Estudos avançados nos convidam à jornada científica impressionante e irrecusável a uma das belezas maiores do universo: a Lua. Selenografia se chama o nicho epistemológico da astronomia dirigido exclusivamente para a analítica dos fenômenos encontrados na superfície visível da Lua, interessado em mapear e nomear os mares, as crateras e as montanhas. Através dele, conhecemos este que é o corpo celeste mais próximo e mais alinhado conosco.
A Lua – que é o nosso único satélite natural e o quinto maior de nossa galáxia – segundo atestam os astrônomos, possui uma massa corpórea cuja proporção mede 27% do diâmetro e 60% do da densidade da Terra. Nas estimativas, a Lua teria sido formada em razão de uma colisão do planeta Theia (de massa similar ao planeta Marte) com a Terra, em torno de 4, 4 milhões de anos. Theia, ao ter sua força gravitacional ampliada, efetuou uma órbita instável e, por fim, entrou em choque com a Terra. Daí, por acreção planetária, quer dizer, por acúmulo de matéria resultante dos destroços de ambos os planetas, nasceu a Lua.
Há no corpo lunar mais de 60% de matéria residual do extinto planeta Theia e o restante cabe à aglutinação de matéria terrestre. Desse modo, a Lua é um rebento da Terra e guarda de sua mãe um expressivo material genético que as aproxima e as familiariza. Essa, no entanto, é a teoria astronômica que atribui à Lua uma relação íntima com a Terra, muito mais, inclusive, do que o senso-comum pensa haver. Não é simplesmente porque a Lua nos assedia tão de perto que ela é nossa companheira. As razões disso vão além das aparências; elas são astrofísicas.
Decerto nos rendemos aos espíritos ousados de Platão, Aristóteles e Plutarco que, com o mínimo de instrumentos (contavam apenas com a inteligência e a observação), lograram com suas pesquisas filosóficas resultados impressionantes, séculos antes de a ciência moderna se instalar com sua aparelhagem sofisticada. O grande Plutarco, por exemplo, advogava que a Lua não é a Terra, mas que “ela é a Terra num sítio indevido”[1]; palavras essas que ratificam o que a astronomia afirma com respeito à acreção planetária. A Lua é antes de tudo produto do deslocamento, do movimento natural de um planeta que colidiu com outro.
Em tese, a Lua não deveria estar onde se encontra há milhões de anos, em harmonia orbital com a Terra, rotacionando paralelamente a esta. Entretanto, se encontra lá por causa do decurso das transformações cósmicas. Porém Plutarco entendeu isso como intervenção divina, já que o princípio universal é o caos, a discórdia, a desarmonia; mas o princípio divino é racional e, sob a égide do amor, unifica e harmoniza as diferenças ou então dispõe o que agia de forma natural para uma direção em que agora deverá agir de acordo com o que é melhor para o Todo.
A Lua é um arranjo divino útil no que compete à redistribuição dos planetas no cosmos em razão do caos. Se Deus estivesse ausente nem a Terra efetuaria sua órbita em torno de si e do Sol nem a Lua a acompanharia, posto que nem teria existido, caso a natureza desproporcional de Theia não tivesse se desviado do natural e se chocado com a Terra.[2] Nessa ordenação do cosmo, a Lua se tornou o que os egípcios chamaram de “septuagésima segunda parte da Terra”, sem ser, no entanto, inteiramente constituída de Terra.[3]
Em parte terrestre, a Lua integra um sistema cuja finalidade é voltada para agir de acordo com o melhor para a Terra, ou seja, iluminá-la com seu brilho cintilante; e em parte ela é cósmica, pois recolhe “uma luz pura do céu” e, “estando cheia de um calor que é um fogo não abrasador nem excessivo, mas temperado, inócuo, e no seu estado natural, tenha adquirido paisagens de admirável beleza e montanhas brilhantes como chamas”.[4]
Os antigos entendiam que a Lua, sendo purificada pela luz cósmica, está isenta de sofrer corrupção, degradação ou declínio como ocorre com sua mãe Terra. Logo, ela se mantém nobre e divina no ponto em que foi propulsada pelo caos e harmonizada por Deus; e, em vista disso, é considerada, enfim, como “uma Terra celeste e divina e não como fogo impuro ou resíduo de fogo”.[5] Se a Lua é parte da Terra, ela é a melhor parte que ela pode ter.
