Há quem diga que em quartos de hotel se esconde entre as paredes certo demônio da melancolia e, basta passar uma noite solitária nesse lugar, que ondas de náusea acometem a alma, sacudindo-a em suas estruturas emocionais. É do imaginário literário que extraio essa assombração. Lembro-me de Antoine de Roquentin, personagem de A Náusea, romance escrito pelo grande Jean Paul Sartre. Encerrado em um quarto de hotel, Antoine incumbe-se da tarefa de historiografar a vida de um aristocrata do século XVIII. Mas, de súbito, se vê tomado de um desagradável sentimento que submergiu apoderando-se dele “como uma doença”, um “enjoo adocicado” que o desequilibra, o perturba. É ela: a Náusea ou vazio de existir enquanto humano.
Creio que tenha sido essa mesma náusea o que, gradativamente, consumiu a conflitiva alma da cantora e compositora Janis Joplin (1943-1970). Tanto para ela quanto para Roquentin era difícil existir. Mas, ali, entre as quatro paredes de um quarto de hotel, longe do mundo (no caso de Janis, longe dos refletores e estúdios de gravação) a dificuldade era insuportável de aguentar. Roquentin entendeu que a náusea é o momento de honestidade graças ao qual o humano se dá conta de sua existência, desconsiderando os idealismos que depositaram sobre ela ao longo de séculos. O homem não tem sentido algum para existir. Está no mundo do mesmo jeito como poderia não estar. Seu ser é contingente, excedente. Perpetua-se em busca dos seus, onde se encaixe, mas entende que seu lugar “não é em parte alguma”; que está “sobrando.”
“Não há nada, nada, nenhuma razão em existir”, declarou Sartre. De modo que devemos nos arranjar com a vida como melhor nos aprouver . Roquentin usou desse artifício para tornar-se consciente do quão ele e as coisas são incoerentes. E Janis Joplin? Ao roçar no seu vazio existencial e compreender que sobrava, decidiu se trancar no hotel, beber sem parar, injetar uma dose de heroína e dormir para… Aliviar a dor? Exato. Mas o efeito desastroso terminou por matá-la de overdose naquela noite de 4 de outubro de 1970, na cidade de Los Angeles.
A menininha triste que “deve ter chegado ao seu limite”, que sabia que não poderia contar com ninguém, pois o mundo escapa feito os “pingos de chuva que caem” e se dissolvem na terra, nasceu na cidade de Port Arthur, no Texas, em 19 de janeiro de 1943. Como boa capricorniana, desde pequena foi forçada a se encaixar nos moldes conservadores da sociedade sulista estadunidense, mas percebeu que seus concidadãos agonizavam da doença do racismo, da misoginia e do machismo. Não suportavam nada que extraviasse a linha dura de sua regra comportamental. Meninas da idade de Janis cantavam no coral da igreja e não ouviam discos de cantoras de blues como Bessie Smith, Leadbelly e Big Mama Thornton. Mas ela, sim, ouvia.
Não tardou e foi expulsa do coral “porque não seguia as instruções”. Segundo relata a amiga de infância Karleen Bennet: “ela nunca pôde compreender como fazer para ser como todo mundo.” Além de possuir gostos que eram pessoais e de não partilhar do mesmo comportamento dos amigos, para piorar, Janis era frágil e insegura por causa de sua aparência física. No documentário Janis Joplin: Little Girl Blue (2016), de Amy Berg, a irmã do meio, Laura Joplin, nos revela: “Janis queria ser bonita, curvilínea e magra como as fotos que ela via nas revistas e ela se viu ganhando peso, ficando robusta, a pele cheia de espinhas e suas feições não eram tão bonitas como vemos nas fotos em todos os lugares. Então, ela começou a questionar a própria beleza.” Pelo físico se sentia inferior o lado das meninas e, na presença dos rapazes, era rejeitada pelo modo de agir, por ser ao mesmo tímida e despojada, feminina e viril.
