Filipi Gradim e Cris Linhares: Copacabana, subúrbio musical

Copacabana e a Bossa Nova, uma relação histórica

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noção de subúrbio está necessariamente vinculada à noção de território. Quando nos referimos ao subúrbio, a imagem imediata que se forma na mente é a de uma realidade espacial que se determina por meio de esquemas demarcadores. E é isso um território: linha esquemática que traceja um plano e o separa dos demais planos distintos. Por isso mesmo um território garante ao espaço não uma generalidade que o confundiria com qualquer outro; mas, antes, uma singularidade que se manifesta em forma de recorte geográfico. Logo, subúrbio não é somente espaço, uma vez que espaço é, como já argumentou o grande filósofo, uma condição de experiência para sujeitos em geral, independentemente de onde esse sujeito esteja e em que época tenha vivido[1]

O subúrbio é qualidade do espaço; é território. Por isso, não se reduz à lógica que compõe o quadro de possibilidades que qualquer sujeito tem de experienciar a priori. O espaço é categoria abstrata da qual o pensamento tira proveito para se manter consciente que existem coisas dimensionadas. Mas o território, não. Ele já é a ação direta ou afeto sentido diante dos indivíduos em vista dessa possibilidade espacial. Um espaço nunca é capaz de territorializar, pois ele é uma condição da vivência. A vivência, sim, territorializa; pois, o corpo, em ação, qualifica o espaço, incidindo sobre outros corpos, criando afetos que emergem no meio de articulações, encontros e contágios.  

É sob essa perspectiva que cogitamos considerar o bairro de Copacabana não como um espaço genérico que fornece a condição de experiência para qualquer sujeito, mas como território que, graças ao poder de articulação de seus moradores, graças a certa ação particular dos mesmos, conseguiu atribuir uma qualidade impensável em termos de geografia física. Desse modo, consideramos Copacabana um subúrbio; e, como tal, ocupando uma posição – que não é geográfica, mas estética – que o diferencia dos demais bairros da região que administrativamente o organiza e o classifica.  

No conceito geográfico de subúrbio está contida a seguinte definição: Subúrbio [suburbium] significa “sub-cidade”. A sub urbe é assim consistida pelo crivo etimológico porque representa o território que qualifica o espaço urbano em razão de suas limitações. Todo subúrbio nasce antes de uma negação que o torna um território visto “por fora” da cidade, excluindo-se do que se encontra “dentro”. Daí a confusão que se faz em chamar o subúrbio de periferia (do latim: per feria = por fora). O subúrbio é a não-cidade, pelo menos da cidade que as teses desenvolvimentistas concebem, ou seja, a cidade que é capaz de se administrar economicamente de modo independente. 

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Por uma lógica evidente, o capitalismo segmentou a cidade em territórios e a eles conferiu valores coerentes ao modo como os indivíduos qualificam o espaço. Mas pensar a ideia de subúrbio sugestiona alternativas. Podemos suburbanizar para além da premissa econômica. Ou mesmo fazer do subúrbio contraposição a esse paradigma. Pois assim como os suburbanos não são sub-gente, o subúrbio não é, via de regra, território fadado a ser expressão espacial da divisão de classe; ou seja, restrito a ser o espaço “do pobre”, da prole que mora “perto da linha do trem”. O subúrbio pode ser também o território que amplia os limites das determinações econômicas e se expressa de outro modo que, para nós, será o modo estético, no qual o bairro de Copacabana está incluso. 

A imagem de subúrbio como “a margem do urbano” cortada pela linha do trem nos servirá como princípio lúdico[2]. Se desenharmos na mente um trilho, e sobre ele fizermos o samba correr na mesma cadência do trem, faremos esse tão emblemático gênero musical passear da zona central e da zona norte (onde se criou) até Copacabana. Sem grande esforço, quando acessamos o conteúdo teórico que explica as origens e sentidos da Bossa Nova, parece que esse passeio não é fruto de imaginação, mas movimento real, ação efetiva, por meio do qual foi possível o que parecia impossível.  

E o que parecia excogitável ali pelos anos 50 e 60? Que o Rio de Janeiro, tendo sido capital federal, pudesse, apesar da transferência de sede, se destacar no plano da cultura, mesmo com a ascensão de São Paulo e a fundação de Brasília. Decerto, o governo JK, ávido pela ideia de progresso, sonhava com a cidade-modelo Brasília. Mas a criação da Bossa preparou o contra-ataque estético. E foi ousada na sua proposta: deixou-se tomar de assalto pelo “trem do samba”, contagiando a zona sul com esse gênero até então cercado pelos quadrantes da periferia e comandado por vozes negras. 

A Bossa fez de Copacabana o conteúdo poético de suas composições e, de modo recíproco, Copacabana fez da Bossa ação territorialprovocação periférica dentro do contexto cultural brasileiro. E isso se deu por duas razões: primeiro porque a Bossa contrariava a tendência musical dominante presente nos cantores da Rádio Nacional, cujo canto ornamentado soava quase folclórico em contraste com a harmonização fantástica e elaborada que soava mundo afora na voz de Frank Sinatra. Depois porque a Bossa furou o cerco das regiões tradicionais do samba e introduziu o samba na zona sul. 

