Filipi Gradim: Lá onde a morte não pede carona

Colunista do DIÁRIO fala sobre a imortalidade da vida

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Faz tempo que a morte está em nosso encalço, assediando-nos de carona em carona. Lembro-me bem de assistir ao filme que passava no Supercine da Rede Globo, lá pelos idos dos anos 80, cujo título era este: “A morte pede carona”. No excelente thriller dirigido por Robert Harmon, um psicopata, interpretado por Rutger Hauer, encontra-se à beira da estrada pedindo carona, tomando assento nos carros para, enfim, assassinar os motoristas durante a viagem. O que se vê é puro estilo road movie com ingredientes de um suspense de primeira qualidade. Clima sombrio. Estrada deserta. Tensão total nos olhares, nos subtextos. E o mais impactante: a morte está presente como companheira de um caminho cujo final é desconhecido, porém fatal.  

Sim, faz tempo que a morte nos pede carona e nos vitima nesse absurdo caminho da vida. Diante de tal constatação, de tal certeza que nos persegue desde que nos conhecemos por humanos, ainda assim somos surpreendidos com o inesperado golpe que ela nos prepara. Parece que a morte urde algum plano para nos retirar de cena e nos forçar uma despedida indesejada do mundo que nos envolve e nos encanta. Parece. Não podemos assegurar como ou quando morreremos, de que forma e por quais meios. Esse plano de detalhe nos escapa. 

A única garantia é sua presença como carona de nossa viagem. Essa passageira invasiva nos conduz ao desespero. Se há coisa mais temível no mundo é ela, a morte. Talvez porque sua ocorrência esteja ocultada por uma nuvem de mistério e de suspense. Seja como for, o maior dos temores é morrer e perder os entes que tanto amamos. Sobre tal assunto, o pensador alemão Arthur Schopenhauer se dedicou a escrever com destreza e acuidade teórica. É de sua autoria o texto Da morte que, para mim, representa uma das mais belas reflexões da filosofia ocidental. Quando o li pela primeira vez fui arrebatado com tamanha profundidade conceitual. 

Afirma Schopenhauer que “o pior dos males, o mais terrível dos perigos que pode nos ameaçar, é a morte”[1]. A visão de alguém agonizando em seus últimos suspiros ou de alguém sendo executado à luz do dia provoca medo, revolta e terror. Somos tomados de consternação quando sabemos da morte de parentes, amigos e vizinhos e lamentamos essa perda. E isso tudo por quê? A resposta de Schopenhauer é a seguinte: porque somos seres apegados à vida e, quanto mais tomamos ciência de que a morte se aproxima, mais apelamos pelo viver.  

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O apelo pela vida está em todo vivente como um princípio universal. Experimente matar uma formiga com as mãos e verá claramente como o inseto luta para se manter vivo, fugindo loucamente daquela ameaça estranha. O mesmo se dá conosco. Repelimos ao máximo o fator ameaçador de nossa vida. Spinoza, outro grande filósofo, chamou de conatus esse apelo à vida, ou seja, essa persistência em manter a existência durando, apesar de todos os obstáculos. Por isso, “o temor da morte é independente de todo conhecimento” e se manifesta em nós como impulso vital, como instinto de sobrevivência inerente a todas as formas viventes do mundo[2].  

Qual é a ideia que nos assombra ao pensarmos que a morte pede carona em nosso caminho pela estrada da vida? A ideia de aniquilação absoluta. Acompanhada da ideia da morte está a ideia do nada. Pensamos assim sem que forcemos o espírito. Tal ideia brota por conta da própria aparelhagem mental que forma nossa capacidade pensante. O que isso quer dizer? O instrumento que nos faz pensar, o intelecto, é quem responde por essa compreensão niilista da morte. É o intelecto que pensa que a morte é a porta de entrada ao mundo do nada. De modo que, nesse sentido, a morte ocupa o pensamento como produto meramente intelectual. O que difere em muito da realidade tal como é, pois nem tudo o que pensamos corresponde ao real. 

