Filipi Gradim e Renan Rocha: Il Dulce Fellini

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Federico Fellini - Foto: Reprodução

 Assim resenhou o crítico de arte inglês John Ruskin: “as grandes nações escrevem a sua autobiografia em três manuscritos: o livro de seus feitos, o livro das suas palavras e o livro da sua arte”. Essa sábia consideração reconhece que um país é muito mais do que uma geografia estendida sobre a terra dentro de um território, encerrada em sua língua e em seus costumes. Um país se resume uma escritura burilada com afinco e originalidade. Nesse sentido, a arte é o caminho expressivo por meio do qual somos capazes de ler o discurso de um povo; ou seja, o caráter nacional de um país se torna compreensível para qualquer olhar de fora, estrangeiro; e então conhecemos aquele país de perto em toda sua grandiosidade e em toda sua miséria. 

Federico Fellini (1920-1993) foi o autor não só de um livro, bem como afirmamos sem exageros que ele escreveu uma biblioteca inteira sobre a Itália. Com suas vinte e duas películas, no decorrer de quarenta anos de ofício, o brilhante cineasta logrou a proeza de traduzir como ninguém o espírito e a vivacidade de seu povo. Não houve em toda história do cinema italiano quem registrasse com tamanha paixão e nacionalismo um caleidoscópio vigoroso que abrangesse um universo de personas e paisagens. Nem mesmo seus contemporâneos Rosselini, Antonioni, Pasolini, Visconti ou Scola conseguiram alcançar essa grandeza.  

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Ainda que seja apanágio do artista buscar uma marca, nem todo cineasta italiano é conhecido por ela como um atributo a priori de sua estética. Mesmo que Pasolini tenha trilhado um caminho próprio, nem por isso chamamos de “pasoliniana” qualquer obra que nos aparece. Mas com Fellini se passa diferente. Sua firma é tão peculiar, sua estética é tão pitoresca que “felliniano” tanto pode ser um filme de Fellini quanto uma peça de teatro ou um desfile de moda. Fellini foi, além de nacionalista nos temas, um internacionalista na estética. Transportou as páginas do grande livro da Itália para os livros que escreveram a arte de outras nações. É isso o que propriamente pode ser entendido como “genialidade”: a capacidade de transcender.  

Fellini iniciou sua careira nas artes plásticas. Exibia um talento nato para o desenho e para a pintura. De modo que, entre 1938 e 1942, produziu charges e cartuns para dois jornais semanais, um em Roma outro em Florença:  Marc´Aurélio e Florentine 420. Mussolini expulsou as revistas em quadrinhos pops da Itália, o que resultou em uma necessária produção nacional. Leitor assíduo do Flash Gordon, Fellini estava imbuído do espírito fantasioso do mundo comics e se encontrava, então, entre os desenhistas promissores da Itália. Por isso, terminou por contribuir para histórias como “Giacomino”, “Cico e Pallina” e “Geppi, la Bimba Atomica”.  

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Com o fim da guerra, Fellini “abandonou” as artes plásticas e enveredou pelo cinema. Mas antes trabalhou no jornal, escrevendo crônicas e artigos, e no rádio, na criação de esquetes. Na verdade, sua mão desenhista persistiu mesmo nos filmes, pois era comum que esboçasse storyboards das cenas, à maneira dos quadrinhos. Em todo caso, o mundo da dramaturgia lhe tomou de assalto. Primeiro, ao se casar com a atriz Giulietta Masina; depois, por ter sido convidado a trabalhar com Roberto Rosselini, escrevendo o roteiro de “Roma: Cidade Aberta” (1945). Com Rosselini aprendeu a arte da direção e mais ainda: assimilou, no plano da ação, a estética do neorrealismo que emergia com força expressiva na Itália do pós-guerra.  

