O sociólogo Stuart Hall, no importante livro A Identidade Cultural na Pós–Modernidade (1992), ao se voltar para uma análise da identidade cultural, compreendeu de que forma nos identificamos e nos amplificamos quando projetamos nossa individualidade em um sistema de representações, isto é, em narrativa. Não existimos só como indivíduos, mas constituímos, em conjunto, uma narrativa. Cultura é a narrativa de um povo e de um lugar e se exprime como “modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos”. E o meio pelo qual construímos essa semiótica é a imaginação.
A tradição, “através da repetição (…) implica continuidade” e essa repetição nos dá a impressão de que a tradição é antiga; quando, na verdade, foi inculcada como uma “norma de comportamento.” Na pós-modernidade, iniciada com o fim da II Guerra, a tradição não é herdada, mas imaginada e ressignificada dentro de um ângulo de visão mais global. Isolados em tribos, clãs ou províncias, apenas repetimos a narrativa . Somos passivos a ela. Mas, no espaço metropolitano, na urbe pós-moderna, a cultura é ativa, ou melhor, criativa, reivindicando a imaginação como elemento constituidor da narrativa, como um braço direito do progresso.
O Rio de Janeiro, muito conhecido por seu bairrismo, acabou sendo responsável por esse processo que leva uma localidade, através da imaginação, ressignificar uma região e elevá-la ao nível da globalidade. Copacabana inventou uma tradição. A “copacabanilidade” tomou conta da localidade e se espalhou pelo mundo com seu hedonismo praiano, com sua fineza bossanovista. Madureira avançou as ruas e ganhou amplitude mundial com seu ritmo sambista. E na Tijuca? O que há de “tijucalidade”? O que se inventou lá, a ponto de torná-la global?
É sabido que o gentílico “tijucano” se aplica como cartão de visitas que, na qualidade de adjetivo pátrio, identifica o habitante do bairro Tijuca lhe designando um pertencimento territorial. Orgulha-se o tijucano de ser aquilo que se inventou por repetição, de ser um símbolo. Todavia, interessa-nos saber a respeito de uma localidade específica da Tijuca, um espaço privilegiado do bairro que é o cruzamento da rua Haddock Lobo esquina com a rua Matoso.
No eclético álbum Nuvens (1982), Tim Maia compôs a deliciosa e suingada canção soul “Haddock Lobo esquina com Matoso” na qual nos revela: “Haddock Lobo/ Esquina com Matoso/ Foi lá que toda confusão começou”. Temos aí um nostálgico Tim Maia, em pleno anos 80, nos convidando para uma viagem no tempo ao abrir o baú de uma tradição inventada no seio da Tijuca, no fim da década de 50. Uma “confusão começou” no encontro das ruas Haddock Lobo e Matoso. Qual? Algo foi inventado no contexto urbano de uma Tijuca conservadora e, ao mesmo tempo, cosmopolita, que se tornou um sistema nacional de representações simbólicas.
Uma parte da identidade cultural brasileira, uma transcendência que ultrapassa os muros da individualidade e da materialidade foi germinada na encruzilhada dessas duas ruas. Para nosso regozijo, terminou por celebrar um significativo capítulo da história da música, a saber, o nascimento da Jovem Guarda. Seria essa a “confusão” que começou? Tim Maia se refere exclusivamente a esse movimento ascendente da juventude tijucana quando, nos versos da canção, menciona que “Erasmo, um cara esperto/ Junto com Roberto/ Fizeram coisas bacanas/ São lá da esquina”? Não teria sido essa “confusão” outra coisa além da Jovem Guarda?
Através dos episódios biográficos somos capazes de compreender a trajetória que levou o Sebastião Rodrigues, “o esperto, preguiçoso e comilão”, “o gordinho mais simpático da Tijuca”, o “Tião marmiteiro” a se tornar o Tim Maia. Temos a oportunidade também de entender se a “confusão” a qual Tim se refere na canção se reduz apenas a um movimento da história da música brasileira ou se engloba outros paralelos a ele. Existe uma entrelinha que os versos escondem ao generalizar a tradição inventada pela Tijuca dos anos 50.
Nelson Motta sugere, em seu relato, que, na infância tijucana de Tim, a confusão já havia acontecido, quando este conheceu Erasmo Carlos, em uma partida de futebol. O tempo passou. O encontro musical propriamente dito só viria ocorrer depois, na adolescência, quando Tim esbarrou com “o velho companheiro de peladas Erasmo”, no Bar do Divino, “ao lado do imponente Cine Madrid”, como diz Motta. O Cine Madrid, nos anos 50/60, representou o epicentro cultural da Tijuca. Na mesma proporção de significância cultural que o Cine Paissandu, o Cine Madrid reunia a nata da juventude tijucana que desfilava certo estereótipo visual e se impregnava de sinais de uma tradição recentemente inventada que era o rock and roll.
No cruzamento da Haddock Lobo com Matoso era reinventada uma Tijuca graças à imaginação elétrica de um grupo de jovens que compartilhava os mesmos interesses: “a turma adorava música, filmes e carros. Todos haviam visto as fitas de Elvis, James Dean e de Marylin Monroe e eram fãs do Fantasma e do Capitão América”. No bar do Divino, respirava-se a mesma atmosfera rebelde. Mas, diferentemente dos jovens da zona sul, sobretudo “os da turma da Miguel Lemos e do edifício Camões, ambas de Copacabana”, os tijucanos eram mais humildes. Não “tinham carros e invadiam cinemas com motocicletas”, como revela Erasmo Carlos.
