Um pensador é genial não apenas pelo que concebeu e escreveu, mas principalmente pelo que deixou como legado. O estadunidense Henry David Thoreau (1817-1862) se acha entre uma dessas mentes brilhantes, cuja obra nos fornece ainda hoje bases para compreender o comportamento humano e também para saber agir em sociedade. Em seu ateliê de ideias, o filósofo talhou o conceito de desobediência civil – que o tornou célebre no mundo – como se fosse uma peça de madeira; e, no fim, apresentou-nos um excelente princípio ético-político.
No opúsculo Desobediência civil (1849), Thoreau ensaiou o que seria ao modelo de conduta humana diante de todas as formas de governo e de autoridade. Seu livro deu o que falar, mesmo tendo sido escrito na metade do século 19, pois representava um discurso aberto contra a despotismo. Escreveu que “o melhor governo é o que não governa a todos” porque tal premissa abre uma lacuna para que certo grupo de indivíduos não queira se enquadrar no grupo dos governados. Por esse prisma, nada é mais democrático do que não se deixar governar[1].
Se a sociedade inteira deve obedecer ao governante ou a outra autoridade, sacudindo a cabeça dizendo “sim”, então a democracia fundou muito mal suas bases. Ter ocultado ou suprimido a desobediência entre os grupos sociais talvez tenha sido o maior crime contra a democracia cometido até então. A desobediência é uma espécie de maquinário, de aparelho interior, que cada indivíduo guarda consigo; representa “aquela ideia de governo” que temos agasalhada em nós como uma justiça de foro íntimo. [2] Sem esse senso pessoal de justiça, mesmo “sob o nome da Ordem e do Governo Civil, somos todos afinal forçados a prestar homenagem e a apoiar nossa própria maldade”. Exemplos disso a história nos deu e nos dá aos borbotões.
Humanos são aqueles seres cujo privilégio reside no fato de poderem desviar-se seja do instinto que a natureza os inculcou seja da cultura que ele próprio fundou. Se algo da vida social e política nos desagrada, sentimo-nos no “direito de recusar aliança e de resistir ao governo”, mormente “quando sua tirania ou ineficiência são grandes”[3]. Sozinhos ou em minoria não podemos alterar o cenário da realidade; somos inaptos a erradicar qualquer mal. No entanto, temos o dever de não sujar as mãos com o que desprezamos, nem “dar apoio prático à causa”[4].
Para Thoreau, a desobediência não é um ato de resistência violenta que sintomatiza sentimentos reativos. Não se trata nem de longe de vingança contra a autoridade ou mesmo um rebelde não querer se submeter. A desobediência, nesse caso, é civil; e, portanto, configura-se como um modo cortês e pacífico de não-aliança com o governo do qual se discorda e com o qual não quer se misturar. É assaz ingênuo misturar anarquia com a ideia de desobediência civil. Se anarquistas interpretaram-na assim, a seu modo niilista, Thoreau em nada tem que ver com isso.
Na Índia, Gandhi fez excelente uso da tese thoreauniana, dizendo “não” à atitude do governo indiano de querer buscar a autonomia nacional declarando guerra à Inglaterra. Ele preferiu usar o pacifismo como arma de resistência. Porém, essa é apenas uma forma de recusa, inclusive bastante irresistível. E se cogitarmos a ideia de que dançar seja também um elegante modo de dizer não e de não aderir ao sistema de violência que o governo quer impor? Esse impressionante gestual do corpo que é praticado por profissionais da arte ou é disfrutado por grupos sociais específicos, esse fenômeno cultural chamado dança é mais do que se imagina.
A dança pode ir além da condição vulgar de entreter horas de tédio ou de cumprir função estética, nos encantando com graça e beleza; ela também é (e precisa ser) um dos modos de o maquinário humano se manifestar quando sentimos intimamente que algo deve ser recusado ou ser feito fora da jurisprudência de qualquer ordem ou governo.
Assim sucedeu com o Movimento Black Rio que despontou no anos 60 no Rio de Janeiro, mas que só veio eclodir na mídia na década seguinte. De origem suburbana e periférica, esse fenômeno era composto por um público bastante peculiar: a mocidade preta e mestiça interessada, a princípio, em entretenimento e socialização. A expressão mais genuína do movimento eram os bailes. Inicialmente foram realizados no Canecão, na zona sul; e, em seguida, se disseminaram pelos clubes da zona norte. Os “bailes da pesada”, como eram chamados, aconteciam animados pela black music importada dos Estados Unidos. Nas vitrolas comandadas pelos djs Big Boy e Ademir Lemos, ouvia-se James Brown, Marvin Gaye, Stevie Wonder e Jackson 5. Também havia apresentações ao vivo. Dançava-se muito, pra valer.
Na opinião de Luiz Felipe de Lima Peixoto, “o Black Rio adentrou no cenário carioca e brasileiro como um movimento de anseio musical, mas também político, cultural e intelectual”[5]. Com a ditadura militar no encalço e na vigilância, as coisas não eram tranquilas para ninguém. Divertir-se era tenso na mesma proporção que usar um telefone público. Quando o assunto era entretenimento da juventude preta e periférica, a tensão vinha tingida de repressão e racismo.