Schopenhauer percebeu que o intelecto pensa a realidade, mas não a apreende em sua essência. Se a morte é real, se cada ser que amamos se foi por essa ou aquela circunstância fatal, significa que a morte não pode simplesmente se reduzir a um produto do pensamento. A morte tem algo nela de mais consistente que o pensamento não alcança. Então, para que tenhamos tal alcance é preciso que nos retiremos um pouco do que o intelecto comum nos força a pensar. É preciso contemplar a ideia da morte para que tenhamos clareza de sua noção, sabendo se morrer é ou não é aniquilação absoluta, o fim total do ser, a última cena no espetáculo da vida. 

O intelecto pensa a realidade a partir de certas coordenadas naturais do espírito que são o tempo, o espaço e a causalidade. Se representamos um mundo vivo, ou seja, se ele nos aparece como tal, é graças ao tempo (que faz a vida suceder em antes, agora e depois), ao espaço (que dispõe a vida em um lugar) e a causalidade (que gera ações e reações). Mas, nada disso, nem tempo, nem espaço, nem causalidade, é real; são apenas meios de representar o real. O real mesmo, o real em si, puro e liberto do intelecto, está para além do tempo, espaço e causalidade, como ensinou Platão. O real dá consistência ao pensamento e não o contrário! 

O entendimento da morte passa por uma hierarquia metafísica. Antes do pensar, há o real que substancia tudo o que existe. E esse real Schopenhauer chamou de Vontade. “Somente a Vontade é o condicionante, o núcleo do mundo dos fenômenos; ela é independente, por conseguinte, das formas desse mundo, às quais pertence o tempo”[3]. A Vontade é a força indestrutível que dá suporte à vida. Por estar fora do tempo, nunca finda, nunca falece. Também por estar fora do espaço, não se acha limitada a nenhum território. E, por não seguir causalidade, nunca sofre ação de nada que venha de fora afetar sua potência nuclear. Por isso, a Vontade é inabalável em seu ser. Ela é quem dá vida ao ser vivo e nunca se esgota em sua influência. “Com a morte perde-se a consciência, mas não aquilo que a produziu e a manteve: a vida se extingue, mas não se extingue com ela o princípio de vida, que nela se manifestou”[4].  

O intelecto se equivoca ao pensar o real seguindo as coordenadas espaço-temporais e causais, pois ele se articula com as coisas apenas pelo que que a aparência nos mostra. Ao pensar a vida e os vivos, o intelecto não consegue operar senão obedecendo à logica mecanicista do começo, meio e fim. Por esse prisma, a morte não pode ser outra coisa senão aniquilação absoluta, evento fatal que dá fim a certo processo de vida e que é irreversível. No entender comum, ao morrer, chegamos ao fim porque se extinguiu o princípio que ligava a alma ao corpo e que gerava o movimento orgânico. Para o intelecto, apegado às aparências, a vida dura apenas um sopro, relegando inteiramente nosso ser a uma condição de lamentável fragilidade.  

No entanto, morrer, da maneira como a linguagem comum absorve e reproduz, não é o fim absoluto do ser vivo. Em primeiro lugar porque a Vontade, que é fundamento da vida, não pode se extinguir. A Vontade ignora o que seja “o fim” porque nunca passou pelo “começo”. A Vontade é a presença eterna, o querer incessante que, para além de todos os tempos, infla de vida tudo o que existiu, existe e existirá. Em segundo lugar, o fim do ser vivo não absoluto porque, ao lado da Vontade, coabita outro princípio indestrutível que é a Ideia. Schopenhauer, inspirado na filosofia de Platão, também adotou o imobilismo como meio de compreender o real. Isto quer dizer que, por detrás do que se passa na vida, há um substrato condicionante fixo, que não sofre mudanças, e que pode ser volitivo, ou seja, inconsciente e instintivo – como é o caso da Vontade – como pode ser inteligível e capaz de fundamentar racionalmente as existências. Esse nôus, esse espírito imortal das coisas, se chama Ideia.  

A Ideia acompanha a Vontade como realidade em si e por si, ou seja, como realidade abstraída de qualquer circunstância, tempo e lugar; dito de outro modo, Ideia é uma realidade que existe independente de qualquer modo de pensar; e que, por conseguinte, preenche a vida de razão. Enquanto a Vontade é o estofo vital, o “sopro” que anima todo ser vivo, a Ideia é unidade inteligente, a forma espiritual que nos permite compreender cada ser. 

