Mais de trezentos e cinquenta anos nos separam da Ética do filósofo holandês Baruch de Spinoza (1632-1677). No entanto, ao consultarmos esse valiosíssimo livro, nos reconhecemos tão avizinhados dele quanto imaginávamos. Em umas das passagens de sua obra magna, Spinoza disserta sobre a relação corpo-alma, sublinhando o fato de que “ninguém, na verdade, até o presente, determinou o que pode o corpo”, de modo que “o corpo, só pelas leis da sua natureza, pode muitas coisas que causam espanto à própria alma.” Mesmo hoje, com todo progresso científico e tecnológico, o corpo ainda não foi completamente desvendado em sua potência, especialmente quando se trata de pensá-lo dentro de um contexto que confronta vida e morte.
O próprio Spinoza nos conduziu a uma reflexão sobre o que pode o corpo – a partir de suas leis físicas e não pelo que ele se sujeita ao espírito ou à alma – nos mostrando que toda a força que nele se concentra se acha comprometida com uma única e fundamental necessidade, a saber: que “toda coisa se esforça, enquanto está em si, por preservar no seu ser.” Em outras palavras, o que o corpo pode, por si mesmo, é se manter vivo, perseverando na existência até onde ele é capaz, segundo seus atributos. Spinoza chamou essa força de apetite de vida.
A cantora Elza Soares (1930) serve como um digníssimo exemplo de como um corpo, por si mesmo, é capaz de se manter intacto, esbanjando apetite de vida e embasbacando a alma com todo seu esforço. Natural do Rio de Janeiro, tendo sido criada na favela da Moça Bonita (atual Vila Vintém), aquela “mulata assanhada”, como ela mesma se refere a si, teve a vida e a obra forjadas à custa de muita dor, batalha e música. A letra de “Dura na queda”, que compõe o álbum Do cóccix até o pescoço (2002) é fatal: Elza “perdeu o emprego”, “perdeu a saia”, “bebeu veneno”, “apanhou à beça”. Desde o início não era fácil ser Elza, mesmo porque se tratava de ser diferença, de ser um corpo feminino, preto e periférico se impondo para viver.
Aos doze anos, por ter sido abusada sexualmente por Lourdes Antônio, amigo de seu pai, teve que se casar com ele para honrar o nome da família. A partir desse casamento arranjado foram diversos casos de violação: a pobreza, a infância perdida, a convivência com um marido abusivo e tuberculoso, um filho morto por desnutrição e uma filha sequestrada. A viuvez, aos vinte e um anos de idade, impôs suas regras: era preciso aprender a viver por si mesma, mesmo com um corpo que até então era uma ferida aberta. Trabalhou como faxineira para poder sustentar os filhos, ainda que, por dentro dela, vibrasse um apetite maior que tudo aquilo.
A vida de Elza nos prova que o sonho nem sempre é a antítese da realidade, mas um caminho que tangencia o real e dá margens para que as grandiosidades que nos habitam se tornem expressões puras de nosso ser. Em entrevista ao Le Monde Diplomatique (2018), Elza revelou: “eu sonhava muito de como sair desse caminho”, de “como buscar um caminho melhor e sempre buscando Deus”. “A menina que tinha esperança em um mundo melhor” desejava não ser mais objeto de desprezo, de riso e de invisibilidade. “O caminho de pobre e de preto é difícil”, mas a esperança, a fé em Deus e sua ousadia moveram o corpo na direção de suas potências.
A preta da favela queria ser cantora. Desde pequena, quando carregava lata d´água na cabeça, a moleca já experimentava as potências de seu corpo pouco nutrido, porém poderoso, cujas cordas vocais foram afinadas na tortura do trabalho. A cada erguer de lata, a cada pressão sobre a cabeça, Elza arranhava a voz como um lamento, nascido daquele trabalho infeliz. Só depois, ao encontrar com o cantor Louis Armstrong, soube da existência de outro artista que recorria ao mesmo artifício vocal, ao mesmo suingue. A diferença, com Elza Soares, estava no fato de que seu experimento surgiu de forma espontânea, sem conhecimento técnico prévio. Tratava-se de um improviso, de uma “coisa negrona” “que já estava dentro de mim”, conforme afirmou no Roda Viva (2002). Há também a anedota de que Elza, na infância, por gostar de brincar com insetos e bichos, imitava o zunido produzido pelo louva-deus. Ou seja, o que moldou a voz daquela que foi eleita, em 2000, pela BBC de Londres, como “a cantora do milênio”, está para além do apuro técnico: é uma fusão de talento artístico e de malandragem com a vida.
