É possível, no decurso da história da cultura pop, não ter havido ano tão criativamente fecundo quanto 1991. Não se trata, vale frisar, de exagero qualquer de minha parte ou de juízo estético categórico que determinasse a beleza absoluta das obras musicais criadas nesse ano. Digo sinceramente que, comparado a poucos momentos na música (como em 1970 ou 1987, por exemplo), o ano de 1991 não só apresentou uma gama de composições extraordinárias, como foi o melhor de todos os ciclos da indústria fonográfica. Por sorte, minha opinião encontra eco em outros críticos de música e mesmo entre artistas que vivenciaram aquele momento.
Decerto a década de 1990, desde o início, se firmou como um dos principais pontos de virada na narrativa da música. As obras responsáveis por esse pontapé são filhotes do ano de 1991 e coroaram esse arroubo criativo com suas novas e reveladoras propostas estéticas.
O primeiro grande estrondo do ano, logo em fevereiro, foi o lançamento de Innuendo, o último álbum do Queen em que participa Freddy Mercury. Em seguida, no mês de março, veio o R.E.M, com o jorro melódico de Out of time. Em agosto, o Metallica põe na praça o sofisticado Black surpreendendo público e crítica. Os arrasa-quarteirão Guns N´Roses lançam o esperado álbum duplo Use your illusion, em setembro. Depois, no mesmo mês, é a vez dos apimentados Red Hot Chili Peppers abusarem com o sensacional Blood Sugar Sex Magik. Em novembro, U2 lança Achtung Baby, mudando os rumos de sua sonoridade. E, por fim, a banda Pearl Jam, lança Ten, seu primeiro e bombástico trabalho, Nirvana vem com Nevermind, e Soundgarden com o explosivo Badmotorfinger, fortalecendo, assim, a recente e promissora experiência grunge.
Em meio à efervescência musical, no Brasil tivemos Caetano Veloso com Circuladô, endossando a excelente parceria com Arto Lindsay, em um dos seus melhores discos da década de 90. Mas, felizmente, outro nicho da música brasileira ganhava destaque e recebia os fluidos positivos daquele momento. O rock apresentou obras que impressionaram porque trouxeram variações e novas camadas para o que já vinha sendo produzido desde a década anterior. Os Paralamas do Sucesso se reinventaram nas letras e nas composições, lançando o belo álbum Os grãos, enquanto Titãs trilhou um caminho de sonoridade “de garagem” com Tudo ao mesmo tempo agora, impulsionando a banda para uma direção ainda mais roqueira. O Sepultura lançou o abissal Arise consolidando prestígio internacional entre as bandas de sua categoria.
Legião Urbana, que até o ano anterior vinha sendo considerada a mais representativa de sua geração, também participou desse caldeirão criativo, preparando aquele que foi um de seus melhores trabalhos de carreira. Em novembro, lançou V, coincidindo com o lançamento de Dangerous do astro Michael Jackson. Mas nada que apagasse o brilho de um álbum singular e decisivo. O álbum V, ainda que não tivesse alcançado as mesmas cifras de vendagem que As quatro estações (vendeu apenas 465 mil cópias, cinco vezes menos que o álbum anterior), pode ser considerado o trabalho mais sólido e mais amadurecido da banda, do ponto de vista artístico.
Recordo-me da resenha entusiasmada que a revista Bizz realizou na época. O álbum foi aclamado pela crítica, recebido entre os fãs com calorosa acolhida; e, ao mesmo tempo, tratado com estranheza pelo grande público. Isso se deu graças à natureza estética da obra, em razão da aura do próprio álbum, que foi propositalmente concebido para soar estranho. Em entrevista, o líder da banda foi assertivo: “o disco é muito lento, modorrento de propósito” e, por isso, “é um disco muito pretensioso”.[1]Na verdade, a intenção da banda era contrariar as expectativas.
As quatro estações (1989) sedimentou a qualidade artística da banda no cenário musical, rendendo frutos de seu êxito comercial durante dois anos seguidos. Por isso, não passou pela cabeça de Dado Villa-Lobos, Marcelo Bonfá e Renato Russo reproduzir fórmulas. Por prudência, escaparam do lugar-comum em pretender substituir um álbum icônico por outro. Preferiam soar estranhos, divergindo não de si mesmos, mas da própria estrutura massificada e alienante do mercado fonográfico, ou seja, da mecânica de reprodutibilidade da aura criadora.
Certa vez Renato Russo declarou, daquele jeito bem ao seu gosto, entre o deboche e a seriedade: “é sempre assim: a gente lança um disco aí todo mundo tem reações ‘Ah! Quatro Estações! É preciso amar…’ (…) E a gente vai e tenta fazer alguma coisa completamente diferente, mas nunca é completamente diferente”.[2]A fala de Renato nos leva a supor que uma diferença radical não acontece, com efeito, em nenhuma linha evolutiva do artista, porque justamente existe um conceito, uma “concepção fechada” que necessariamente se repete. No entanto se repetir não é se reproduzir, se tornar um pastiche de si mesmo.