No excelente artigo de Luciano Marsiglia, o jornalista descreve a dificuldade de se estabelecer uma socialização pacífica entre a comunidade preta e a polícia. No episódio em que narra apresentação teatral do cantor de soul e funk Gerson King Combo, é notório que os bailes incomodavam o status quo ditado pelo governo militar. Precisou apenas a fagulha se soltar através da polêmica matéria de quatro páginas realizada pela jornalista Lena Frias, do Jornal do Brasil, em 1976. Rapidamente o movimento ganhou celebridade e chamou a atenção da repressão. A polícia, então, invadiu o baile do clube Magnatas desbaratando a festa.
Segundo Marsiglia, “no ano anterior, ele [Gerson] havia levado cerca de 30 mil pessoas ao Portelão para dançar as músicas do Volume 1. Como de costume chegou com seu Dodge Dart com bancos de veludo e hipnotizou a plateia com uma performance incendiária, que incluía os músicos da União Black e um funcionário para tirar sua capa de ´rei´”[6]. Mas, em 1977, depois da matéria sensacionalista do jornal, o cantor Zé Rodrix conta que “quatro camburões da Polícia Federal chegaram e colocaram todo mundo para fora com truculência”[7]. A partir dali, passou a ser rotina “a revista de sacolas de disco em busca de drogas”, beirando à infâmia policial de conferir “o cabelo black dos frequentadores negros dos bailes, inclusive confiscando pentes-garfo, pois achavam que os dentes de metal poderiam ser usados como armas”[8].
No entender de Marsiglia, a repressão ocorrida no Magnatas não foi um “fato isolado”, porque “os órgãos da repressão estavam preocupados com o possível direcionamento político do movimento”. Também pudera. Os pretos que frequentavam os bailes admiravam o discurso libertário antirracista dos Pantera Negras; e viram no cantor e ator Toni Tornado uma referência, quando este repetiu o gesto clássico da militância estudunidense – o punho cerrado e erguido – em 1971, no Festival da Canção, no período mais sangrento da ditadura. Os dançarinos do baile deixavam seus cabelos crescerem livremente e se espelhavam no modelo norte-americano.
Pelo que demonstra a pesquisa da doutora Luciana Xavier de Oliveira, somada às declarações de personagens que viveram a época, como Nirto, dono da equipe Soul Grand Prix, nem tudo era uma símile barata do movimento Pantera Negra. Como também nem tudo era “trágico” como propagavam os críticos conservadores. A reatividade da crítica de esquerda ao Movimento Black o acusava de “traição” aos princípios nacionais, por optar em se entreter com música importada estudunidense, em vez de apreciar o samba, gênero musical naturalmente associado à comunidade preta periférica. Mas se o samba tinha sido incorporado pela elite branca, aquela juventude não via razões para se identificar mais com ele. O que é justíssimo.
Nirto se abriu na matéria polêmica de Lena Frias: “Poxa, não existe nada de político na transação. É o pessoal que não vive dentro do soul e por acaso passou e viu (…) muitas pessoas negras juntas, então se assusta. (…). Este é o motivo de o soul reunir tantos negros, tantos blacks no Brasil. É curtição, gente querendo se divertir[9]”. Entendo as razões de Nirto de não querer intrometer um sentido de engajamento ao movimento, especialmente naquele momento. Ser preto e ser militante de esquerda era um duplo risco que raras pessoas queriam assumir.
No entanto, ele se equivoca em sua posição um pouco melindrada. Está certo de que pessoas pretas reunidas causam (até hoje) um mal-estar na sociedade racista a qual estamos submetidos. E, quando a razão que os une é festa – e não o crime organizado – então, se torna escandaloso que pretos se divirtam juntos independente do que a cultura branca impõe como regra. Somos livres para desobedecer. E mais: Nirto e o senso-comum cometem erro grosseiro em considerar a política um ato aborrecido, sisudo, antipático, “que exige extrema seriedade”.
Com Thoreau entendemos que política é jogo cortês de poder; que se realiza na desobediência civil, com elegância ou mesmo com sorrisos, sem adesão à violência ou qualquer forma brutalizada de imposição. No ato do Movimento Black há política, sim. Há política demais. Sai pelos poros. Reunir-se para dançar e não para endossar índices de violência e discursos de ódio racial é claramente desobedecer padrões decadentes. Permanecer frequentando um baile pacífico, para dançar, namorar e viver, mesmo com a polícia a tiracolo e com o bombardeio dos intelectuais racistas, é dizer: “não me alio a vocês”, seja com música gringa, seja com o que for.
[1] THOREAU, Henry. Desobediência civil, p.3. Disponível em Desobediência civil: Se uma lei é injusta, desobedeça (scribd.com)
[2] Idem, p. 4.
[3] Idem, p. 8.
[4] Idem, p. 13.
[5] PEIXOTO, Luiz Felipe de Lima. Disponível em: Resenha de 1976: Movimento Black Rio, de Luiz Felipe de Lima Peixoto e Zé Otávio Sabadelhe (Rio de Janeiro: José Olympio, 2016) | Palombini | OPUS (anppom.com.br)
[6] MARSIGLIA, Luciano. O movimento black: desarmado e perigoso. Disponível em: o movimento Black Rio: Desarmado e perigoso | Super (abril.com.br)
[7] Idem.
[8] PIRES, T.R apud OLIVEIRA, p. 40. In: Disputas ideológicas, cultura negra e jornalismo cultural. Disponível em: 150341-Texto do artigo-356621-1-10-20190703 (1).pdf
[9] Idem.
Este é um artigo de Opinião e não reflete, necessariamente, a opinião do DIÁRIO DO RIO.