O começo como diretor não seria diferente desse aspecto novo do cinema, proposto pelo neorrealismo, a saber, a narrativa dramática em torno de uma camada popular com seus conflitos socioeconômicos. Os filmes de Fellini dos anos 50 são, a bem dizer, versões de temas genéricos já vistos em Rosselini ou em De Sicca. Estão lá os desajustados que o mundo capitalista abjeta: os desocupados, os saltimbancos, os delinquentes, as prostitutas. Mas aparecem em seus filmes orientados por uma visão pessoal, familiar, ligada à história de vida de Fellini.  

Assim se delineia o conteúdo de “Mulheres e luzes” (1950), “Abismo dos sonhos”(1952), “Os Boas Vidas” (1953) e “A Trapaça” (1955) e “Noites de Cabríria” (1957), onde o diretor impregna suas histórias com fantasia e nostalgia, rebelando-se, em parte, contra o rigor da regra estética do neorrealismo. Fellini absorveu a crítica social do estilo de fazer cinema no pós-guerra, mas não reduziu sua arte à tessitura crua como se vê em Rosselini. O imaginário poético ronda o cinema de Fellini, muito em razão de sua inclinação plástica e caricatural e também pela influência do circo. Como bem aponta Pedro Maciel Guimarães, Fellini compõe “temas” e “um quadro visual extravagante que caracterizam toda a sua obra futura fundindo humor, melancolia, sonho e realidade”. Por ser extensa, sua obra não cabe nesse artigo. Assim, delimitaremos o campo de visão, nos centrando em apenas três películas de sua carreira. 

Carregado de premiações e já “aprovado” pelo cinema estadunidense por “Estrada da Vida”(1956) e “Noites de Cabríria” (1957), consagrando ambos os filmes com a estatueta de melhor película estrangeira, em 1960 reaparece com A Doce Vida. Nessa película Fellini logrou efeitos inusitados no cinema até então, ao fragmentar a narrativa dramática, rompendo com o padrão linear e orgânico hollywoodiano. O salto de Fellini, a forma peculiar de montar as cenas foi “organizar a história em grandes blocos autônomos”, como diz o crítico Jean Gili. De modo que o filme se torna menos fluido e “natural”, por isso mesmo, mais poético e mais lírico. 

Francisco Salles diz algo decisivo sobre o cinema de Fellini conquistado ali no experimentalismo artístico dos anos 60, impregnado na estético de “A Doce Vida”, a saber: “o horizonte de sua análise”, isto é, sua crítica social herdada do modo neorrealista, “passa do quadro para o mural”. O que Salles quer dizer é que a visão crítica ganha uma amplitude maior e o agente ampliador é a mídia.  O filme trata da espetacularização da vida por meio da projeção midiática do jornalismo. As feridas da sociedade romana já não se apequenam nos círculos dos rejeitados. Agora tomam a proporção da “fauna mundana dos nobres, dos ‘divos´ e ‘playboys’, dos pervertidos, dos intelectuais angustiados, das vedetes de sucesso”.             

Marcelo Mastroianni encarna o jornalista Marcelo, cercado de paparazzi,  em uma Roma burguesa e modernista. O filme não narra trajetória de um “herói”, mas a rotina de um jornalista que atravessa os cenários da cidade: festas em apartamentos, cabarés, restaurantes. Cercado de gente e movido por um hedonismo incansável. Em meio ao conflito com a namorada, ele experimenta a banalidade e o vazio de uma sociedade superficial. Mesmo após o suicídio do amigo, nada faz com que ele mude a rotina boêmia. O ímpeto carnal e o vínculo com diversas mulheres seguem como se nada de profundo pudesse atravessar a alma de Marcelo. Fellini está falando de si e de nós ao mesmo tempo, de uma sociedade líquida formada no pós-guerra. 

Em Oito e Meio (1963), outra vez Fellini desmonta o esquema orgânico e previsível de Hollywood em uma autocrítica sobre os meandros criativos do artista. Guido, um renomado diretor em busca de inspiração para o próximo filme, é uma espécie de Marcelo, só que mais maduro e mais desiludido e entregue ao fardo sem volta da criação. Guido, também interpretado por Marcelo Mastroianni, simboliza a ode ao eterno desejo pela liberdade. Juntando delírios, sonhos, realidade, ficção e a vida mais palpável à tela, o filme nos confunde com prazer. Mistura tudo para que entendamos que as loucuras e epifanias, as tragédias e falsas desilusões que nos permeiam são reais. Para que tudo ao redor da realidade, no extracampo da vida, se torne tão real quanto a ela. Por que é. Não que estejam materializadas frontalmente a nós, mas circulam pelo corpo, e por muitas vezes nos fazem mover. E assim moveu Fellini.  