A tese de Plutarco abre margem para se entender o porquê de tantos poetas admirarem a Lua e de transferirem para versos a relação amorosa com esse corpo celeste. É graças a essa potência divina e purificada da Lua que poetas do mundo inteiro ergueram seus olhos para o céu, desnudados de qualquer propósito científico; apenas interessados em extrair da Lua sua beleza e qualquer sinal que traduzisse de forma simbólica seus mistérios e concavidades. Se a selenografia observa a Lua com vistas a examinar física e quimicamente sua superfície, a poesia a observa com finalidade diferenciada porque não a desbrava querendo explorá-la.
O poeta goiano Jeocaz Lee-Meddi escreveu que
homens pisaram na lua, chegaram com suas bandeiras e empáfias e nada viram, a não ser crateras inóspitas. Nada poderiam ver porque a Lua não é dos astronautas, é dos poetas, que sem nunca tocar no seu solo, conhecem todos os seus segredos, são cúmplices de seus mistérios.[6]
Recriando a expressão platônica que considerava a Lua “a ama e guardiã” da Terra, “criadora do dia e da noite”, endosso as assertivas palavras de Lee-Meddi de que são os poetas os guardiões e protetores da Lua.[7] Na verdade, somos nós que honramos sua força cósmica e a força terrestre; nós é que devemos de alguma forma zelar e prestigiá-la. Tomado por esse sentimento de espanto pela beleza, o poeta ergue os olhos para o céu noturno, não esperando recompensas exploratórias, mas sim desejando acariciar a Lua, de acolhê-la tal qual ela nos acolhe: em silêncio, delicadamente e à distância.
O poeta encontrou nos versos a forma mais sutil, elevada e iluminada de imitar os poderes da Lua, não para gabar-se com suas virtuoses, mas para melhor lisonjear sua musa inspiradora. Quem há de negar que o poema se isenta de propriedades celestes e, por isso, que ele é incapaz de abrilhantar a Terra com sua luz hiperdimensionada e purificada pelo fogo cósmico do Sol? O poema acerca-se das mesmas forças lunares; ele é espécie de calor temperado, de fogo apaziguador, de luz brilhante que é propagada do céu à Terra com vistas a acolher os afetos que nos consomem e sublimá-los em forma de palavras ritmadas.
Podemos ir além. O poema é a viagem intergaláctica desse astronauta das palavras. Diferente do homem que, no tédio por viver na Terra, quer dominar outros corpos celestes, o poeta, segundo nos ilustra Drummond, sabe que a única coisa válida é “experimentar, colonizar, civilizar, humanizar o homem”, a fim de descobrir “em suas próprias inexploradas entranhas a perene, insuspeitada alegria de con-viver”. E o poema é a nave espacial que o guia até lá.
Em “Divinamente nua a lua”, os poetas Caetano Veloso e Orlando Morais traduzem em versos a transparência perigosa desse corpo celeste que, com suas sombras trituradoras e sua escuridão abusiva, faz nascer no peito dos homens a ardência das paixões (“tentações, pudores, sonhos de amores”) e na imaginação a visão de “leitos, livres leitos, divindades e dragões”.
Cecília Meireles, por sua vez, não teme a potência da Lua. Pelo contrário, no poema “Lua adversa” se identifica com o astro: “tenho fases, como a lua/fases de andar escondida/fases de vir para a rua/perdição da minha vida/perdição da vida minha/tenho fases de ser tua/tenho outras de ser sozinha”. A poetisa, tal qual a Lua, segue uma órbita de vida em fases “que vão e que vêm no secreto calendário que um astrólogo arbitrário inventou para o meu uso”.