Quando morremos, morremos enquanto coisa viva, enquanto imagem de algo vivo, que contém em si um princípio animador. O ente querido que perdemos por doença, acidente, suicídio ou homicídio, se extingue unicamente como aparência, de modo que morrer só existe na superfície do que percebemos. Desaparece de nossa presença aquele corpo, aquela manifestação singular de vida; junto dela se vão o entusiasmo da companhia, a irradiação do sorriso, o afago das mãos, a conversa prazenteira etc. Evanesce uma pessoa, um certo caráter que agia dessa ou daquela maneira. Porém, tudo isso é estritamente fenomênico, apegado ao mundo regido pela corporeidade, pela mudança, pelo tempo, pelo espaço e pela causalidade. 

Para Schopenhauer, a eternidade existe. Somos imortais. Mas só compreendemos essa noção nos desapegando do intelecto comum, que só pensa as coisas na sua relação de causa e efeito, considerando a materialidade daquilo que se situa em algum lugar e que sucedeu, sucede ou sucederá em algum momento. Se contemplarmos a vida, em vez de sermos imediatistas e materialistas, entenderemos que algo persiste depois da morte individual. A própria natureza dá provas disso, mas o nosso apego às pessoas não nos permite pensar fora das circunstâncias.  

Se perdemos alguém, nos custa pensar que, por trás daquele ser que se foi, o princípio motor permanece vivo. Atribuímos a vida ao que é material e nos afastamos da verdade que revela aos nossos olhos que a vida não se esvai, pois uma série de outros seres continua existindo e continuará no futuro. Deveras, a vida não se esvai, não só porque a Vontade, que anima os seres, ignora o tempo e, portanto, desconhece começos e fins, mas porque a Ideia que dá identidade e sentido às coisas vivas segue o mesmo padrão. A Ideia de um ser vivo não morre. 

E se não morre é poque a Ideia espelha a espécie do ser vivo. Se um ser vivo é de tal espécie é porque nele habita uma Ideia. No ser humano, habita a Ideia da humanidade, de modo que os indivíduos que nascem e morrem são portadores dessa Ideia. Se alguém morre não leva consigo a Ideia da humanidade para o caixão; ela se mantém para além do cheiro pútrido do cadáver, pois a Ideia paira acima de tudo o que sofre ação do tempo.  Ela é nossa eternidade no plano da inteligência. “É na espécie, e não no indivíduo, que se enraíza com tanta energia e força a vontade de vida”[5]. Por isso, tantos seres vivos nascem e ainda hão de nascer iguais em razão e sentido, mesmo que sejam diferentes individualmente, separados por etnia, classe ou cultura.  

O certo é que morremos; mas apenas na matéria, na individualidade, na relação temporal com as coisas. Permanecemos eternos como Vontade de vida (que se alastra em todos os seres que virão após a morte) e como Ideia, como espécie. Morremos e a natureza segue indiferente em sua geração ininterrupta de seres vivos. Morremos enquanto, entre o céu e a terra, a cadeia de seres se multiplica fervilhando de vida. Nossa pessoa, com seus maneirismos, tendências, virtudes e vícios é demasiado pequena diante de tanta infinidade de Vontade.  

A vida é eterna, mas não no paraíso além-do-mundo prometido pelo cristianismo. Também não é a alma que é eterna e se eleva ou se rebaixa para dimensões invisíveis. A eternidade é a Ideia da humanidade que nos atravessa e que cria o elo entre todos os humanos possíveis. O avô, a avó, o pai, a mãe que perdi ainda vivem, mas não como pessoas, como indivíduos que abracei, beijei e amei. A despeito de todas as circunstâncias, eles vivem, em mim, em meus irmãos, primos, sobrinhos; mas também no porteiro de meu prédio, no motorista, no agricultor, no professor, no homem esperançado ou perdido. A espécie humana resiste apesar desse carona perigoso que invade nosso automóvel e periga nos arrebatar do sonho de viver.  


[1] SCHOPENHAUER, Arthur. Da morte – coleção A obra prima de cada autor. Trad. Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 25. 

[2] Idem, ibidem.  

[3] Idem, p.60.  

[4] Idem, ibidem.  

[5] Idem, p.47.  

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