Segundo Elza, “o que assustou” Louis Armstrong foi o fato de que aquele corpo feminino expressava uma potência marginal, desajeitada, “fora de linha”, ausente de virtuosismo técnico; naturalmente rico de habilidades. A voz rouca e rasgada de Elza nada mais é do que rebento da tortura e se mistura ao próprio modo humilde de viver, carregada de uma ginga que só ela tem. “Como na minha vida tudo começa torto”, uma “vida “escrita por pernas tortas” – como as de Garrincha, seu ex-marido – então, “até a minha garganta, até a minha corda vocal é torta”.
Elza explodiu no cenário musical a partir de 1953, quando, motivada pelos amigos e parentes, se inscreveu no Calouros em Desfile, programa de rádio apresentado por Ary Barroso. A pobreza era tanta que Elza não tinha o que vestir. Terminou por usar o melhor vestido de sua mãe gorda (que no corpo miúdo de Elza parecia um balão) todo drapeado por alfinetes. O apresentador, de maneira indelicada e jocosa, vendo a candidata maltrapilha, sem o respeito devido, perguntou de qual planeta ela vinha. Elza, de maneira pronta e direta, respondeu que vinha do “planeta da fome”. Entretanto, quando a cantora estrondou na apresentação do programa, o desatar de sua voz levou a plateia e o apresentador ao delírio. Então, o mesmo Ary veio a lhe pedir desculpas. Elza saiu do programa ovacionada pelo júri e com algum soldo que lhe permitiu comprar os remédios para o filho doente. Ainda não sabia o que vinha pela frente.
O logro com a excelente performance da canção “Lama” (Paulo Marques e Aylce Chaves) no programa de Ary não catapultou Elza para o estrelato. A razão era evidente: a mulher e a negra não ocupavam esse tipo de posição na sociedade racista brasileira da década de 50. Cantar era um privilégio branco; e, naquela época em que a Bossa Nova despontava, não havia espaço nas rádios para uma cantora negra. Sobrava-lhe apenas a ambiência suburbana. Foi então que Elza passou a cantar em festas e bailes, ao lado de uma orquestra, no que pôde desenvolver a versatilidade vocal que lhe caracteriza. Sobre esse momento, ela declara: “eu fui uma cantora da noite. Eu cantei em boate. (…) Cantei tango, bolero. (…) Eu fui crooner. E como crooner você canta de tudo. Você tem que cantar bolero, tchá-tchá-tchá, mambo, valsa, tango, blues, jazz…”
Depois de excursionar pela Argentina cantando como crooner, ao retornar, gravou dois álbuns no mesmo ano de 1960, “Se acaso você chegasse” e “Bossa Negra”. Em 1962, viajou para o Chile a fim de representar a madrinha da seleção brasileira, no feliz campeonato que coroou o Brasil como bicampeão mundial. Lá conheceu Mané Garrincha e manteve com ele uma relação extraconjugal. Recusando-se viver como amante do craque de futebol, Elza cobrou de Garrincha uma posição de homem, o que o levou a se separar da mulher e morar com a cantora. A união do casal revoltou os fãs do jogador e manchou a imagem de Elza como a “destruidora de lares”. Mudaram-se para São Paulo e, assim, Elza pôde, ao longo dos anos 60, cantar e gravar.
A paixão vulcânica do casal não vingou por muito tempo. Elza teve que cindir a vida de artista em dois e ser a esposa, “a mãe e o pai” dos filhos dela e dos de Garrincha. Aquele corpo já não poderia se dedicar plenamente ao sonho com a música porque o craque pesava a relação, pelo fato de estar fadado ao alcoolismo. Para a fiel Elza, “a mulher de um homem só”, aquela era a relação construída sob o alicerce da desordem; uma fase tensa crivada de momentos “dramáticos drásticos”, “melancólicos também”, como definiu em entrevista no Provocações (2010). Confessou que nunca foi agredida por Garrincha, embora insiram falsamente esse incidente na relação dos dois. O “mais dócil” dos homens era “o mais difícil de conduzir”; mesmo assim, ele nunca agrediu a mulher por intenção, mas por desproporção de seu corpo e seu vício.
O fim da década de 60 foi trágico. Elza e Garrincha foram expulsos do Brasil, pela ditadura militar, que fuzilou a mansão em que moravam. No autoexílio para a Itália, Elza pouco produziu. Depois, nos anos 80, passado o pesadelo da ditadura, vieram outros, piores: a morte de Garrincha e de seu filho, o “Garrinchinha”, a depressão, a tentativa de suicídio. Apesar de tanta dor, o corpo de Elza manteve a proporção. Ciente de que “a vida é bandida”, mas que também “é malandra”, Elza, a mulher que disse “eu vim do fracasso”, só poderia se erguer dentro do fracasso. O viver nos força ver que o corpo só é potente, só impressiona a alma quando faz uso da “malandragem para saber driblar essa vida”.E o que é esse driblar do corpo?
