Nem sempre carecemos do aval dos Estados Unidos para legitimarmos o que a cultura brasileira possui de potente em suas expressões. O mito da supremacia estadunidense não só é uma prepotência das mais patéticas, bem como é uma das falácias mais bem sustentadas da história. Ainda assim, com raras exceções, é possível dar ouvidos ao juízo de valor vindo da terra do Tio Patinhas. Orson Welles, eleito o maior cineasta de todos os tempos, declarou que o “genial” Grande Otelo era não só “o maior ator do Brasil”, como também da América Latina. E, num país consagrado pelo brilhantismo de Paulo Autran, Paulo Gracindo, Rubens Correa, José Lewgoy e Othon Bastos – todos esses, a bem dizer, atores brancos – a validação de um talento negro, além de honrosa é, sem dúvida revolucionária.
Grande Otelo, o Sebastião Bernardes de Souza Prata (Uberlândia, 1915 – Paris, 1993) destacou-se como esse genial ator mencionado por Welles no teatro, no cinema e na televisão. O atributo de gênio, assim como o de muitos outros ao longo da história da arte, pelejou por um caminho tortuoso. Até ser reconhecido como o Grande Otelo, Sebastião teve que ser criado por uma mãe alcóolatra, na ausência de um pai assassinado a facadas, ter perdido seu filho de 6 anos de idade, envenenado pela própria mãe, que se matou em seguida. Mesmo depois de uma contribuição assombrosa para o acervo cultural do país, com inúmeras peças e filmes, foi pouco reconhecido pela brasilidade de seu talento. Certa vez desabafou: “da minha vida só foram mostrados os porres.” Ou então: “O brasileiro sempre torceu o nariz para o que é brasileiro.”
Além do mais, precisou enfrentar durante boa parte de sua carreira o racismo estrutural arraigado em nossos costumes. Nos anos em que atuou no Cassino da Urca, constrangia-se ao ser destratado como artista, já que era forçado a entrar pela “porta dos fundos” porque a porta da frente era vetada aos negros. Apesar disso, em entrevista ao Roda Viva (1987), Grande Otelo revelou: “quando o negro foi contratado para trabalhar no palco, isso pra mim foi um orgulho muito grande! Eu gostei de ser a pessoa que encaminhou aqueles cidadãos brasileiros para um espaço que eles não poderiam ocupar se eu não tivesse ocupado primeiro.”
A magnitude desse ator se manifesta primeiramente no caráter humano. Por ocasião da morte de Grande Otelo, a atriz Renata Fronzi disse o seguinte: “ele foi uma pessoa muito maltratada pela vida, mas sabia dar a volta por cima. Ele devia ser infeliz e não era.” Em “Moleque Tião” (1942), filme de José Carlos Burle narra a força de superação do “negrinho do interior fascinado pela ideia de ser artista.” Esse deslocamento, que leva o inquieto, galhofeiro e carismático Bastiãozinho de Uberlândia ao patrimônio cultural Grande Otelo, iluminado pela ribalta do Cassino da Urca, traduz a irreverência de um “zabumba” negro “no meio da selva”.
Em segundo lugar, o que se ilumina em Grande Otelo é seu talento. Welles se interessou pela brasilidade do artista e pela sua marotice física e espiritual. Vinícius de Moraes, por seu turno, destaca em Grande Otelo sua potência cênica e seu manejo com a técnica. Ele resenhou no Jornal O Amanhã (1943) que “o danado tem uma bossa fantástica para representar. E o certo é que se trata de uma vocação no mais justo sentido da palavra, quanto haja a vista o modo como Otelo tem progredido de dentro dos próprios recursos, organicamente, e bem pra cima, como as árvores mais dignas”. Já o jornalista José Simão, na matéria da Folha de São Paulo (1993), observou que a “cara preta” de Grande Otelo “transparece um talento policrômico” pelo fato de que ele “vestia as máscaras da tragédia e da comédia com a mesma desenvoltura”.
De minha parte, tive a primeira experiência estética com o trabalho de Grande Otelo na televisão, através da novela Sinhá Moça (1986), de Benedito Ruy Barbosa, em que ele encarnava o escravo Justo. Lembro-me de chorar em algumas cenas arrepiantes que ele dividiu com a excelente Chica Xavier. A novela e o preto Justo comoviam. Mas, depois, quando já encenava no teatro, tive o prazer de atuar na cena Romeu e Julieta, que Grande Otelo fez com Oscarito. Por ser o único negro do elenco, fui indicado a fazer o mesmo papel de Grande Otelo, ou seja, a Julieta, no que me levou a conhecer minha própria veia cômica de ator. Graças às pesquisas que fizemos dos filmes da Atlântida, além de me deleitar com toda aquela hilaridade incrível, percebi ser Grande Otelo o escalímetro cênico fundamental para mesurar em mim a destreza cômica.
