Filipi Gradim: Da Mentira

A obra As aventuras de Pinocchio, escrita no ano de 1883 pelo italiano Carlo Collodi, desde sua criação, passou por inúmeras adaptações, principalmente sob as lentes do cinema

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A obra As aventuras de Pinocchio, escrita no ano de 1883 pelo italiano Carlo Collodi, desde sua criação, passou por inúmeras adaptações, principalmente sob as lentes do cinema. A última versão da fábula, intitulada Pinóquio (2022) e dirigida por Guilhermo del Toro, revisita a mágica relação entre o escultor e entalhador Geppetto e seu “menino de madeira”, recorrendo aos efeitos de animação, que imprimem um toque especial à obra já tão consagrada. A película é encantadora, tanto pelo ponto de vista técnico (direção, fotografia, roteiro etc.) quanto pela abordagem que realiza do conteúdo dramático que marcou gerações de crianças ao redor do mundo. Seduzindo-nos pelo rico detalhe das imagens, Del Toro nos convida para, outra vez, invadir a privacidade da pequena vila toscana, onde vivem Pinóquio e o seu criador; e, por isso,  fazemo-nos testemunhas do dilema central da obra collodiana, a saber: a moral da mentira.  

Em certo momento do filme, Pinóquio aparece pela primeira vez em público, entrando de surpresa na igreja. O constrangimento de Geppetto é tanto, diante da reação dos fiéis que acusam Pinóquio de ser “obra do diabo” e “bruxaria”, que ele se defende dizendo: “ele é só um boneco”. Mas o impetuoso menino de madeira retruca o pai: “não sou, não! Sou de carne e osso! Sou um menino de verdade”. Imediatamente, como consequência, seu nariz pontiagudo aumenta de tamanho, alvoroçando a igreja. Geppetto e Pinóquio são expulsos do recinto pela profanação cometida. Em casa, Pinóquio questiona: “pai, porque meu nariz cresceu hoje?”, no que o entalhador responde: “você mentiu, Pinóquio, e mentiras ficam tão na cara quanto o seu nariz, e…”, “…quanto mais você mente”, conclui o menino, “mais ele cresce”. “Sim, é”, diz o pai.  

Carlo Collodi nos mostra, mediante a fábula, que a mentira é um mal, confirmando o poder moralizante que as fábulas exprimem desde os tempos de Esopo. Além do mais, esse mal é visível e toma o corpo daquele que mente como um semblante que é incapaz de ocultar a manifestação da mentira. A mentira se faz ver mais para o outro do que propriamente para quem mente, por isso se acha bem no meio do nosso rosto, em nós, mas ao mesmo tempo distante de nós, já que, do nosso rosto, incide um reflexo que somente de fora é percebido.  

É bastante perspicaz a visão de Collodi. Mas será mesmo que a mentira é tão aparente quanto se mostra? Se consideramos verdadeira e infalível a tese do escritor, então será fácil de apreender quem mente e quem diz a verdade, já que ambos, mentira e verdade, são estampas marcadas em nossos rostos? Mas o contrário também é verdadeiro? Ou seja, a mentira pode ser tão bem executada que nos custará muito esforço para distinguir o certo do falso? É possível que a mentira se oculte de tal forma que nós nunca alcancemos a certeza se ela é ou não é? 

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No entender do filósofo Platão, sim, pois a mentira não é das coisas que se estampa no rosto; ela é mascarada e, por ser assim, encerrada em sua falsa verdade, de tal forma que se torna irrevelável. Discorreremos sobre a tese do grego Platão, mas antes convém que definamos o que é conceitualmente a mentira, já que Pinóquio é  metáfora que ilustra apenas em parte o conceito, abrindo a lacuna para se entender em que consiste realmente ser mentiroso.  