O driblar do corpo é o entendimento claro que “é só caindo que você pode levantar”; que “é preciso beijar a lona pra aprender a ganhar a luta”. Depressiva e desacreditada de si foi para Roma e teve a ajuda de Chico Buarque para sobreviver e para reerguer seu corpo artístico. Desistiu da música, mas Caetano Veloso, em amor, lhe fez reconsiderar a decisão. Na televisão, fez seu retorno triunfal no programa Chico & Caetano (1986). Convocando uma legião de orixás para sua comitiva, aquele corpo oprimido pela dor, mas corajosamente de pé, encantou o audiência com a performance de “Tiro de misericórdia” (Aldir Blanc e João Bosco). Como o título da música indica, encarou a si e ao seu trabalho como quem fita o passado ao mirar o espelho.
O ponto alto do programa se deu com a canção “Língua” (Caetano Veloso), gravada no álbum Velô (1984). Enaltecendo “a flor do lácio”, ela e Caetano escancaram o que se pode chamar de efusão sonora titilante, em uma brasilidade que explica e entorna o caldeirão daquilo que só nossos dialetos, sotaques e falares podem significar. O encontro marcou não só a volta de Elza, como também inaugurou a aparição da futurística artista que contemplamos hoje. É na língua e pela língua que seu canto desvela as muitas verdades potencializadoras da vida negra. Antes, o corpo de Elza e seu canto rasgado e sincopado animavam sambas-jazz em grandes orquestras, cantando repertórios prontos, falando a língua dos outros, em geral dos brancos.
Hoje seu corpo pode mais do que ser a crooner da festa. Primeiramente ele é o corpo flexível de alguém que nunca deixou a consciência pesar; é o corpo emancipado da mulher preta contemporânea, do hoje, do agora; que impõe novos ritmos para si e para outros; que acende o rejuvenescimento nunca visto em uma cantora da sua geração. O corpo de Elza é aquele cuja língua pode se lambuzar de gírias, de dialetos rabiscados nas encruzilhadas, no rap dos Beneditos e na poesia milimetricamente armada; que pode inaugurar a nova ritualística, a nova invocação dos Exus reprimidos, explorando com audácia o terrivelmente belo e o fatídico real.
Depois, o corpo de nonagenário de Elza não é mais o mesmo em sua extensão vocal, em sua modulação sonora, em sua ousada fabricação de louva-deuses. Elza não canta mais para aperfeiçoar a voz; e sim para soltar a língua. Reinventou-se a língua, redistribuiu-a entre a malandragem, a rua, o pobre, a mulher, o preto. Tingiu-a com a dose bandida da vida. Mas assim o fez para que a língua pudesse dar voz a um corpo inconformado, a uma anti-Anastácia: “minha voz, uso pra dizer o que se cala”. A música é o ponto comunicante que se expande rompendo paradigmas, preconceitos e dores: o canto é a fala de uma nação separada, reprimida, agressiva, abusiva: “o meu país é meu lugar de fala”. Quem canta ainda é a menina favelada; mas agora essa voz “quer incomodar”, quer gritar, falar alto para todos ouvirem, quer “encarar o tempo e os leões”, denunciando a invalidez da carne negra, a dor da travesti, o silêncio da mulher sangrada. Quem canta ainda é menina esperançosa quer crê que “o sol ensolarará a estrada”.
Por fim, Elza mostrou que palavras ou um canto sem corpo, sem lágrima e sem ligação com a realidade, não atravessam as paredes do tempo, precisam de vontade e ação para forçar a ruína e oferecer uma nova paisagem. A fortiori, o que vibra na língua de Elza e a pulsão que se lança pelo poder da palavra vem ecoar intrinsicamente da força do passado e da esperança em futuro. A língua de Elza pede mudança. Diz o que aos olhos e ouvidos de muitos deveria ser silenciado. Ela faz do canto uma arma e sua tábua de salvação em que se equilibra entre a vontade de viver e a necessidade de denunciar o que não deveria nunca ser negligenciado.
Boa tarde Felipe, sou Ricardo, trabalho aqui no Rio nas assessorias dos artistas: Gilberto Gil, Frejat, Elba Ramalho, etc.. Nos passe, por favor, o seu endereço de e-mail para mandarmos sugestões de pautas. No aguardo
Ricardo
Excelente texto!!