Se a banda optasse em soar igual ao disco anterior, para atingir os mesmos efeitos, então se reproduziria. No entanto, Renato deixou claro que é a repetição o que define a estética da banda, ou seja, à fidelidade aos princípios: “o disco foi uma maneira de a gente se expressar colocando o que a gente queria dizer naquele determinado momento, sem ficar preso a uma fórmula. Porque a Legião Urbana tem uma concepção tão fechada, que é muito fácil eu ficar preso numa fórmula.” [3] A unidade conceitual da banda se reduz ao fato de que “sempre temos um tom ao mesmo tempo intimista e sempre tentando atingir um maior número de pessoas.”[4]
O trabalho da Legião Urbana deveria, então, obedecer ao princípio de unidade, que é a necessidade expressiva do artista de ser lírico e popular. Renato confirma tal atributo poético: “eu falo de mim, mas é essa pessoa falando para o mundo (…) É uma coisa da adolescência, de você querer que todo mundo saiba o que você está sentindo.” [5]Pensando assim, se reuniu com Dado e Bonfá e, entre os meses de agosto e setembro de 91, gravou o quinto álbum da banda.
No entender de Renato Russo, a Legião Urbana significa experiência “urbana da cidade”. Por isso, o V atua equivalente aos trabalhos anteriores; traduzindo os sentimentos de indivíduos urbanos no meio de problemas urbanos. “Embora às vezes a gente troque o nome ou alguma situação, mas são sempre coisas que a banda já viveu. (…) É sempre em cima de coisas que nós conversamos e em que ponto tá a vida da gente”.[6] Reunindo vivências, coletando sentimentos e visões, Renato Russo motivou-se a compor as onze canções que integram V.
No respeitante ao momento político, o ano de 1991 seguia à risca a cartilha neoliberal do governo Fernando Collor de Mello. O plano econômico lançado em março de 1990, logo após a posse do primeiro presidente da redemocratização, visando conter a hiperinflação, impactou a vida do brasileiro com uma violenta recessão. A consequência direta disso foi o enxugamento da máquina administrativa, a redução e fusão de ministérios e órgãos públicos, a demissão de funcionários, o congelamento de salários e o confisco de poupanças. Renato Russo, que vinha planejando comprar imóvel, foi pego de surpresa: “essa Zélia acabou de confiscar tudo! (…) Tá tudo bloqueado, o dinheiro do meu pai, do meu avô”. Ele, que “tendia a acreditar nas boas intenções das pessoas”, sofreu grande baque, vulnerabilizado com tamanho golpe.[7]
Por outro lado, a vida emocional de Renato se encontrava em frangalhos. O êxito de As quatro estações levou o artista ao auge, o que terminou por incentivá-lo a um ciclo de euforia e depressão, ora se esbaldando em festas regadas a álcool e cocaína ora agonizando em ressacas terríveis. A instabilidade amorosa fez com que o rodízio de parceiros se multiplicasse, sem com isso envolver-se com ninguém em específico. Enquanto os parceiros da banda já eram casados, tinham filhos, Renato permanecia de fato o trovador solitário que regressa ao hotel sozinho.
Certo dia decidiu interromper o fluxo e se internou em uma clínica de desintoxicação em Botafogo, nos últimos meses de 1990, quando ainda se ouvia nas rádios o eco de Pais e filhos. “A instabilidade emocional é o que jogava ele na lona”, revelou a amiga Denise Bandeira.[8]Por isso, o ideal era salvá-lo de seus excessos e humores. Passou algumas semanas na clínica, onde houve demanda de exames de sangue e a consequente descoberta da soropositividade.
A simples diagnose da AIDS, no ano em que o Brasil perdeu Cazuza para a síndrome, tinha o peso de uma sentença de morte. Recebendo a notícia com fatalismo, Renato abriu o jogo com os amigos da banda, reuniu o empresário Rafael Borges e organizou a partilha de seu espólio. Assustado com tal situação imponderável, Renato preferiu se isolar e calar sobre o problema com relação à imprensa. A única resposta à altura foi agir como fizeram Cazuza e Freddy Mercury: o mergulho intenso na arte, a dedicação máxima e exclusiva ao fazer música.
Os ingredientes trágicos estavam ali reunidos para a Legião Urbana compor o seu álbum mais sincero e mais contundente, ainda que pouco explorado comercialmente. Nuvens pesadas e cinzentas atravessavam a vida da banda e a intenção não era afastá-las do horizonte, mas encará-las com toda a densidade e todo o temor que elas evocam. Mas, quando o momento presente de um artista se encontra em turbulência, a saída muitas vezes está no desvio (não do problema em si, mas da fatualidade do tempo e da história). Pensando assim, a banda sentiu as vibrações da época e a tendência revisionista dos anos 70 que rondavam o meio musical.