Mesmo sendo a família “careta”, havia uma liberalidade possível dentro de casa, como revela o irmão caçula Michael Joplin: “ela desejava se diferente. Nossos pais nos permitiram ser assim. Mas não sabiam o que aconteceria se assim o fizéssemos. Janis foi a primeira da família a descobrir isso. Que se se você causar problemas você poderá ser notado. E ela causou o máximo de problemas que pôde.” Para se sentir alguém, na adolescência, Janis precisava transgredir e a forma que encontrou para extravasar sua ansiedade e seu incômodo com a náusea pela existência em Port Arthur, foi se tornar uma beatnik: “ela começou a se vestir de um jeito diferente, usando sapatos sem meias e saias justas. Seu cabelo parecia mais um beatnik. E ainda havia um aspecto da sua sexualidade e sua personalidade que estava em desacordo.”
“Quem é ela? O que ela faz?”, questionava-se a juventude de Port Arthur, na virada para a década de 60. Nesse período, Janis não só era rejeitada como também linchada e abusada pelo rapazes. Suas ideias eram deslocadas do conservadorismo local. Sua mente acompanhava as mudanças do mundo e, por isso, refutava com fervor a segregação racial na cidade. Disse Laura que “a interpretação da Janis do que era ser bom incluía coisas que muitas pessoas no sul ainda não estavam prontas para incluir.” Daí as consequências foram graves e deixaram feridas incuráveis na psique de Janis: “nossa cidade tinha um grupo ativo da KKK e aconteceu de ela ser assediada por alguns rapazes de sua classe. Jogavam moedas nela, a ofendiam, e ela se tornou um alvo nos últimos três anos do ensino médio.” A solução era sair da cidade o quanto antes.
Como seu talento não reduzia apenas à música, mas também às artes plásticas, Janis foi aprovada no curso de Artes Visuais da Universidade do Texas, em Austin, mas não seguiu adiante. Preferiu ouvir o chamado da música, ainda mais imperativo. Nos fins de semana passou a se juntar com os rapazes que tinham a mesma sintonia beatnik e passou a cantar junto com os Waller Creek Boys: “rapidamente ela se tornou um dos rapazes”, disse Powell St. John. Segundo revelou Janis, aquele período em Austin “foi quando descobri que tinha uma voz incrivelmente alta. Assim comecei a cantar blues, que eu sempre gostei. (…) Tocava música caipira em Austin por cerveja grátis. Costumava cantar em clubes populares apenas por zoeira.”
O sul era infértil para um espírito irrequieto como o de Janis. As folhas estavam marrons e o horizonte cinza, por isso, em 1963, ela partiu para São Francisco viver o californian dreaming: “não suportava mais o Texas. E fui para a Califórnia porque era muito mais livre e se podia fazer o que quisesse sem encherem seu saco”, confessou. Dali em diante, morou de aluguel, passou a cantar em pequenas casas, até que conheceu Jae Withaker, mulher, negra e emancipada, com quem morou e namorou durante certo tempo. A separação veio porque Janis começou a se drogar, primeiro tomando metanfetamina (“meth”), depois LSD e heroína, sempre abastecida por muitas doses de whisky. Em seguida conheceu Peter Le Blanc, com quem namorou e chegou a planejar casamento. Mas Peter a decepcionou e não foi à casa dos pais de Janis formalizar a união.
Nos entretempos da vida foi indicada para integrar o corpo do Big Brother & the Holding Company, uma banda de blues, rock e folk, que buscava uma mulher para assumir os vocais. Tiveram a sorte de encontrar em Janis a potência elétrica que faltava à banda. E isto se confirmou naquela iluminada tarde de sábado, no verão de 1967, quando tocaram no Monterey International Pop Festival para uma plateia de 10.000 pessoas boquiabertas com a voz de Janis.
O escritor John Byrne Cooke, que afortunadamente esteve presente nos bastidores, relata: “eu pude ver cada mecha do cabelo esvoaçante de Janis enquanto ela marcava seus pés e colocava seu corpo inteiro nas canções espremendo cada grama de emoção de cada nota (…) enquanto ela provava ao mundo que uma garota branca de 24 anos vinda do Texas poderia cantar blues.” Janis surgia, não como mimese das blues women, mas como peça originalíssima, ao apresentar a música negra tradicional sob um fundo psicodélico típico do acid rock.
