De todos os episódios da vida de Jesus Cristo, aquele que mais me atrai o interesse é a agonia do Horto de Getsêmani. Ainda que a religiosidade em mim não seja um modus operandi e, portanto, não me conduza a nenhum credo habitual, sendo em mim mais forte o espírito filosófico do que o teológico, prezo por ela. É admirável a religião pela forma como ela nos arranca pela primeira vez do domínio da mundanidade para que entremos em contato com o espírito e brindemos aquela parte grandiosa que nos preenche de energia vital. Não é, porém, na religião que o espírito se desenvolve e se resolve. As pernas do espírito são longas; caminham bastante. A religião é a primeira estrada, aquela mais obscura, metida no meio de uma floresta. Cabe à filosofia conduzir o espírito a um caminho aquecido pela luz do saber e não pela fé.
Os livros sagrados nos apresentam o que há de mais fascinante na religião: o símbolo. O movimento da fé requer que o crente se lance na obscuridade do Deus que desconhece, mas que, no entanto, sente na alma. O símbolo é a mata cerrada que incrementa a fé. Através dele, o Deus se revela, ainda que na espreita de uma imagem. O símbolo é a imagem que não diz o que é, mas que subentende, que reforça o oculto e nos atrai até ele por certo magnetismo inexplicável. Amamos os símbolos porque eles representam tudo o que nos conecta com Deus.
Sendo assim, não há religião que sobreviva sem imagens. Mesmo o budismo, mesmo o protestantismo se ancoram em imagens, em símbolos, sejam em gestos, figuras ou palavras. O catolicismo, por exemplo, é riquíssimo em imagens. A mais potente delas, em minha opinião, é a referente ao primeiro dia da paixão de Jesus Cristo, quer dizer, a noite de Getsêmani.
O dramático episódio da noite de Getsêmani consta no Novo Testamento graças ao testemunho dos evangelistas Marcos, Mateus e Lucas. A narrativa dá continuidade à última ceia que Jesus realizou junto aos apóstolos. Profere-se em Lucas (22:39) o seguinte: “e, saindo, foi, como costumava, para o monte das Oliveiras; e também os seus discípulos o seguiram. E quando chegou àquele lugar, disse-lhes: ‘orai, para que não entreis em tentação.’ E apartou-se deles cerca de um tiro de pedra; e, pondo-se de joelhos, orava.” Em Mateus (26:36), profere-se mais ou menos a mesma coisa, com um acréscimo: “então chegou Jesus com eles a um lugar chamado Getsêmani, e disse aos seus discípulos: assentai-vos aqui, enquanto vou além orar. E, levando consigo Pedro e os dois filhos de Zebedeu, começou a entristecer-se e angustiar-se muito.”
Getsêmani, em aramaico [Gat Shmanin], significa “prensa do azeite” e é o nome de um jardim ou horto que fica no sopé do monte das Oliveiras, em Jerusalém. Ao nos atentarmos para a tradução literal da palavra alcançamos uma primeira compreensão do que Jesus viveu naquela noite. Assim como o óleo de azeite que sai da oliva por meio de uma prensa, Jesus foi prensado. De antemão ciente de seu destino trágico, ele se dirigiu aos apóstolos, na ceia, dizendo: “bem sabeis que daqui a dois dias é páscoa; e o Filho do Homem será entregue para ser crucificado.” (Mateus 26:2). Igualmente sabia que seria entregue aos inimigos, movido pela traição de Judas: “o que põe comigo a mão no prato, esse me há de trair.” (Mateus 26:23).
Desde a ceia Jesus vinha sendo prensado: pela decepção, ao saber que, entre os comensais, há um traidor; e pela angústia que o Getsêmani representa. Se a religião é a absorção no símbolo, se o religar a Deus é um ato simbólico, então a noite é a imagem fundamental desse episódio da paixão. A noite é o símbolo da obscuridade, da invisibilidade, da profundidade e da imprevisibilidade. Jesus, em posição indefesa, será agredido a cuspes e socos por soldados que chegam armados, tendo Judas à frente como guia. Mesmo sendo o “Filho do Homem”, algumas coisas estão fora de seu controle. Jesus é surpreendido por sombras, envolto por vultos, acossado como um criminoso e o pior: atirado de cabeça na angústia e no desespero.
