Filipi Gradim: Bergson contra Belchior 

A possível divergência entre o cantor Belchior e o filósofo Bergson

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O filósofo Albert Camus escreveu que, “se o mundo fosse claro, não existira arte”[1]. A presente assertiva é tão preenchida de verdade e de sentido que nos incita a reflexão sobre em que medida se dá a necessidade da arte. Ernest Fischer debateu o tema em um livro que considero capital a esse respeito. Os dois autores parecem concordar no mesmo ponto, a saber, que a arte possui algo de indispensável que converte o que supostamente seria supérfluo ou contingente em algo profundo e necessário. No entender de Camus, a arte opera como um farol cuja potência é iluminar a existência humana, despressurizando o espírito, ou seja, retirando-o de dentro de si, da iludida noção de “eu”, colocando-o sob a presença de “outro” que é ele mesmo[2]. O papel da arte seria trazer à superfície o que, em nós, se acha metido em profundezas dificilmente acessíveis pela consciência de si. É, então, a arte quem realiza a função iluminadora.  

Para Fischer, a arte desempenha uma função de totalidade, a partir de uma premissa ontológica que define o ser humano como uma existência em falta com. Falta no humano uma relação de totalidade que o aliena do mundo. Ele não se sente totalmente integrado ao cenário que forma sua situação existencial. Daí desperta nele uma urgência particular que é o anseio “por absorver o mundo circundante” e “integrá-lo a si”[3]. A falta é constitutiva do ser, como nos ensinou Sartre; ela não é deste ou daquele indivíduo, mas de uma condição humana em relação com o mundo: “o homem quer ser mais do que apenas ele mesmo. Quer ser um homem total. Não basta ser um indivíduo separado; além da parcialidade de sua vida individual, anseia uma ‘plenitude’”[4]. Logo, é a arte “o meio indispensável para essa união do indivíduo com o todo”[5].  

Com a música, não seria diferente em relação às demais artes no tangente à necessidade de sua existência na vida humana. A música, desde os orientais, passando por Platão, opera de forma grandiosa na relação indivíduo-mundo. No caso do pensador grego, ela está autorizada, por sua eficiência artística – e também pedagógica – permear “o interior da alma mais do que qualquer outra coisa, afetando-a com máxima intensidade e conferindo-lhe graça e elegância”, o que resulta numa “aguda percepção quando algo for omitido de alguma coisa e quando esta não tiver sido belamente confeccionada ou belamente produzida”[6].  

A música, em posse do atributo rítmico, além de avivar a alma, emocionando-a, ainda é capaz de agudizar a percepção sensível e inteligente, forçando o indivíduo humano a se relacionar com a totalidade do mundo de forma harmônica e melodiosa. Porém, se associarmos a antiga (e não totalmente refutável) tese platônica com os argumento de Camus e Fischer, entendemos que a música poderá iluminar o que está mergulhado no inconsciente e trazer à superfície; e, nesse movimento que agita o espírito, arrancando-o do seu centro, desagregando-o de sua individualidade e colocando-o diante de si, não como um “eu comigo”, mas como “eu com o mundo”. Desse modo a música preenche a falta da totalidade que angustia nosso ser e, junto dessa comunhão, emerge da alma um afeto que conduz o humano ao belo e ao bem. 

O cantor Belchior (1946-1917), a quem devemos o tema do presente artigo, se encontra entre os grandes mestres da música, pelos atributos rítmicos de suas composições e pelo modo como se constitui o discurso de suas canções. O artista cearense se encontra entre os mais profícuos letristas de sua geração; e isso não é difícil de perceber, especialmente quando não perdemos de vista as questões levantadas anteriormente sobre a potência iluminadora e agregadora de sua arte.  Belchior – que compunha o grupo conhecido como “o pessoal do Ceará” junto com FagnerAmelinha Ednardo –atravessou longa via até alcançar o reconhecimento na música: foi repentista, estudou filosofia e medicina, até que venceu o IV Festival Universitário da MPB (1971) e, em seguida, lançou seu primeiro álbum: Belchior (1974).  

