O último artigo para a presente coluna (“Além do que agita a borra das coisas”) enfatizou, a partir do argumento de Schopenhauer, que a Arte é um eficaz consolo não só para crises de isolamento, como essa da quarentena que estamos passando, mas para a crise existencial do ser humano. Bastou existir para que o humano sofresse, graças à servidão de sua alma a um princípio vital chamado vontade, cuja força inconsciente e desmedida o conduz a viver condenado aos desejos e repulsas, interessado apenas em se manter satisfeito e seguro.
Em face desse conflito, o ser humano busca, segundo Schopenhauer, dois meios capazes de manter a satisfação e a segurança da vida. O primeira é a Arte que, no artigo passado – o qual indico ao leitor curioso de melhores detalhes – defini como sendo a elevação espiritual, a mediação através da qual a vontade deixa de escravizar o indivíduo e dá lugar ao conhecimento daquilo é essencial e universal. O segundo meio capaz de satisfazer e de garantir a vida, aquele pelo qual os humanos se dedicam, com mais ou menos afinco do que com a Arte, é a Diversão. Sobre a Diversão, enquanto meio de prazer e de vida, Pascal dissertou de forma bem mais amiudada, trazendo-nos uma perspectiva que se alinha ao pensamento de Schopenhauer.
Pascal admite que a existência humana é insuficiente em sua condição. O existir humano é, em si, dramático. Em “Miséria do homem sem Deus”, da obra Pensamentos, Pascal atribui uma dimensão para o ser humano em virtude de um expediente comparativo. Ao medir o humano com o que é desumano, ele conclui que há, em sua natureza, uma desproporção. De saída, Pascal é pessimista. Para ele, o humano é nada em relação ao infinito. A humanidade é “somente uma linha imperceptível na amplidão da natureza” dispersa em um universo infinito; é somente “um ponto insignificante na rota dos demais astros que estão no firmamento”.
Somos “limitados em tudo”, afirma Pascal. No corpo, na alma e no espírito, o humano é “algo e não tudo”. Esse algo é ambíguo, pois ele reparte seu ser em “nada em relação ao infinito; tudo em relação ao nada”. O drama humano consiste no fato de ele ser “um ponto intermediário entre o tudo e nada. Infinitamente incapaz de compreender os extremos; tanto o fim das coisas como seu princípio mantêm-se ocultos num segredo impenetrável; é-lhe impossível ver o nada de onde saiu e o infinito que o envolve.” Falta-nos a capacidade para alcançar o infinito, pois ele nos ultrapassa e nos humilha e, ao mesmo tempo, somos capazes de superar esse desfalque.
Por sermos pequenos com respeito ao universo, o todo nos escapa e sempre falta a plenitude. Graças à insuficiência de sua natureza, a descrição do humano, segundo Pascal, é: “necessidade, desejo de independência, necessidade”. Similar ao que pensa Schopenhauer, a condição humana está fadada ao círculo intenso, desmedido e repetitivo – e, por isso mesmo, neurótico – da vontade. Por estar condicionado a algo que determina suas forças, ou seja, que é maior que ele, o ser humano é empurrado pela necessidade; e a necessidade visa realizar-se; e, com isso, cumprir sua meta por satisfação. Busca, então, um meio para satisfazer-se que lhe seja do interesse e, assim, conceda uma aparência de plenitude para a alma e para o corpo.
A Diversão é o meio que tem, por princípio, oferecer um mínimo de prazer egoísta para o ser humano – espremido entre o tudo e o nada –, atiçando-o no sentido de acercá-lo o máximo possível do tudo que do nada. Divertir-se seria provocar um desequilíbrio na condição humana, provocando a vontade desejar o “tudo”, a plenitude. O “nada” assusta; porque infinitiza a pequenez, rebaixando, sem freio, a dimensão humana. A imagem do nada é a imagem do zero, do não-ser ou do menos-ser. Assim, a vontade tem repulsa pelo nada, porque ele significa morte.
Para Pascal “os homens todos, sem exceção, desejam ser felizes. Por distintos meios que usam, tendem todos a esse propósito (…) A vontade jamais executa a menor diligência, a não ser com esse fim”. Todavia, a felicidade é ameaçada pelo “eterno” “estado de morte”. “A vida é efêmera” e os humanos se encontram sujeitos à “terrível necessidade de ver-se eternamente aniquilados ou infelizes”. Enquanto a morte não aplaca a felicidade, no decorrer da vida, o prazer é buscado como se fosse pleno. Tudo o que for do interesse egoísta, será motivo de regozijos.
“Como a natureza nos faz infelizes em todos os estados”, porque o nada nos oprime e o infinito nos escapa, “nossos desejos inventam um estado feliz”, adicionando um artificio ao estado presente da vontade, para que seu apetite sinta satisfação e mantenha a vida. A diversão é uma espécie de plenitude inventada que visamos encontrar para que a imagem do nada não nos arrebate com a visão de insignificância e de pequenez de nossa condição limitada.
