Filipi Gradim – Nina Simone: A pianista revoltada 

Homenagem aos 90 anos de Nina Simone

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piano, esse clássico instrumento que conhecemos, que figura no centro das orquestras ou então em performance solo, e que é responsável pelas mais belas melodias da história da música, veio ao mundo de uma forma curiosa, a partir da evolução de outro instrumento: o cravo.  Antes de apreciarmos a riqueza do piano, com oitenta e oito teclas, três pedais e a “cereja do bolo” que é a dinâmica rica, ou seja, a presença de teclas sensíveis que variam de volume, havia o cravo ou clavecino e suas variantes, o virginal e o espineta. A diferença entre o cravo e o piano é que o primeiro instrumento, criado na Idade Média e explorado por músicos barrocos, é composto por cordas pinçadas por pontas de pena; e esse recurso limitava a execução do pianista, pois o mecanismo de toque não permitia variações de intensidade e de volume.  

Em 1709, o italiano Bartolomeo Cristofori (1655-1731) decidiu então criar o piano, como forma de dinamizar o mecanismo interno do instrumento de teclas, substituindo as penas por martelos revestidos de couro de carneiro que percutiam nas cordas causando uma gama sonora mais aveludada e menos estridente como no caso do cravo. Cristofori chamou a evolução do instrumento de pianoforte, uma vez que a variação de volume ia do piano (baixo) ao forte (alto).  A partir dessa transição, o piano não só integrou os teatros e os salões nobres de palácios, como também, por assim dizer, se profanou metendo-se em cabarés, restaurantes, cafés e clubes. 

Em todos os ambientes em que esteve até hoje, o piano cumpriu a contento sua função estética, aquecendo os corações e ouvidos, preenchendo a experiência dos ouvintes com a mais indescritível e inefável sensação. Mas, houve um tempo em que o piano abriu mão de ser um instrumento estético, apenas interessado no disfrute musical, para se tornar uma ferramenta de grande alcance político. E o pianista, assumindo tal função, se desobrigou da necessidade de ser virtuoso, de ser uma deidade capaz de seduzir, envolver e hipnotizar as plateias com seu talento.  

Nina Simone (1933-2003) se acha entre os artistas que conseguiram imprimir uma nova função social para o piano, o que já lhe garante o epíteto de gênio da música, uma vez que logrou a proeza de transferir para o tradicional instrumento um teor de revolta, cuja manifestação não encontrou precedentes nem mesmo entre os músicos do rock como Little Richards e Jerry Lee Lewis. Mesmo sendo expoente no gênero que aqui chamarei de música revoltada, Nina Simone ficou de fora da seleção e não foi elencada entre os grandes pianistas da história, em uma lista que conta com artistas que vão desde os clássicos (Chopin, Beethoven, Mozart, Liszt, Debussy e Satie) até os contemporâneos (Lang Lang, Yiruma, Philip Glass e Yann Tiersen).  

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Poderíamos alegar (com justiça) que a ausência da citação de nome de Nina Simone seja uma razão sustentada pelo preconceito de gênero, já que era mulher. Mas, é de se estranhar que, entre os grandes pianistas, conste as ilustríssimas Hélène Grimaud e Sonia Belousova. Caberia pensar, de igual modo, que o racismo estrutural e institucional a teriam afastado desse lugar de reconhecimento, mas o nome do canadense Oscar Peterson, um pianista negro, de jazz, marca a diferença, quebrando a hegemonia branca e eurocêntrica. Então, diante disso, o que teria causado o esnobismo que excluiu Nina Simone de figurar uma galeria de tão alta patente? 

 A trajetória musical de Nina Simone começou com uma grande aposta, já que, segundo declara, ela “não era cantora de blues, nem cantora de jazz. Eu era pianista clássica. Estudei para ser a primeira pianista clássica negra dos Estados Unidos, e era só nisso que eu pensava. Eu me preparei para ser isso”[1]Eunice Waymon, como foi batizada, nasceu em Tryon, na Carolina do Norte. “Comecei a tocar piano quando tinha três ou quatro anos. Minha mãe era pregadora e ela me levava junto às reuniões de avivamento, e eu comecei a tocar piano na igreja”[2]. Pelo fato de a religião protestante ser quase dominante na Carolina do Norte, a população pobre e negra frequentava os cultos, tendo na música um canal de comunicação extática com o divino. Nina Simone absorveu essa atmosfera de intensa vivência espiritual e evidentemente foi atraída para a prática do piano: “as reuniões de avivamento foram épocas muito emocionantes na minha vida. A música era tão intensa, você quase saía de si mesmo”, relata a artista[3]

Ao acompanhar, no piano, o coral da igreja, Nina chamou a atenção da professora de música, miss Mazzanovich, que se admirou com o talento da menina e se dispôs a dar aulas para ela; e então, durante cinco anos, a jovem Eunice estudou piano clássico aprimorando sua técnica.  Para alcançar esse fim, Nina precisava cruzar a ferrovia todo fim de semana para ir à casa da professora que, por ser branca, morava em outra região da cidade segregada pelo racismo. A dedicação era intensa, pois o estudo rendia de sete a oito horas por dia. Por acreditar em seu potencial, a amável professora alimentou em Nina o sonho de se tornar uma das maiores concertistas de piano do mundo. Para tanto, a inscreveu em diversos recitais, a fim de formar uma poupança que garantisse que a pianista pudesse manter seus estudos no futuro.  

