo da caneta”[3]. O modo artesanal de confecção diferia da produção em série que é feita hoje com os bate-bolas modernos, quando uma grande equipe se divide para cortar tecido, costurar, pintar etc.  

O bate-bola pirulito ignorava a fogueira das vaidades que incrementa os cortejos que desfilam pela cidade no carnaval atual. Não se vestiam de modo uniforme, não se perfumavam com essências, não usavam adereços infantis (pelúcias) ou requintados (sombrinhas); e, principalmente, não havia disputa entre eles, em forma de concurso. Havia apenas o desejo de se divertir “tocando o terror”, atravessando as artérias da cidade, tomando a periferia de assalto, fazendo estrondos com suas bexigas golpeadas no chão, correndo atrás de crianças e de quaisquer pessoas que os provocassem com a infame musiquinha “bate-bola, bate o pé/tira a roupa da mulher/se for homem vem aqui/se for bicha fica aí”. Além do mais, o pirulito não era “querido” e “admirado” como é o clóvis moderno; mas marginalizado, temido e mitificado como era o deus Pã. 

performance do bate-bola pirulito acontecia do mesmo modo que ainda é hoje: em cortejos ruidosos e penetrantes. Ou seja, estavam plenamente inseridos no contexto originário do carnaval, valendo-se da mesclagem com outros foliões. Ver um bate-bola brincar sozinho era impossível. E essa indistinta massa de mascarados que intimidava a festa tornava a diversão um tanto quanto perigosa. Tanto para eles que, escondidos atrás do anonimato da máscara, poderiam (e eram) confundidos com criminosos, quanto para o povo que corria o risco de tomar uma “bolada”. 

Em minhas memórias suburbanas, da época em que morava em Madureira, era comum ver descerem a rua homens mascarados, juntos num cortejo macabro. Era um contraste riquíssimo, pois manchavam o colorido e o lúdico da atmosfera festiva com cores sombrias, com imagens de monstros, bruxos e carrascos. O bate-bola, “o ser inanimado” que “não faz nada”, era incorporado por foliões interessados ou pelo medo real (quando se bandeavam nos cortejos para a prática criminosa) ou pelo medo fantástico, quer dizer, o pânico de viver uma experiência que mesclava alegria e terror.[4]   


[1] RODRIGUES, Sérgio. “Pânico, o terror que veio de Pã”. Disponível em: Pânico, o terror que veio do deus Pã | VEJA (abril.com.br) Acesso em 07 de março de 2022.  

[2] Documentário “Bate-Bola”, dirigido por Gabriel Floro. Disponível em: (28) Documentário BATEBOLA dirigido por Gabriel Floro. Realização: VAMO | POCEMA – YouTube. Acesso em 07 de março de 2022.  

[3] Idem.  

[4] Idem.  

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