Uma vida de puro repouso mingua a força da vontade, pois ela não encontra motivos para desejar nada. Assim faz uma vontade apática: anula os motivos do querer recaindo no desinteresse. No entanto, sem apego a qualquer interesse que anime a vontade, advém o tédio; e, do tédio, advém a tristeza por sermos infelizes, enfim, por nosso abandono e carência. A diversão surge como a invenção que nos arranca do tédio, da vivência desmotivada; caçamos o que motive a diversão. Ademais, ela nos libera de pensar na imagem depressiva de nosso nada. “O ruído” – e não a quietude – “nos afasta da reflexão acerca de nossa condição e nos diverte.”
“Por isso os homens amam tanto o ruído e a agitação”: porque impedem-no de “pensar em si mesmo”, de pensar que na ronda noturna da morte, no terrível fato de que o desumano supera o humano em forças; que basta uma partícula, um vírus, para aniquilá-lo. “Se ficar sem aquilo que se chama divertimento”, eis o homem “mais infeliz que o mais ínfimo de seus súditos, que goza e se diverte.” À razão de não haver consolo para o fato de ser constituído de uma essência “fraca e mortal”, que coloca o humano em desvantagem dimensional, a diversão é a forma limitada que se encontrou para pensar em ser feliz e evitar a angústia e o medo.
O homem não é santo nem Deus, por isso sofre. Mas como, dessa mesma fraqueza, extrai o sumo necessário para sua grandeza, então inventou pequenas e grandes felicidades. A Arte é uma invenção desse gênero; e pode, segundo observamos, ser pequena ou grande. Sendo pequena, a Arte estará a serviço da pura diversão. Ela retirará o homem do repouso, quebrando com o tédio, promovendo ruído e agitação em seu entorno, a fim de que, agradando-o, esqueça que é infinitamente pequeno e eternamente mortal. A doença e a sombra da morte forçam o humano a ajoelhar-se, rendendo-se à fatalidade, o que torna a diversão artigo de emergência.
A arte divertida escamoteia a realidade. O que vale para determinados filmes ou séries, programas de humor, livros, vídeos ou peças de teatro é a potência dispersiva dos mesmos; é a capacidade que tais modalidades de diversão têm para arrancar o humano do repouso e para fazê-lo crer que é possível ser feliz na efemeridade; e que é possível imaginar uma vida fora da sua, na qual ele se espelhe como uma vida ideal, da forma como fazem as telenovelas, por exemplo. No entanto, essa efemeridade é o problema, porque não aproxima o humano de si mesmo, mas o afasta, prendendo-o cada vez mais ao que é miserável, banal e insuficiente.
O riso provocado pela careta do ator do stand-up comedy, a live animada na casa de certa cantora baiana, a nova temporada daquela série badalada, dizem muito mais do grau do tédio e do medo de encarar a si mesmo do que propriamente de felicidade. Entretenimento anestesia, intoxica. Porque, ao se divertir, a pessoa é conduzida “insensivelmente à morte.” Titãs já diziam que a diversão é “solução” egoísta, em que a vida “parece uma festa” e que, “em certas horas é isso que nos resta”. No entanto, “tudo isso (…) só aumenta a angústia e a insatisfação”.
Decerto, preferir a aparência à verdade é escolha pessoal que, infelizmente, por sua dimensão infinitamente pequena e insignificante, alegra o humano na mesma medida em que o aborrece, porque sua carência de satisfação não se cumpre por completo. Há quem escolha a verdade que conduz à felicidade, ou seja, que ame e busque aquilo que não se consome.
Arte que não diverte, ou seja, a arte contemplativa emana de um estado mais feliz, porque duradouro. Não é volátil e sujeita aos interesses da vontade; não anima o ego do indivíduo. Pelo contrário, a Arte contemplativa repousa o ego, apazigua exigências, acalenta desgostos e, assim, não gera nem tédio nem aborrecimento. Na Arte dos gênios encontramos esse nível de experiência. Em contato com ela o humano vê sua essência se insinuando para ele, dizendo o que ele é e da forma como é. Apresenta-lhe, ensina-lhe o que ele é – não o esconde.
Pelo olhar genial de Drummond, o José não é um mero ser, mas o José miserável que todos somos e desconhecemos; e, pelo José, esse “outro-eu”, é possível o indivíduo se contemplar e sentir prazer nisso. Dessa situação contemplativa, que arrancou o desassossego do ego, podemos rir ou chorar de nossa natureza bela e limitada. Pelo caminho emocionante, não agitando a vontade ou seduzindo-a pelo ruído, mas elevando o intelecto na direção do conhecimento, que nos tornamos grandes. “É ser grande saber que se é miserável”, diz Pascal.