Isolada da comunidade branca e negra, Nina era corpo e alma voltados para o piano. No pouco de tempo que lhe sobrava para socializar, pediam que ela tocasse para entreter os jovens; “não me pediam para fazer muito mais”[4]. Sua relação meramente utilitária a fez compreender que boa parte de seu isolamento se dava pelo racismo. “Eu era uma menina negra e sabia disso, eu vivia isso”[5]. Nas palavras de sua filha Lisa, Nina “raramente mencionava a segregação racial e as várias questões raciais acontecendo na sua vida. Mas ela contou das vezes em que a chamaram de nariguda, de beiçuda, que a pele era muito escura”[6]. Enraizada na cultura familiar, o silenciamento imperava, pois não se podia “mencionar nada racial em nossa casa. Eu não lidava conscientemente com a raça. Só fui ter consciência disso muitos anos depois”[7]

Nina formou-se no colegial e, com o montante de dinheiro que arrecadou com a ajuda de Mazzanovich, foi estudar na Julliard, em Nova York, durante um ano e meio. “Candidatei-me, então, a uma bolsa de estudos no Instituto Curtis de Música, na Filadélfia. Eu tocava Czerny, Liszt, Rachmaninoff e Bach. Eu sabia que eu era boa o bastante, mas fui recusada, e levei uns seis meses para ver que era por eu ser negra. Nunca superei aquele golpe racista na época”[8].  

Sem o dinheiro do fundo que economizou, a jovem artista precisou trabalhar e sustentar sua família, que se mudou para Filadélfia. Arrumou um emprego extenuante como pianista em um bar “de quinta categoria”, onde tocava, de meia-noite às sete da manhã, um repertório eclético, entre canções populares, clássicas, spirituals etc. A pedido do dono do bar, começou a cantar para ganhar melhor. Nesse período, adotou o nome artístico Nina Simone, combinando “niña” (a forma carinhosa com a qual seu namorado a chamava) e Simone, da atriz Simone Signoret, para se esconder da mãe religiosa, já que tocar em bar era uma tentação “do diabo”.  

Durante a década de 50, Nina conheceu diversos músicos que a acompanharam, entre eles o guitarrista Al Schackman, que se harmonizou com o estilo improvisado da pianista, que, segundo ela, por hábito, muda de tom “no meio da música”. “Nina”, afirma Al, “tinha um jeito maravilhoso de pegar uma peça musical e não interpretá-la, mas fazer uma metamorfose, transformando-a em sua experiência”[9]. A prática de tocar em bares propiciou a artista realizar a proeza de fundir as técnicas clássicas do piano, que dominava muito bem, com a emotividade do blues e com o descompromisso formal do jazz. O resultado era uma fluência, cujo material expressivo sempre surpreendia a todos, pois nunca se sabia o que esperar da artista. “O que me interessava era transmitir uma mensagem emotiva, o que significa usar tudo que se tem dentro de si, para, às vezes, mal tocar uma nota ou, se tiver a força para cantar, cantar. Assim, às vezes, eu soo como cascalho e outras vezes como café com creme”, declara Nina[10]

Para George Wein, fundador do Newport Jazz festival, Nina soava diferente das cantoras da época. A voz, ora dócil ora seca, explorava as variações do piano; e, mesmo sendo a voz de uma mulher, havia nela a “profundidade de um barítono”; e “aquela profundidade e escuridão punham para fora o que Nina tinha na alma, chegando rapidamente até você”[11]. Esse poder de comunicação com o público se desenvolveu ali na ambiência intimista do bar, durante a década de 50. Entretanto, na década seguinte houve uma transição que foi definitiva para a artista. 

Conforme dissemos, Nina transmutou a condição social do piano. O que antes ela fazia como forma de entreter o público ou como forma de exprimir a subjetividade da alma, perpetuando uma prática tradicional do instrumento clássico, ganhou outra tessitura nos anos 60. Se antes o piano era o companheiro de um canto emotivo, ativando sensações e deleites, com a mudança histórica ocorrida no mundo, o piano já não desempenharia funções subjetivas. Então, Nina substituiu a função estética pela função política, ressignificando o instrumento. 