Aristóteles foi quem traçou uma excelente definição sobre a mentira, através da fórmula seguinte: “dizer que o que é não é, ou que o que não é é, é falso, mas dizer que o que é é, e que o que não é não é, é verdadeiro”[1]. Desse modo, a falsidade está atrelada a uma correspondência existente entre duas realidades: o dizer e o ser. Diz-se algo sobre o ser quando se mente. Mentir, então, não é dizer sobre nada, mas sobre algo. Daí sua consistência. A mentira é plena de consistência, ou seja, plena de ser. No entanto, sobre o que se diz é falso porque o ser ao qual nos referimos não corresponde ao enunciado que fazemos. A consistência à qual nos referimos é distanciada do enunciado porque falta adequação entre o ser e o dizer. O enunciado nega o que é, e afirma o que não é. Pinóquio nega que seu ser de madeira é artificial; ele diz que o que é não é; e também afirma que seu ser de madeira é natural; dizendo que o que não é é. Por reproduzir a estrutura lógica da mentira, Pinóquio comete o equívoco de entendimento ao relacionar mal o ser das coisas com o que é dito sobre tais coisas. A mentira, em Aristóteles, porém, não carrega fardo moral; ela é muito mais um vício intelectual.  

Partindo desse princípio de correspondência, podemos entender o que Platão defende em seu diálogo Hípias Menor, a saber: que o mentiroso é um indivíduo capaz de manifestar em palavras aquilo que oculta em pensamento. Segundo Platão, o mentiroso se gaba do talento de enganar os outros, graças a certo poder de inteligência que articula de acordo com interesses próprios. Sendo inteligente, os mentirosos dominam sua arte; sabem o que fazem, na medida em que “podem mentir se o quiserem”, de modo que “o indivíduo ignorante e incapaz de mentir não poderá ser mentiroso”[2]. O mentiroso tem a seu favor o fato de, por ser inteligente, saber o que é verdade e o que é falso; e, assim, afirmar o que é, ainda que saiba, no fundo, que não é, e vice-e-versa. Por isso, sobre qualquer tema que domine, o mentiroso saberá o que é falso e verdadeiro e usará esse privilégio para enganar as pessoas. Aí está seu trunfo: a astúcia. 

Sendo astucioso, o indivíduo que mente não exibe na face o sinal da mentira, como no caso de Pinóquio, pois ele saberá parecer veraz quando não é. No entanto, o indivíduo ignorante não saberá esconder que mente, pois o que o motiva a mentir não tem origem na vontade, mas condicionado pela mera circunstância, pela impulsividade da situação ou, muitas vezes, por medo. Pinóquio mente sem querer, sem má intenção, e a evidência o entrega. Já o mentiroso autêntico mente voluntariamente, deliberando o momento certo de enunciar falsidades que não se evidenciam, porque a arte do mentiroso é justamente saber ocultá-las. É sempre com segunda intenção que o mentiroso não manifesta nas palavras aquilo que o pensamento conhece e julga.  

O boneco Pinóquio percebe mal as coisas que, em si mesmas, são verdadeiras. Assim diria o filósofo Hegel se tivesse acessado à obra de Collodi. A madeira é verdadeira; a escultura, feita de madeira, é verdadeira: ambas são dotadas de matéria e de consistência inegáveis. O que existe nelas não está lá por causa do que se sabe sobre elas, mas por determinações naturais, por essência própria. A inverdade nunca recai na coisa percebida, mas no percebente. Então, se alguém mente sobre elas, é devido à incapacidade subjetiva de poder captá-las em sua essência.  

Para Hegel, a mentira é desvio da percepção, pois a consciência, na qualidade de ser percebente, apreende o mundo objetivo, ou seja, o mundo para além da subjetividade, de forma excludente e inclusiva. A teoria hegeliana nota haver interferência daquele que percebe na essência da coisa percebida, a ponto de, no momento da apreensão do mundo objetivo, o sujeito operar “por sua conta alguma coisa nesse apreender (…), alterando a verdade, através desse [ato de] incluir ou excluir”[3]. Em outras palavras: mentir é deliberar adições e subtrações de propriedades inessenciais, quer dizer, que são impróprias ao mundo exterior, desde as pequenas às grandes coisas, modificando as coisas que, em si, existem em igualdade consigo mesmas. 