Copacabana tem sua história intrinsecamente ligada aos arroubos artísticos surgidos no Rio. O que poucos questionam é que, quando o samba foi convidado a conhecer as águas salgadas e o sol, o artista, por sua vez, se propôs a subir o morro para conhecer o que seria a “verdadeira face do Brasil”. Por ações mais revolucionárias do que poéticas, por questões mais afetivas do que geográficas, a (re)territorialização do samba, no compasso das pedras portuguesas da “princesinha do mar”, e após a ressaca da Bossa Nova, se deu, fixando de vez seu endereço na zona sul carioca.  

O “fino da bossa” era o apartamento de Nara Leão, onde coisas importantes aconteceram (…) como um movimento da juventude carioca universitária”[3]. Junto de Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli e Carlos Lyra,ela incrementava reuniões musicais que ganharam algumas vezes a ilustre presença de João Gilberto, com seu modus rítmico melódico ímpar, sua voz clara, cantada em tom baixo e sua agilidade nos dedos sobre as cordas de nylon. As pequenas jam sessions realizadas nesse local serviram de palco para que a juventude inquieta experimentasse novos caminhos para um ritmo já secular como o samba. O contato com João Gilberto naqueles encontros acabou por influenciar e definir qual seria o caminho que a Bossa Nova percorreria.  

No entanto, essas reuniões representavam a materialização de um processo que se deu sem compromisso, muito antes, com Vinicius de Moraes; que, sendo mais velho, e experiente como diplomata, cantor e poeta, serviu de mentor para Nara e sua turma, adolescentes na época. Foi ele que, nos anos 50, trouxe o negro sambista do morro e o tornou protagonista, tanto no teatro, quanto no cinema, através de seu Orfeu Negro. Por isso, graças ao poder articulador de Vinicius, não haveria, para aquela geração bossanovista, pessoa mais inspiradora que ele no tangente ao cultivo do samba, sendo que agora intrometido no meio de um bairro elitista e isolado desse ritmo. 

Nara e Vinícius, assim como as tias dos terreiros, abriam suas casas para eventos regados à música, comida e afeto. No caso de Vinicius – que na infância passava férias na casa dos avós na Ilha do Governador – esse espírito de convivência foi adquirido; e ele, então, aprendeu a admirar o subúrbio, do qual nunca se esqueceu, e que, vez ou outra, fazia emergir do inconsciente, dignificando seu lugar de afeto em forma de obra de arte. Além de desviar a rota do samba, o ressignificando na Bossa, Vinicius desenhou a imagem total de Rio de Janeiro, costurando em um só tecido musical, o natural e o urbano, o pobre e o rico, entregando o resultado de sua criação à geração atenta, para que seu estilo fosse impresso, redirecionando a curva evolutiva do canto brasileiro.  

A suburbanização de Copacabana foi forjada por um ato que visava traçar outro território para o samba. Cantou-se o mar, o céu, a mulher, sob um fundo sincopado e ritmado pelo violão. Mas não bastou. Lyra e Nara se distanciaram de tal “estética solar”, já que aquele novo som se tornou obsoleto e não personificava os anseios do povo[4]. E até aquele momento, a Bossa só foi suburbana, ou seja, periférica, apenas como estilo e não como conteúdo. Foi preciso mudar a postura. Então, eles aderiram à música de protesto, em voga nos anos 60, mas sem perder a referência sambista, a cadência batucada, ao resgatarem obras de Zé Ketti, Nelson Cavaquinho e Cartola.  

No mesmo período, Vinicius criou um formato de samba, com apelo religioso e sonoridade do candomblé: os afrosambas; que cimentaram seu nome como sambista. O batuque, o morro e o operário que professava sua fé nos orixás, ganharam novo espaço, se multiplicaram enquanto identidade, cultura e arte, ao serem versados pela boca do poeta, em merecida homenagem aos músicos responsáveis pela criação de ritmo tão fenomenal. Copacabana, que deu luz à Bossa, através da mais refinada das músicas, pôde, depois da virada para os anos 60, finalmente deixar de ser o lugar “de passagem”, tornando-se, enfim, o lugar de pertencimento, o movimento barafundido de pessoas, sentimentos e paixões, que fez da desarmonia o seu cartão postal. 


[1] KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Coleção Os Pensadores. Trad. Valerio Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Nova Cultural, 2005, p. 75. 

[2] SOTO, William Héctor Gómez. A cidade, o subúrbio e a periferia. Disponível em: A cidade, o subúrbio e a periferia (unisc.br).   

[3] CASTRO, Ruy. Coleção 50 anos de Bossa Nova – 20 livretos acompanhados de Cd. São Paulo, 2008.  

[4] SANTOS, Vicente Saul Moreira dos. Espaços e tempos da cidade do Rio de Janeiro na Bossa Nova (1958-2008). Anais do SILEL, Volume 1, Uberlândia: EDUFU, 2009. Disponível em: Fundação Getulio Vargas – FGV (ufu.br).  

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