Aquele ponto de encontro foi ademais um espaço de celebração e de afirmação da cultura pop, tendo, na Tijuca, uma fonte de deságue da febre cultural que se instalou no mundo e que não poderia deixar de respingar no Brasil. “Todos gostavam de rock”, segundo diz Nelson Motta, “e, quando aparecia um violão era uma rara oportunidade para um mulato gordo e pobre dar o ar de sua graça com sua sensacional batida de Long Tall Sally e os seus gritos à Little Richards”. Tim Maia, ainda Tião para os íntimos, por sua musicalidade latente, usou do espaço de socialização do Bar do Divino como palco de exibição de seu talento, atraindo olhares.
Apelidado de “Babulina da Tijuca”, pela versão brasileira que fazia da “Bop-A-Lena”, um rockabilly cantado por Ronnie Self, o “Tião Marmiteiro” deixou de lado esse estigma e se tornou um músico, na visão da vizinhança. Não tardou, então, para que surgisse a necessidade de não só cantar no bar ou nas festinhas, mas de se formar um conjunto vocal à maneira do The Platters ou The Diamonds, cantando “rocks de Elvis, Little Richards e Chuck Berry”. Em 1957, pelo fascínio que nutria pelo espaço sideral, o “Babulina da Tijuca” fundou o The Sputniks, convocando Arlênio Lívio, Wellington Oliveira e Roberto Carlos, “candidato à última vaga”.
Roberto Carlos, “o moreninho magrelo de Cachoeiro do Itapemirim, de cabelos crespos e olhos tristes que adorava rock e cantava muito bem”, embora talentoso, não caiu nas graças do Babulina da Tijuca. O grupo se formou mesmo a despeito da antipatia de Tim. Ensaiaram no porão da casa/pensão em que Babulina morava. Foi um período tenso, de brigas e de indecisões quanto ao solista das canções. O desejo de “ser um solista, um cantor popular” e de “voar alto”, constitui a ambição artística de Roberto e de Tião Babulina, o que levou ao choque de interesses. Por fim, resultou em um grupo com dois solistas: Roberto, melancólico e doce, preenchido da espessura vocal de Elvis e Tim, agressivo, transgressor e sexual como Little Richards.
The Sputniks chamaram à atenção do produtor Carlos Imperial, “o principal divulgador de rock n roll no Rio de Janeiro”, que apresentava na TV Tupy o programa vespertino “Clube do Rock”. Apresentaram-se uma única vez cantando “Little Darling” do grupo The Diamonds. No mesmo dia, uma calorosa discussão entre Roberto e Babulina encerrou a breve carreira do grupo, graças à “alta traição” de Roberto que, seguindo interesses pessoais, convenceu Imperial de fazê-lo se apresentar sozinho no programa. O “pau” comeu e os dois cantores se afastaram.
No entanto, “o Brasil começava a descobrir o futuro”, como afirmou Motta. Governo JK em ebulição, capitaneado pelo avanço industrial. Cosmopolitismo conjugando com a refulgência de valores nacionais. Na crista da onda, outro ritmo, outra tradição inventada, agora pela comunidade praiana da zona sul despontava: a Bossa Nova. A música transloucada deu lugar ao “cantar baixinho para não incomodar a vizinhança”. Mesmo seguindo na via roqueira, ao lado de Erasmo, no grupo The Snakes, o agora Tim Maia ( batizado por Carlos Imperial) não pôde resistir ao charme de João Gilberto e ao modo peculiar de tocar o violão que o consagrou.
“Cataclisma interior”, assim definiu Erasmo o deslumbramento com a Bossa. Tim Maia e todos da turma da Tijuca se contagiaram e se viram divididos entre o intimismo do “Chega de Saudade” e a explosão de “Rock Around the Clock”. Tim “ouvia João Gilberto o dia inteiro” e, de ouvido, tentava a proeza de capturar aquela levada nova e difícil. Erasmo e Tim queriam formar uma dupla, se mudar para Copacabana e se travestir de outra tradição inventada. Os suburbanos trocaram a eletricidade pelo som opaco do violão gilbertiano e pelo refinado e lívido jazz.
Em 1959, Tim viajou para os EUA e lá ficou até 1964. Levou na mala a bossa e o rock. Consumiu buble gum e fumou maconha. Abriu-se a uma nova tradição inventada ao conviver em Nova Iorque com a black music e o “som da Motown”. Na volta ao Brasil, a turma da Tijuca era idolatrada na TV. A história de Tim foi outra, no entanto. Mais próxima do suingue de Jorge Ben que os mornos acordes de Erasmo e Roberto. No entanto, a “confusão” estava feita. Jovem Guarda de um lado e a soul music brasileira de outro criando um novo símbolo para a Tijuca, traçando a “tijucalidade” emergente no espaço mínimo de uma esquina; que, enfim, voou alto.
Muito orgulho de ser tijucano! (Apesar de não ser carioca, haha). Tijuca, Zona Sul da Zona Norte, terra de jovens bonitos e descolados, terra que celebra a tradição da Zona Norte carioca, amo muito