“A consciência percebente”, afirma Hegel, “é cônscia da possibilidade de ilusão” por saber que o mundo percebido, diferente daquele que percebe, pode ser anulado ou abstraído[4]. No entanto, Pinóquio ignora que se ilude e só sabe que está mentindo, afirmando que o que não é é, e negando que o que é não é, através da figura moralizante de Geppetto. Pinóquio adiciona e subtrai propriedades ao mundo que não correspondem a ele: inclui vitalidade e fluxo de alma e exclui artificialidade à essência de escultura. Cai na armadilha da ilusão, ao perceber de modo impróprio; e, sem consciência do que faz, declara em público a sua ilusão, mentindo.  

Já no entender do filósofo Nietzsche, a mentira de Pinóquio possui outra significação. A interpretação dada pelo autor alemão para o conceito de mentira retira de Pinóquio o peso moral que Geppetto o faz carregar. A pedagogia moral de Collodi usa Geppetto como porta-voz da máxima “tu não deves mentir”, como se dizer mentiras fosse o contrário de dizer verdades. Essa oposição entre verdade e mentira não é uma invenção de Collodi, mas carrega nas costas a estrutura inteira dos valores epistemológicos e éticos da sociedade, desde Sócrates. Dentro de uma escala hierárquica de poderes, a mentira seria inferior em relação à verdade e, por isso, quem é veraz é moralmente superior, uma vez que mentir é ação comum, vulgar, cujo caminho é o mais fácil. 

O menino Pinóquio mente porque o caminho é mais fácil, mas não porque a verdade seja rara e moralmente superior, de modo a dificultar o acesso àqueles que a querem alcançar. A mentira é comum porque mentir é um ato comum. Não se mente por deliberação, mas por necessidade. Nietzsche notou que há regra e lei para mentir, que é “empreender uma luta pela existência”[5]. Mentir é ato natural e inerente “aos indivíduos mais fracos, menos vigorosos”, que usam a arte da dissimulação representando, mascarando, criando convenções, dramatizando, simbolizando etc[6]. Assim o fazem para se manterem vivos dentro do quadro da existência, para manejarem ao seu modo um jogo que os coloque em defesa contra ameaças e riscos eminentes. 

Mente-se, não por escolha, mas para se aparelhar com meios de articulação social. Não é por má intenção que se mente, e sim por necessidade de se arrebanhar, de se adaptar às situações, de ser aceito entre os iguais. Daí, a mentira não é oposta à verdade. Mentir é a própria verdade, já que a necessidade de se preservar entre os mais fortes, de ser forte junto aos fortes, é imperativa.  O mentiroso obedece a tal necessidade inventando designações que se impõem por si: são as metáforas, as definições arbitrárias que o indivíduo usa para nomear coisas, o que significa o mesmo que se defender entre os vivos. Pinóquio afirma: “sou gente”, mas ser gente é distinto de dizer ser gente. Se também admite: “sou boneco”, dá no mesmo, ou seja, dizer nunca concorda com o ser. E se concorda, o faz por convenção, por ilusão, por mentira. Logo, Pinóquio não mente porque desafina no momento de harmonizar o ser e dizer. Seu erro não ocorre por falha de caráter, mas porque mentir é o que resta àqueles que lutam para existir.  


[1] ARISTÓTELES. Metafísica. Livro IV, §7. Trad. Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2006.  

[2] PLATÃO. Hípias Menor. 366b. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2001.  

[3] HEGEL, G.W. Friedrich. Fenomenologia do espirito. §116. Trad. Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes, 2007.  

[4] Idem, ibidem.  

[5] NIETZSCHE, Friedrich. Sobre verdade e mentira no sentido extramoral. §1.Trad. Fernando de Moraes Barros. São Paulo: Hedra, 2008.  

[6] Idem, ibidem.  

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