A memória não vacila. Caminha pelas esquinas afetivas do corpo, transitando através do tempo, gingando entre um apagamento e uma iluminação. Mas nunca vacila. É a malandragem da alma buscando se manter de pé, apesar das opressões que enfrenta. Por isso, se sondarmos as lembranças de quem frequentava a Lapa, no período que se estende dos anos 20 aos anos 40, algum velho boêmio falará, com o semblante admirado, sobre uma pessoa cuja trajetória impressionante converteu o escravo em guerreiro, o homem em mito e o efêmero em histórico. Esse narrador boêmio, catalisador de lembranças, que teima em não extinguir, é capaz de nos transportar, em um rompante nostálgico, para as peripécias da icônica figura de Madame Satã.
A curiosidade despertada pela vida de Madame Satã se deve à profundidade da mescla presente em sua pessoa, que reunia pavor e admiração, como também brutalidade e elegância. Equilibrando-se entre o luxo e o lixo, vivendo o decadentismo de uma região insalubre, rodeada por casas do baixo meretrício e cabarés baratos, circulando no meio de malandros, escroques, prostitutas, cafetões e jogadores, Madame Satã construiu sua imagem controversa.
Se tal homem, nordestino, negro, homossexual, pobre, analfabeto, pai adotivo, artista, transformista, capoeirista, cozinheiro, leão de chácara, logrou construir sua imagem e, assim, se afirmar não somente no presente, no seu tempo, mas no futuro, ao se conservar na memória cultural da cidade do Rio de Janeiro, foi à custa de muito golpe de navalha e rabos-de-arraia. Se, enfim, Madame Satã foi capaz de, muito antes dos modernistas, prenunciar pautas libertárias, tornando-se, para as gerações subsequentes, um grito de guerra, de emancipação, de identidade, de igualdade e de inconteste fascinação, foi porque certa valentia se fez urgente.
Desde criança, João Francisco dos Santos (1900-1976) não admitia nem o cabresto nem a humilhação. No sertão de Pernambuco, na cidade de Glória do Goitá, foi vendido para um negociante de cavalos, em troca de uma égua, já que era impossível de a mãe, sozinha e viúva, sustentar 17 filhos. Laureano prometeu garantir estudo ao menino, mas mentiu e o manteve em casa trabalhando como escravo. Na Paraíba, em viagem com Laureano, conheceu dona Felicidade, que o exortou fugir daquele vínculo abusivo e trabalhar com ela, em sua pensão. No entanto, um racismo foi substituído por outro e João seguiu como escravo de dona Felicidade. Mas, aos 13 anos, deu um basta e migrou para o Rio de Janeiro, achegando-se à Lapa.
De início, o ex-escravo morou na rua, dormindo nas portas das casas e cometendo furtos na região. A perseguição da polícia e a violência contra o corpo preto entraram em sua vida precocemente. Datam daí suas primeiras surras e prisões. Mas sua extroversão lhe salvou, rendendo empregos temporários como vendedor ambulante de pratos e de panelas de pressão, e depois como garçom na Pensão da Lapa, onde desenvolveu sua habilidade de cozinheiro.
A partir dos 13 anos de idade, João travou contato com três experiências que marcaram definitivamente o traço de sua persona mítica. A primeira delas foi a Arte, mais precisamente com o escandaloso teatro de revista que era muito apreciado pela boemia carioca. Na praça Tiradentes, em 1922, houve uma temporada no Teatro São José da companhia francesa Ba-ta-clan. João se impressionou com o que viu e sonhava com o dia em pudesse pisar no palco. O que não tardou acontecer. Em 1928, foi chamado para atuar travestido como a mulata do Balacochê, no espetáculo “Loucos em Copacabana”, apresentado no Teatro Casa de Caboclo. Nele, cantava e expunha seu corpo, inspirando-se no talento musical de Josephine Baker. Fez sucesso.
No longa-metragem “Madame Satã” (2002), do cearense Karim Ainouz, João questiona: “responda, minha Lapa querida, a vida é melhor quando a gente canta. É ou não é?” e também reconhece: “nasci para esse dia, pra receber o aplauso do meu público”. No entanto, mesmo envolvido pelo brilho das lantejoulas e purpurinas e pela luz dos refletores, João teve seu curso artístico interrompido pelo segundo traço de sua personalidade, a saber: a Malandragem.
A Lapa dos anos 30/40 convergia em seu território estreito uma fauna de personagens e personalidades interessantes. Intelectuais, artistas e ativistas políticos dividiam esquinas e mesas de bar. Mas a figura mais emblemática era o malandro, que Moreira da Silva definiu como sendo o astuto, o artimanhoso, “o gato que come peixe sem ir na praia”. Mas que, de todo, é “honesto”, “cheio de dignidade”, “consciente de sua profissão” e “sempre limpo”. João assumiu essa identidade, transitando – segundo suas palavras – por “serenatas, botequins e cabarés” e dotado de uma valentia que o levava a não correr de briga “mesmo quando era contra a polícia”. João tornou-se um exímio pugilista e capoeirista. “Bom de briga e fera da navalha”, como disse o jornalista Cléber Eduardo. Valendo-se de sua flexibilidade corporal e de sua arrogância, João “reinou nas bordas da sociedade” afirmando-se no mundo “de punhos cerrados”.