Roçando em feridas e desejos inconscientes, “Oito e Meio” retoma a tendência psicanalítica, o erotismo presente em Fellini desde a década de 50. É pelo recurso do sonho que Fellini abre-se ao obscuro, seja da lembrança, seja do amor. O personagem Guido imagina uma cena em que reúne todas as mulheres que deseja – e pior – dominando-as com um chicote. O eterno conflito do artista voluptuoso e genioso que tenta controlar as paixões, mas não consegue, está presente nesse filme. Tal conflito timbra com o conflito do próprio Fellini, em crise criativa e em crise conjugal com Giulietta Masina, quando se apaixonou por Sandra Milo, com quem manteve uma relação extraconjugal por 17 anos.  

Refém da profissão, assim como Marcelo, em “A Doce Vida”; determinado de fora para dentro a agir, a carreira de Guido se compara a uma faísca na iminência de se tornar um incêndio. Seu destino corre ao sabor dos caprichos criativos. Os atores do filme que ele tenta dirigir não entendem seu novo projeto. As constantes discussões e desentendimentos com produtores, a paixão escondida nos olhos de Guido pelas lentes escuras dos óculos e ainda o passado que o convida a uma viagem conduzem a narrativa. Seus constantes questionamentos existenciais o levam a se esconder por debaixo de uma mesa na coletiva de imprensa, e assim, preferir viver sozinho. A par de tudo que lhe circunda, de suas vontades proibidas, do passado que lhe é tão mais vivo que o presente, Guido prefere desaparecer e acaba por se suicidar.  

 “Destruir é melhor do que criar, quando não estamos criando coisas realmente necessárias”, diz certo personagem ao final do filme. Nessa fala Fellini não fez referência propriamente ao ato de criar, mas sim à imagem do icônico diretor. É possível que, para Fellini, fosse mais verdadeiro se autodestruir, se mostrar escancarado na tela, se fazer ser pisoteado, a mostrar algo não tão real e tangível quanto a obra. A arte é potente ou nada é. Como citou o diretor Andrei Tarkovski, mestre do cinema russo: “mostre-lhes a vida e eles encontrarão dentro de si os meios para encontrá-la e apreciá-la.” Nada além disso talvez teria sido necessário. 

Já tendo conquistado o público e o educado à maneira de sua visão de vida, em 1973 Fellini produziu Amarcord. Trouxe para a tela o retrato da infância, em meio à ascensão do movimento fascista, ambientada em uma nada pacata cidade no interior da Itália. Fellini declarou certa vez: “parece-me uma definição redutora” chamar seus filmes de autobiográficos, “sobretudo quando se pensa nisso como uma anedota. ‘Amarcord’ não quer dizer ‘eu me lembro’”. O “eu lembro” é substituído pelo “isto existe”. A memória, guia fundamental do diretor, entra em cena não como reconstituição do passado, mas do presente vivo da Itália. 

O excêntrico, o voluptuoso, o hedonista, o extravagante, o onírico. A fórmula felliniana mantém a estrutura fragmentada da narrativa, onde o caráter episódico é mais consistente que o caráter dramático. O filme promove um passeio que percorre a galeria de caricaturas. Há nesse transcurso algo além dos conflitos pessoais que é a atmosfera da província, enfim, do circo social exposto pelo neorrealismo. “Amarcord” é cômico pela riqueza dos personagens e assustador pela forma como consegue ser honesto, tanto com a valorização dos costumes italianos, da família, da aglomeração (se é que podemos usar esta palavra de forma que não cause pavor), quanto com a crise histórica. A Itália pode ser tão vil quanto extraordinária aos olhos de quem vê. 

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