Assim decorre a relação entre Jesus e a noite: o envolvimento com aquilo que o ultrapassa e que denuncia fraquezas, misérias e impotências. O gênio filosófico de Blaise Pascal (1623-1662), na obra Pensamentos, declara: “Jesus se encontra num jardim, não de delícias, como o primeiro Adão, onde este se perdeu e com ele todo o gênero humano, mas num jardim de suplícios, de onde se salvou com ele todo o gênero humano”. Outrossim Pascal percebeu que “Jesus está só na Terra, não apenas para sentir e compartilhar a sua pena, também para ter conhecimento dela: o céu e ele são os únicos que têm esse conhecimento.”
A missão de Jesus, o destino que o torna Cristo, quer dizer, a salvação do gênero humano do ônus do pecado original, ensinando-lhe o caminho pela palavra, deve ser feito no suplício. Jesus não é só o Messias, o “predito e o predizente”; mas, como afirma Pascal, ele é o “modelo de todas as condições”: do “pai em seu Pai”, do “irmão em seus irmãos”, do “pobre nos pobres”, do “rico nos ricos”, do “soberano nos príncipes”. Doutrinar pela palavra é distinto de viver a palavra. Jesus encarna a palavra e esse movimento se realiza dolorosamente porque é o homem se fazendo Deus, na história, entre outros homens, “em todas as pessoas e em nós mesmo.
A cruz é o suplício mais insuportável. Ser crucificado é a imagem da humilhação, do desterro e da morte. Todavia, antecede-se a esse ato a noite de Getsêmani, que prepara Jesus para enfrentar sua dor maior, por isso ela é tão angustiante e tão emblemática. Jesus se vê humilhado diante da fraqueza da carne: “minha alma está cheia de tristeza até a morte” (Mateus 26:38). Ele se autoconhece, se depara com sua essência dúbia que o prensa, que extrai dele o óleo da santidade. O crístico e o humano se convergem na dobra dos joelhos ao chão apelando a Deus o impossível: “pai, se queres passa de mim esse cálice; todavia não se faça a minha vontade, mas a tua” (Lucas 22: 42). Deus não desviará da vontade e Jesus cumprirá seu dever.
O desespero diante da certeza da morte é um sangramento espiritual. Jesus se vê absurdo, ou seja, impotente diante da vontade divina. O mal cairá sobre ele queira ou não. Seu espírito está preparado, na prensa, mas “a carne é fraca” (Mateus 26:41) O cálice que ele quer que se afaste é o desespero, a certeza de que tudo o que viveu e lutou será subtraído por uma morte estúpida e injusta. Ainda que assuma a missão, Jesus pensa e sente como todos os homens: considera a morte temível e inaceitável, como um fardo que nos poderia ser poupado.
Nas artes visuais, alguns artistas capturaram com beleza e perspicácia esse Jesus pascalino, quer dizer, esse santo feito de uma carne suscetível à miséria e ao abandono. Desde o Renascimento, passando pelo Barroco e o Romantismo, diversos pintores traduziram a agonia de Jesus no jardim do suplício. De modo que, ao contemplarmos os quadros desses artistas, forma-se na imaginação um painel que contém não só uma, mas várias noites de Getsêmani.
O espírito de Tiziano (1488-1576), dividido entre Renascimento e Barroco, pintou a grandiosa tela “Aoraçãonohorto” para ilustrar com perfeição “a paixão de Jesus Cristo” que, segundo Charles de Condren, “não foi feita somente no Calvário”, “mas se passou inteira no Jardim das Oliveiras, no espírito de Jesus”. Ele sofreu mais aí do que na cruz. A tela de Tiziano reforça isso, preenchida por uma paleta bem terrosa, dispersa em um marrom soberano. No espaço, Tiziano dispõe Jesus no alto, isolado e coberto de uma luz colorida que é inferior em relação ao todo da composição. Em baixo, no canto, Tiziano nos surpreende, criando um suspense com as sombras dos soldados, que assistem sua agonia e armam o bote. Outro renascentista italiano, Cesari (1568-1640), em “A agonia no jardim”, não logrou o mesmo efeito dramático que Tiziano. Ele esquematizou uma composição colorida e iluminada, em que vimos a dor do Cristo afrouxada e sem aquela ênfase que causa um maior apelo emocional.