Já o simbolismo decadentista de Cruz e Souza pinta uma paisagem lúgubre da Lua. No poema “Monja”, seus olhos tocam o astro espreitando os mistérios da dor: “Ó Lua, Lua triste, amargurada, fantasma de brancuras vaporosas/A tua nívea luz ciliciada fez murchecer e congelar as rosas”. Para o poeta melancólico a Lua é um assombro branco dos espaços, a monja que fez voto de castidade e que abre os braços sobre nós “fria, de joelhos, trêmula, rezando”.
O português João de Deus contempla um cenário de angústia frente à realeza da Lua. Em “Melancolia” ele canta: “Ó doce luz! Ó, Lua! Que luz suave a tua/E como se insinua/Em alma que flutua/De engano em desengano/Ó criação sublime!/A tua luz reprime as tentações do crime/E a dor que nos oprime”. O poeta olha para dentro de si, percebe que traz consigo no seio a Lua, ou seja, o “reflexo vago d´um sol” e se questiona: “onde o afago no seio, onde o aperto?”
Drummond de Andrade, em “A vida passada a limpo”, descreve o pouso da “esplêndida Lua debruçada sobre a Joaquim Nabuco, 81”. A Lua é a “prenda comum”, o presente que o universo nos ofereceu; ela é a “lâmina de Ogum” que penetra e injeta sua luz purificadora, produzindo “limpeza nos resíduos e vozes e na cor que era sinistra, e agora, flor surpresa”; que, “já não destila mágoa nem furor”. A Lua é “alvura de morte” que “lembra amor”.
Os apaixonados poetas portugueses vislumbram a Lua de forma ainda mais lúdica. Herberto Helder escreveu “Se houvesse degraus na Terra” em que o poeta ousa escalar o céu para beijar a Lua com seus lábios tingidos de vermelho. Ou então em “A bicicleta pela Lua dentro” ele brinca com a ideia surreal de que “as árvores crescem nos satélites”.
A poetisa nordestina Auta de Souza reconhece, no poema “Noites amadas”, a Lua como sendo a luz noturna que “Deus prateia com a luz dos sonhos das nebulosas”, em cujo seio de “noites claras de lua cheia” a alma “canta como a sereia”. A alma cantante é propriamente o estado natural do poeta guiado pelo amor às coisas da Terra e do céu. É por isso que Antônio Gancho quer “cantar à namorada canções que a Lua canta na altura de namorar”.
Em “O luar quando bate na relva”, Alberto Caieiro se questiona do porquê de o luar existir se não para reavivar a memória afetiva. Para o poeta, a luz serena e cristalina da Lua “lembra-me a voz da criada velha/ Contando-me contos de fadas/E de como nossa senhora vestida de mendiga/andava à noite nas estradas/Socorrendo as crianças maltratadas/Se eu já não posso crer que isso é verdade/Por que bate o luar na relva?”
Por fim, Mario Quintana em “A rua dos cataventos – XXXV”não vê sentido em viver e morrer se não for em companhia do “frescor de lua”. Quando o poeta se for, não levará nada a não ser tudo o que a Lua antecipou e temperou com seu brilho doce e branco: “as madrugadas, os pôr de sois, algum luar, asas em bando, mais o rir das primeiras namoradas”. Sem a lua como companheira, o poeta perde seu satélite principal. É em torno dela e graças a ela que o artesão de versos é capaz de ameigar não só seu coração como os de todos na Terra. Por essa razão, o poeta é a nossa Lua que nos ajuda a urdir os fios da vida cantando canções de amor e devoção.
[1] PLUTARCO. Sobre a face visível na orbe da Lua. §12. Trad. Bernardo Mota. Lisboa: CECH, 2010.
[2] Idem, §13.
[3] Idem, §19.
[4] Idem, §21.
[5] Idem, §21.
[6] LEE-MEDDI, Jeocaz. Manifesto Jeocaz Lee-Meddi. https://jeocaz.wordpress.com. Acesso em 30 de maio de 2021.
[7] PLATÃO. Timeu. 40 b-c. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2001.