Em vista disso, o álbum V é recheado de sonoridade progressiva, com linhas melódicas que remontam às bandas inglesas que a Legião tanto admirava. Percebe-se isso na suíte Metal contra as nuvens, longa canção com onze minutos de duração dividida em partes: uma acústica, duas roqueiras e novamente acústica, que nos faz lembrar Babe, I´m gonna leave you do Led Zeppelin. O arranjo complexo da canção foge à regra da batida 4/4 tão comum à banda.
No plano poético, Renato Russo despejou a desilusão com a política, recorrendo ao poder do símbolo e da metáfora. Embasou-se nas histórias medievais de cavalaria para traduzir o conflito entre o herói e o “sopro do dragão”, entre o indivíduo e as máquinas de guerra: “quase acreditei na sua promessa/e o que vejo é fome e destruição/ perdi a minha sela e minha espada/perdi o meu castelo e minha princesa”. “Esses são dias desleais”, desabafava. E, no meio dessa “terra-de-ninguém”, cercada por descaso e estupidez, ainda se matinha virtuoso: “não me entrego sem lutar/tenho ainda coração/não aprendi a me render/que caia o inimigo então”.
A curta Love song abre o álbum de forma surpreendente, rompendo o próprio estilo da banda. A canção de amor do português medieval Nuno Fernandes Torneol inclusive contradiz o a positividade de Pais e filhos: “pois nasci nunca vi amor/e ouço d´el sempre falar/pero sei que me quer matar, mas rogarei a mia senhor/que me mostr´aquel matador ou que m´ampare d´el melhor”. Retornando aos tempos instrumentais de Central do Brasil, a banda compôs a mística Ordem dos templários que ralenta o ritmo do disco reforçando a estética progressiva.
Os conflitos com a desintoxicação se explicitam na arrastada A montanha mágica: “sou meu próprio líder/ando em círculos/me equilibro entre dias e noites/minha vida toda espera algo de mim”; ou então: “existe um descontrole que corrompe e cresce”. É a canção mais reflexiva do álbum e a mais honesta confissão de desamparo em relação ao abuso das drogas feita por um artista brasileiro. Da atmosfera dopada de A montanha mágica passamos para uma nova desilusão. Em Teatro dos vampiros monta-se o palco da tragédia brasileira: “ninguém vê onde chegamos: os assassinos estão livres, nós não estamos. Vamos sair/mas não temos mais dinheiro/ os meus amigos todos estão procurando emprego/voltamos a viver como há dez anos atrás/e a cada hora que passa/envelhecemos dez semanas”.
De novo a confissão da luta contra as drogas e seus abusos aparece, mas agora no rock L´âge d´or. Ironicamente a idade de ouro, contida no título, é o período em que “estamos em perigo”, em que insistimos em “ter vontade própria” para sentirmos “limpos”: “já tentei muitas coisas/de heroína a Jesus/tudo que já fiz foi por vaidade”. A mesma ambiência frágil recai em O mundo anda tão complicado. A canção mais leve do álbum recupera a simplicidade e a banalidade da rotina a dois, que vimos em Eduardo e Mônica: “vamos chamar nossos amigos/a gente faz uma feijoada/esquece um pouco do trabalho/fica de bate papo”. Sereníssima, com levada agitada, encontra luz no fim do túnel: “tudo está perdido, mas existem possibilidades”.
Ainda que Renato se ponha cético frente ao mundo complicado, adoentado, corrupto, não nega a natureza romântica: “sou um animal sentimental/me apego facilmente ao que desperta o meu desejo” “enquanto o caos segue em frente, com toda a calma do mundo”. A belíssima Vento no litoral – talvez a letra mais rica em aspectos poéticos – canta o amor, apesar de tudo. Um simples passeio pela praia desperta no poeta emoções melancólicas: “dos nossos planos é que tenho mais saudade/quando olhávamos juntos na mesma direção”, ao mesmo tempo em que o leva a compreender que o amor é uma instância eterna, espiritual, que não se dissipa, mesmo com as contingências da vida: “aonde está você agora, além de aqui dentro de mim?” O que dissolve é a densidade das crises, as pequenas coisas, os conflitos aparentemente irresolutos que o vento ajuda a levar embora, espantando as nuvens carregadas e provando que “a vida continua” e que “se entregar é uma bobagem”. Sem dúvidas, um álbum antológico.
[1] DAPIEVE, Arthur. Renato Russo, o trovador solitário. Ediouro: 2006, p. 126.
[2] Entrevista de Renato Russo ao programa Passado, presente e futuro, para a MTV, em maio de 1994.
[3] Idem, ibidem.
[4] Idem, ibidem.
[5] Idem, ibidem.
[6] Idem, ibidem.
[7] DAPIEVE, Arthur, p. 123.
[8] Idem, p.149.