No entanto, foi com Alucinação (1976) que concebeu uma de suas obras-primas. Nesse trabalho, produzido por Marco Mazzola, que consolidou seu talento como letrista e compositor, Belchior explora a guitarra de Antenor Gandra, produzindo canções de rockblues folk, que se intercalam com um plano de fundo brasileiro. O trabalho impressiona, do ponto de vista da qualidade sonora, por criar uma textura pesada que esquematiza uma paisagem acústica, interiorana e rural. “Como nossos pais”, “Sujeito de sorte”, “Apenas um rapaz latino-americano” e “Velha roupa colorida” são canções que o cearense ergueu ao patamar de ícone; são narrativas sonoras que o artista, de voz anasalada, que canta “torto”, “desesperadamente gritando em português”, compôs a fim de ferir feito navalha, de “cortar a carne”, colidindo contra a correção, a brancura, a limpeza e a leveza das convenções da música brasileira.  

Frente a tal dicotomia novo/antigo muito presente em Alucinação, decidi trazer Belchior para o centro da arena em que provoco uma agônica entre ele e o pensamento do filósofo Henri Bergson (1859-1940). A razão para isso é simples. Ainda que Belchior tenha sido impecável na produção musical, existe um deslize do ponto de vista narrativo, ou seja, referente ao conteúdo teórico das letras. Belchior deixa escapar algo de consistente que não soube ir além enquanto pensador – mesmo porque o próprio artista deixa claro que não está interessado “em nenhuma teoria”. Por essas e outras, a filosofia realiza o trabalho de pensar as pistas, as brechas e lacunas. Similar à arte, ela preenche a falta que separa o humano de sua relação total com o mundo. 

Belchior intencionalmente frisa indiferença às teorias. O “algo mais” que a teoria revela parece defasado e insuficiente quando se trata de viver: “amar e mudar as coisas me interessa mais”; ou então “meu delírio é a experiência com coisas reais”. Bergson, por sua vez, nos alerta: “quanto mais estamos preocupados em viver, tanto menos estamos inclinados  a contemplar”, pois “as necessidades da ação tendem a limitar o campo da visão”[7]. Belchior quer agir mudando; essa é sua paixão delirante. Mas, ao agir, corre o risco de não compreender as razões de agir e o “algo mais” que fundamenta a ação fica toldado pela ânsia de viver. Ele quer mudar as coisas, mas desconhece o sentido da mudança, posto que se desvia da contemplação que julga prescindível. Desse modo, “falamos de mudança, mas não pensamos nela”, graças a um “véu de preconceitos (…) naturais ao senso comum” que nos leva a cometer os mesmos erros do cantor[8]

Bergson, se ouvisse algumas canções de Alucinação, torceria o nariz, todavia perceberia que Belchior atingiu, em parte, uma intuição verdadeira. O cantor tem razão em dizer que “o novo sempre vem” uma vez que “no presente, o corpo, a mente é diferente”. No entanto, erra ao defenestrar o passado: “o passado é uma roupa que não nos serve mais”. Será? Entendo que as amarguras do cantor, com o “dream is over” pós-Beatles, tenha abalado as ilusões de sua geração; mas isso não é justificativa plausível para se desvencilhar do passado como se fosse uma “velha roupa colorida” cujo brilho se apagou. O sentido real do tempo Belchior não captou.   

Segundo Bergson, o erro de Belchior é erro do entendimento popular, a saber: confundir o conceito de tempo com o conceito de espaço. Ao longo da história, “tempo e espaço são colocados no mesmo plano e tratados como coisas do mesmo gênero”[9]. O tempo “exprime-se sempre como extensão”, ou seja, como realidade disposta no espaço[10]. O agora é o instante, a unidade fracionada do acontecimento. Por essa lógica, o tempo presente se torna um “agora” intrometido em um “aqui”; ao antigo “agora” o vemos como estando “lá” (no passado); e o “não-mais-agora”, que seria o tempo futuro, projetamos para um lugar adiante: o “acolá”. Então, o entender popular construiu estacionamentos, pontos, de algo que, se contemplamos, percebemos como pura mobilidade e, portanto, contrário a essa tendência estabilizadora.   