No Romantismo, ainda que fosse um estilo artístico laico, é possível encontrar três telas curiosas por suas diferenças de abordagem ao tema cristão. A primeira é uma imagem referencial, encontrada em Bíblias ilustradas. Refiro-me à tela “Cristo no Jardim de Getsêmani” do alemão Hoffman (1824-1911), em que vimos Jesus absolutamente sozinho, ajoelhado, confessando seu abandono. O célebre Goya (1746-1828)oferece sua versão genial, isolando Cristo e enfatizando a dramaticidade impensável em Cesari ou Hoffman. Na tela “Cristo no horto”, o espanhol apresenta Jesus desgastado, maltrapilho e de braços abertos a Deus, num apelo comovente. Ainda mais comovente é “No jardim do Getsêmani”, tela do russo Nykola Ge (1831-1894), marcante pela textura sombria e abatida de um Jesus tipicamente pascalino, ou seja, entregue ao tudo ou nada de sua existência prensada entre o divino e o humano.
Eu sou evangélico – é incrível como a transcendência permeia pessoas que não andam conosco, enquanto há pessoas que nada entendem ou percebem. Texto fantástico.
que olhar excelente o seu! obrigado pela leitura!
E bem pertinente este texto também no momento que estamos vivendo. Esta pandemia de corona vírus tem sido noites de Getsêmani para muitas pessoas. Eu inclusive estou bem estressado por conta desta quarentena que me tirou da rotina do meu trabalho, estou com saudades de bater perna em um shopping com amigos, porém, há pessoas sofrendo mais que eu com perdas de entes queridos, consequências diretas da doença, etc. Esperemos por dias melhores o mais rápido possível!
Belíssimo texto. Muito pertinente a analogia da noite com o escuro, o imprevisível, o oculto, o inesperado. Genial. Um detalhe que poderia ser adicionado: conforme registros dos Evangelhos, nesta noite Cristo tremia e estava tão aterrorrizado e afundado em medo, angústia e desespero que começou a suar sangue. A medicina atual tem um nome para isto: hematidrose, que é quando os vasos sanguíneos se dilatam em situações de extremo estresse. O ser humano somente chegará a este ponto quando se ver em um perigo iminente sem solução de escapatória e em casos mais extremos de ansiedade e estresse. Sempre vejo esta situação de Cristo no Getsêmani como uma pessoa que acabou de cair no oceano e de repente se vê rodeado de 4 tubarões. Tenho essa figura na minha mente. E esse episódio do Getsêmani também me faz lembrar que sempre que estivermos mergulhados em profunda angústia e aflição é só lembrarmos de Cristo no Monte das Oliveiras. Ele sendo o próprio Deus passou por uma profunda confusão e situação de medo como qualquer mero mortal. Gosto muito desta cena no filme A Paixão de Cristo de Mel Gibson pois há uma jogada genial com a câmera: Jesus está orando aflito e olha para o céu e a lua está acesa, aberta sem nuvens e no momento que ele pede para ”afastar o cálice se for da vontade do Pai, mas que não seja feita a vontade dele”, uma coluna de nuvens tampa totalmente a lua brilhando lá no alto, mergulhando o jardim em profunda escuridão, um total breu. Um sinal claro de que Cristo iria cumprir a missão dele e que o Pai havia se afastado dele e o abandonado para cumprir o Plano de Salvação. Isso fica bem evidenciado quando Cristo grita na cruz minutos antes de morrer: (Eli, Eli, Lama Sabactani?) ”Meu Deus, Meu Deus, porque me abandonastes?” Cristo estava cumprindo a profecia de Isaías 53 de séculos atrás que dizia que ele iria carregar o fardo de toda a humanidade e seria o sacrifício expiatório definitivo e de uma vez por todas. Muitos sem conhecimento espiritual, não fazem ideia do que estava acontecendo ali, mas serei claro: ali Jesus estava cancelando todo pecado, toda maldição, toda doença e tudo de ruim de todas as gerações da humanidade, inclusive as futuras. Amo uma frase do Max Lucado que diz que Jesus gritou ”Meu Deus, porque me abandonaste?” para que a humanidade nunca mais viesse a gritar isso depois, o Pai o abandonou no Getsêmani para nunca mais abandonar ninguém que clamasse por Ele depois. E assim foi feito, a morte de Cristo na cruz é a expressão máxima do amor de Deus para com a humanidade.
Obrigado pela leitura e pela bela colaboração!