Jae Withaker também confirma o estado de alma visceral com que Janis se entregava à música: “ela definitivamente sentia o blues. Bessie Smith e todos os cantores de blues. Ela amava aquelas pessoas. E creio que ela desejava ser como eles. Sentir suas dores. Acho que por isso que bebia tanto e se drogava.” Como se era de esperar uma mulher que viveu rejeição, insegurança e isolamento, não havia outro ritmo a se cantar senão o blues. Recordo-me novamente do personagem de Sartre e da forma com que ele se sentia deliberado do peso e da dor de existir. Era na música que certo desvio da náusea era possível: estar na música e, portanto, não estar inteiramente consigo próprio, é se manter brevemente feliz ou, como pensava o pessimismo filosófico de Schopenhauer, sentir-se o menos infeliz possível.
Janis agia como Roquentin: não traçava um plano de fuga para suas dores, mas as assumia inteiramente no palco. Cantar significava “experimentar diversos sentimentos”, já que é possível “sentir coisas que estão em sua imaginação, mas saber que são reais. Por isso eu gosto de música. Porque é criativo. E enquanto acontece cria sentimentos.” Com a Big Brother, Janis brilhou para o mundo como um dos mais importantes nomes da música pop. Gravou dois álbuns com eles: Big Brother & The Holding Company (1967) e Cheap Thrills (1968) que catapultou a banda para o topo da Billboard com o aporte de canções como Summertime e Piece of my heart.
De início imitando a tessitura vocal de Etta James ou Bessie Smith e a performance cênica de Otis Reading, Janis aprendeu a cantar para além da garganta, com o corpo inteiro, como se todo o seu ser estivesse na música, coabitando a profundeza da melodia. Graças também ao suporte dos rapazes do Big Brother. Juntou-se, depois, a outras duas bandas. Em 1969, filiou-se ao Kozmic Blues Band, com quem gravou o excelente álbum I Got Dem Ol’ Kozmic Blues Again Mama! e se apresentou no icônico festival de Woodstock. Separaram-se e, em 1970, Janis conheceu o Full Tilt Boogie Band e gravou o álbum Pearl, considerado uma obra-prima.
Janis ascendeu em um meio predominado por homens e, como trazia na alma a marca de antigas dores, não soube lidar com as emoções intensas que vivia no palco, cuja catarse não era realizada a contento. Algo sobrava: o corpo da mulher left lonely;que, na “tentativa de dar sentido” à vida, se esforçou demais: “tudo o que fiz foi ser selvagem, beber muito, trepar, cantar”, confessou. Quando retornava para casa, lá estava Janis como qualquer ser anônimo: entregue às “febres da noite”, às pulsões de morte. Em uma das suas apresentações, enquanto cantava, dava risadinhas marotas e abria seu coração: “quando estão sozinhos. Acho que todos ficam, às vezes, não? Porque, isso é fato, todo mundo fica. Vou dizer o que, precisa, baby. Quando tem esses pensamentos estranhos, e não sabe a origem, aquelas pequenas bizarrices acontecendo com você e não sabe o que são. Vou dizer o que precisa. (…) Precisa de alguém que te queira, alguém que te apoie, alguém que precise de você, alguém que te use.”
Como esse suporte afetivo lhe faltou, como a família estava longe, como os amores lhe decepcionaram e não apostaram nela, Janis mergulhou nas drogas pesadas e na depressão. Muitas vezes tentou suicídio. Havia uma atmosfera de exigência pelo fato de ter se tornado uma estrela pop. “Ela forçou os limites”, disse um amigo de colegial. E o que fazer quando o limite foi escancarado? Quando o eco possante da voz só faz sentido no palco e fora dele não é nada? Essa exigência consumiu a alma de Janis e aos poucos foi sucumbindo sem ajuda de ninguém.
Quando doía demais, a pequena Janis apelava a Deus em canções pungentes como Work me, Lord rogando para lhe preservar pelo menos isto: sua ambição; que parecia modesta, mas que lhe custou muito: “depois de atingir um certo nível de talento, e poucos têm esse talento, o fator decisivo é a ambição. Ou, como eu vejo, o quanto você realmente precisa. Ser amado, estar orgulhoso de si mesmo. Acho que é disso que se trata a ambição. Não apenas uma busca depravada por posição ou dinheiro. Talvez seja por amor. Muito amor.” E o resto é silêncio.