Por isso, escolhi para esse artigo analisar o trabalho de Grande Otelo tão somente pela via cômica; que, por sinal, é aquela mais popular. Recorri às obras O Riso de Henri Bergson e Um Teatro de situações de Jean-Paul Sartre para abordar o tema da comicidade de uma forma que considero coerente e adequada à envergadura do talento de Grande Otelo. Vale notar que, em se tratando de comicidade, o nome artístico de Grande Otelo guarda per si um sentido cômico. Isso se dá porque existe na comédia algo de desproporcional, na forma, que nos leva a rir.
Essa desproporção é, por sua relação de dimensão, um absurdo, como diria Albert Camus. Espera-se demais de uma coisa, quando, na verdade, o resultado final é frustrante. Kant falava que o cômico vem de uma expectativa “muito tensa que acaba em nada”. No caso de Grande Otelo, espera-se um homem grande, na forma; mas, o resultado é o contrário; ei-lo: o grande que é pequeno. O Otelo, projetado na imaginação como o alto, forte e destemido mouro, visto, na realidade, como um homem magricela e miúdo, medindo de 1, 50cm. Os desencontros de espaço, as desproporções que faziam chocar o gordo e o magro, o baixo e o alto, o forte e o magro, sempre foram motes cruciais para as maiores comédias, de Aristófanes aos Trapalhões.
Para Henri Bergson, o cômico se expressa porque o ser humano é “o animal que ri”; ou, antes, o ser humano é o animal ridículo, passível de ser objeto de comédia. Mas, essa comicidade inerente ao humano não vem acompanhada apenas de um aspecto físico, espacial, como dissemos antes, na medida em que ele se desajeita na forma, contrastando aparências e medidas. O “narigão” em comparação ao “narizinho”, o “barrigão” à “barriguinha” geram o riso pelo absurdo em que se encontram diante um do outro. Porém, não basta apena isso.
O cômico só se reporta ao humano porque ele nasce do ambiente social em que o humano vive. Ora, no ambiente social, as funções estão rigidamente postas de acordo com certa norma aceitável. Dentro dessa norma, seguimos ativados por uma força automática, que parece agir por si mesma. Ser “humano” e ser “social” propriamente se liga a esse automatismo, a essa ação normatizada que chamamos hábito. Quando, ao contrário, o que parecia ser normal é realizado mecanicamente, desajeitadamente ou fora do ritmo, sentimos o ridículo emergir de qualquer situação. Bergson declara: “o risível (…) é certa rigidez mecânica onde deveria haver maleabilidade atenta e a flexibilidade viva de uma pessoa.”
Ao agir fora do movimento espontâneo, o ator cômico realiza um ato fora do comum, quer dizer, do que se espera no grupo social a que pertence aquele personagem que ele desempenha, exagerando na forma; e, por isso mesmo, carregando em extensão e energia o gesto que normalmente faríamos sem grandes esforços. Achamos graça do clown que leva horas para vestir uma calça que, pelo movimento automático da rotina, fazemos com a maior rapidez. O grau de dificuldade e de desmesura do espaço-tempo quebra a naturalidade da ação e, por isso, o riso vem, porque é ridículo que, pelo parâmetro da normalidade social, ajamos assim.
Rimos da criança porque ela é um ser naturalmente desproporcional. Bergson alertou para o fato de que rimos do homem e não de uma paisagem. Esta pode ser entediante, estupefaciente, medonha, mas nunca risível. Risível é o humano, principalmente quando está aquém de um modelo ideal postulado pela sociedade. Sartre chama de subumanidade a esse nível de pequenez social. O subumano não é ridículo, mas sim o esforço sério que ele empreende para imitar o humano. Como no caso da criança, quando se veste com trajes desproporcionais ao seu tamanho ou, ao revés, quando o homem adulto desce ao nível da subumanidade, tornando-se ele a criança. Diz Bergson: “a comédia é um brinquedo (…) que imita a vida”.
Por fim, cômico é o efeito que resulta do distanciamento. O que isso quer dizer? Ao descer ao nível da subumanidade macaqueando funções sociais do humano, o ser cômico gera a descontração do riso e não a contração de um sentimento. Não nos voltamos para dentro, comovidos com o nascimento esdrúxulo de Macunaíma, porque é ridículo um homem disfarçado de bebê, descabelado, fazendo bico com uma chupeta, espreguiçando-se numa rede. Grande Otelo nos arranca o riso de forma fácil por causa desses artifícios, mas também porque nós somos indiferentes aquela situação absurda. O riso não se contrai; ele explode.
Não podemos nos condoer do ser humano se quisermos enxergá-lo pelo prisma do ridículo. Nada se perdoa, nem se condena. Nada se lamenta ou se acusa. O riso é preenchido de uma imoralidade, posto que neutraliza a emergência das emoções que nos humanizam. É a subumanidade que nos atrai, pelo contrário. É subumano o exagero da máscara facial de Grande Otelo, com seus lábios grossos mecanicamente acentuados, seus olhos arregalados, sua forma artificial de correr, caminhar, dançar, sentar, entrar e sair de cena nos filmes; subumano são os namorados do Romeu e Julieta da Atlântida, em que um homem se traveste de menina e um Romeu desastrado quebra a garbosidade do clássico de Shakespeare. Ou seja, nada pode ser levado a sério se quisermos rir. A molecagem é a regra da arte na qual Grande Otelo é mestre.