A terceira experiência que define a persona de João é a Sexualidade. Desde que chegou ao Rio, João reconhecia seu homoerotismo e tirou o máximo proveito disso. Inclusive a ponto de as donas dos cabarés contratarem-no como garçom e prostituo, uma vez que a aparência andrógina atraía clientes. João assumiu-se num momento histórico tão machista, povoado por nadificações naturalizadas, onde o homem “não desmunheca”, “não rebola” e “não se maquia”.
Sendo um corpo desviante, um ser-na-borda da sociedade, João se autodenominava “bicha”. No filme de Ainouz, o delegado o define: “é pederasta passivo. Usa as sobrancelhas raspadas e adota atitudes femininas, alterando até a própria voz”. Nessa borda de mundo, João deitou-se com diversos homens. Em 1971, revelou ao Pasquim: “eu achava que ser bicha era uma coisa que não tinha nada demais. Eu era porque queria e não deixava de ser homem por causa disso. Eu me tornei bicha por livre vontade e não fui forçado pelos outros”.
João escandalizava por sua força libertina, por constituir perigo às estruturas de comando. Porém, sua libertinagem se mesclava à liberdade, porque tornar-se bicha significava afirmar seu ser integralmente diante de máquinas alienantes da sociedade. Mais do que marca registrada ou apelido, Madame Satã transcendeu a simples fantasia de carnaval que deu origem ao nome. Quem se torna, ainda não é, mas pode ser. Esse “poder-ser” é liberdade, é criação. Por isso, Madame mostrou que podia ser o que queria, afirmando a personalidade pomposa e teatral, onde personagem e ator não só se confundiam, como eram faces da mesma moeda.
De maneira alguma, a “bicha” viril, que “derruba vinte”, ofusca as outras facetas da alma complexa de João. Seu nome de guerra, sem intenção, talvez, dá margem a várias análises por se confundir com a pessoa de João. A ambiguidade de sua postura lhe rendeu o codinome tão característico quanto justo, pois, a única representação viável que fizesse jus aos seus atributos seria a do próprio demônio. O demônio, tantas vezes, desde a Idade Média foi intrinsicamente associado à figura feminina, transfigurada em luxúria, volúpia e tentação.
Como dissemos, Madame falava abertamente que gostava de ser o penetrado, ser o “passivo”, sem o mínimo pudor, o que contrastava com seu perfil de malandro brigão e “dono da área”. Entretanto, esse mesmo homem valente protegia os menos favorecidos, as putas e as crianças ligadas ao feminino, ao belo e à exuberância. Tinha o “demônio no corpo”, ou seja, o daemon, o “espírito ambíguo” dividido entre a bondade e a maldade, entre a força de proteção e acolhimento às minorias e a força de destruição de seus golpes de capoeira e de navalha.
A bondade de Madame era seu daemon de mulher. Então, o demônio feminino fazia o bem. A Madame não é a ordem; ela dá as ordens. Manda e desmanda sem sujar as mãos ou borrar as unhas. Ao que parece, a única condição que agregaria João ao seu apelido seria sua autarquia conquistada à custa de trabalho, de valentia e de esperteza. Madame Satã, por conta do fato de que, ao mesmo tempo em que podia ser visto como durão, era também alguém de alma nobre que auxiliava pobres e humilhados. Transparecia sua essência dividida entre o maternal, o delicado, a “bicha” e o “macho”, o malandro desossado, flexível e ágil.
Para nós o que aparenta ser queer, estranho ou conflituoso, para João Francisco era estilo; melhor dito: era resposta estilosa frente às demandas da vida. Pôr-se em um mundo que o despreza e está sempre na iminência de obstruí-lo, vivendo em prol, antes de mais nada, da sobrevivência e em busca de respeito, requeria não só força, mas também graça e feminilidade. Permitir-se ser o homem-feminino, ser, a um só tempo, o Zé Pelintra e a Pomba-Gira, sem ter que pedir autorização ou dar satisfação – assim se efetivava a ética satânica de Madame.
O Brasil de Madame Satã é o Brasil da inclusão, da pluralidade e da policromia. Nele, execrados são gente e essa “gentidade” é talhada por uma consciência malandra do existir que se não se move, não pode ser livre. Em Auto da Compadecida, quando João Grilo é julgado e condenado por Jesus para ir ao inferno, ele clama por Nossa Senhora. Ela se compadece de sua triste vida miserável e o defende, sob a prerrogativa de que, diante da fome, da exclusão e do descaso, a única maneira que ele teria para sobreviver seria a esperteza.
A malandragem é ação moral dualista que tanto condena quanto absolve João Grilo. Dentro desse grupo marginal e transgressor, João /Madame está inserido, preconizando aquilo que ainda hoje debatemos, não mais em dúvida de ser certo ou errado, mas com o reconhecimento de que valores, antes soterrados pelo rigor dos costumes, agora são tão necessários e representativos que tomam contorno e elevam a voz para serem transpassados.
Graças à presença das pautas identitárias que reivindicam a dignidade do negro, do pobre, do malandro, do tornar-se bicha, hoje acessamos à vida de Madame, sem por isso sentirmo-nos em perigo ou envergonhados. Sua imagem mítica transmite-nos a elegância de respeitar essas camadas excludentes e a coragem de afirmá-las na qualidade de existentes, de visíveis. Assim, ela continua viva na memória de um país que teima em eliminar aqueles que se revoltaram com o comodismo moral e se colocaram acima da mediocridade de pensamento.