O tempo não estabiliza instantes, demarcando o “agora” em ontem, hoje e amanhã; ele não está, esteve ou estará; ele é um “sendo”, ou seja, permanece fluindo sem paradas. O tempo é duração “que se alonga sem fim” promovendo “continuidade de transição”[11]. De modo que o passado permanece no presente na qualidade de fluxo, formando com este uma melodia ininterrupta. A tese bergsoniana refuta Belchior na medida em que seu entendimento comum atribui ao passado uma posição dentro da linha aritmética do tempo. Daí o passado ficaria “para trás” como se o “lá” constituísse seu lugar natural; e que esse lugar não seria condizente com o lugar de excelência do presente, com o “aqui”. “Lá” e “aqui” entram em choque como se houvesse uma disputa de território. Mas estamos falando de tempo ou espaço? 

Estamos tão mergulhados na vivência, a inteligência se arranja de um jeito tão utilitarista em relação ao tempo, tentando fazer convir o “hoje” com necessidades práticas, que somos incapazes de intuir o tempo como ele é, ou seja, como mobilidade. Daí tratamos o passado pelo seu “não-ser”, como se fosse inútil, como se nada acrescentasse ao presente que se nos insinua. O passado, repito, não é parte justaposta ao presente que “já foi” e “não volta mais”. Nenhuma pedra se coloca em cima dele, caso se queira, pois o passado não é espaço e não pode ser estancado a bel prazer. A ilusão de Belchior é a ilusão de centenas de milhares de pessoas.  

Não sendo realidade posicional, o tempo é unidade musical, ou seja, melodia que “flui indivisível” como se fosse um grande novelo, uma bola de neve que se acumula mudando e atuando em nós sem que o percebamos[12]. É um movimento automático; está incorporado em nós. Assim, o passado não é “peso morto”, estado inerte que deixou de ser para dar lugar ao presente. O passado está todo inteiro no presente que vai se inflando e evoluindo, à medida em que deflui livremente. Livres de serem pontos de uma linha imóvel, presente e futuro se confundem, de modo que o acúmulo que acontece se revela como ação presente do passado em direção ao futuro. A mudança se realiza nessa passagem, carregando “nas costas” todo o passado, que não está morto, mas vivo, alimentando o presente com imprevisíveis novidades[13].  

“Você não sente nem vê (…) que uma nova mudança vai acontecer”, diz acertadamente Belchior. Não a percebemos; e, quando menos se espera, se dá, isenta de ato voluntário. No entanto, essa mudança não causa ruptura com o passado. Se rejuvenescer significa dar as costas ao “velho” para viver intensamente a novidade do presente, eis a ilusão. É conciliando com o passado, reconhecendo nele a malha que forma o tecido das experiências, o conteúdo que forma a bagagem da vida psíquica, que rejuvenescer é possível. A obra de Belchior não seria o que é sem o acúmulo do passado no presente. Cada novo álbum não significa um desenlace com o tempo, mas uma continuidade impressionante de um talento que pouco a pouco evoluiu.  


[1] CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Trad. Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de Janeiro: Record, 2008,  p.114.  

[2] Idem, p.111.  

[3] FISCHER, Ernest. A necessidade da arte. Trad. Leandro Konder, Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2002,  p, 13. 

[4] Idem, p.12.  

[5] Idem, p.13.  

[6] PLATÃO, A república, III, 401e. Trad. Edson Bini.  São Paulo: EDIPRO, 2006, p.184.  

[7] BERGSON, Henri. O pensamento e o movente, Trad. Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.157.  

[8] Idem, pp.150-151.  

[9]  Idem, p.7 

[10] Idem, ibidem.  

[11] Idem, p.10.  

[12] Idem, p.154.  

[13] Idem, p.101.  

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