O sentido burguês de um instrumento orientado apenas para a experiência de prazer de uma camada privilegiada da sociedade frequentadora de nightclubs ou do Carnegie Hallse desviou para um sentido mais amplo e mais realista. “A grande Nina Simone” era celebrada no mundo todo, tocando com músicos do naipe de Bill Cosby, todavia arriscou o que não poderia: se tornou uma pianista revoltada. Se um artista revoltado é, como afirma Albert Camus, alguém que nega e afirma a vida em sua absurdidade, Nina não fez diferente. Então, a partir da luta da população afro-americana em nome de direitos civis, a pianista repensou o papel social do artista e passou a “criar perigosamente”, comprometendo-se a ser um veículo de convulsão do seu tempo, assumindo “deveres difíceis” que são, em especial, a interrupção do silêncio e do comodismo[12].  

O ponto de virada na carreira de Nina Simone se deu depois do atentado de Birmingham, no estado do Alabama, em 15 de setembro de 1963, quando membros da Ku Klux Klan bombardearam uma igreja batista, matando quatro crianças e ferindo vinte pessoas. “Quando as crianças foram mortas naquela igreja, foi o estopim. Primeiro, fiquei deprimida e, depois, fula da vida. Quando explodiram as crianças, eu me sentei e compus uma música. É uma canção muito emocionante, violenta, pois é como me sinto a respeito de tudo”[13]. Chama-se Mississipi Goddam a canção que Nina criou para dar voz à indignação diante da indiferença das autoridades que faziam vista grossa para os crimes raciais que na época eram pouco ou quase nada validados.  

Nina teve a ousadia de, sendo mulher e negra, usar um piano e um microfone, e dizer o que toda a comunidade afro-americana sentia naquele momento trágico. “Acho que todo dia será o meu último/Ah! Mas meu país é cheio de mentiras/Vamos todos morrer feito moscas/Não confio mais em ninguém”[14]. A maldição do Mississipi, com todo seu ódio racial, precisava ser expurgada e Nina foi esse porta-voz de uma nação estarrecida. Sofreu, consequentemente, as sanções por tão “insolente” ato, ao usar palavrões em público, em uma canção. Houve boicote das rádios, devolução e quebra dos compactos onde a gravação foi gravada e difundida. 

 Intensificaram-se as lutas pelos direitos civis e Nina esteve presente nos atos, como a Marcha de Selma a Montgomery, no Alabama, em 1965, cantando Mississipi Goddam. A energia coletiva que fluía naquele momento engatilhou em Nina outra motivação para ser artista, de modo que criar perigosamente era a única possibilidade de se manter. “Não me importo se vou ficar sem comer ou dormir, contanto que faça algo que valha a pena”[15]. E fazer valer a pena era se permitir ser ouvida e poder falar o que durante décadas ela foi forçada a aceitar e calar. Não era mais possível manter segredos nem se queixar por ser pobre e segregado, como na época em que viveu no sul. “Tínhamos de ficar de boca calada (…) Eu sabia que quebrar o silêncio significava confronto com os brancos”[16].  

Mas Nina foi além do que poderia na sua condição de artista; sua revolta era chancelada por uma massa de descontentes e ampliada pela potência do piano, desse instrumento que Cristofori jamais cogitaria que pudesse ter esse alcance social. A manobra política que encontrou foi usar o piano, tão cultuado pela burguesia, para se virar contra essa mesma burguesia que explorava, oprimia e matava negros, licenciada por princípios que os brancos consideravam “legítimos”. O piano foi assimilado pela negra Nina, mas não como expressão sonora, e sim como discurso, a fim de denunciar a pobreza, a violência, a descabida guerra do Vietnã. Para ela, os negros não são “tolos de segunda”; eles são a mão que modela o mundo ou então o mundo “não será nem modelado nem receberá forma alguma”[17].  


[1] Documentário What happened Miss Simone? (2015). Direção: Liz Garbus. Disponível na Netflix.  

[2] Idem, ibidem.  

[3] Idem, ibidem.  

[4] Idem, ibidem.  

[5] Idem, ibidem.  

[6] Idem, ibidem.  

[7] Idem, ibidem.  

[8] Idem, ibidem.  

[9] Idem, ibidem.  

[10] Idem, ibidem.  

[11] Idem, ibidem.  

[12] CAMUS, Albert. Oeuvres complètes, IV. Paris: Gallimard, 2008, p. 248.  

[13] Documentário What happened Miss Simone? (2015). Direção: Liz Garbus. Disponível na Netflix. 

[14] Idem, ibidem. 

[15] Idem, ibidem.  

[16] Idem, ibidem.  

[17] Idem, ibidem.  

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