Em parte, o gênio de Raul Seixas afirmou verdades na letra da canção-manifesto gravada no primoroso álbum Abre-te, Sésamo. A década de 1980, malgrado ter dado os primeiros passos, já demonstrava não saber a que veio. “Charrete que perdeu o condutor”, observou o artista baiano, de olho na evolução dos tempos, em especial na passagem dos anos 70 para outra década, cujas forças motrizes, na sua opinião, eram o sentimento de “melancolia” e “promessas de amor”[1]. Da mesma forma que alguns puristas preservadores do espírito sexo drogas & rock and roll,que vigorou nos anos anteriores, Raul desconfiava do tempo vindouro. Teria o charme dos anos 50 ou a virulência dos anos 60? O que se poderia esperar da próxima década?
No plano econômico, os anos 80 compõem a “década perdida”. O Brasil, seguindo a mesma linha dos países da América Latina, agonizou com a volatilidade inflacionária e cambial, forçada pelo aumento do déficit fiscal e pelo agravamento da dívida com o FMI. Nem a tentativa de controlar os preços com o Plano Cruzado resultou positivo para o país. Já no tocante ao plano político, a década representa o enfraquecimento do regime ditatorial militar que, diante da crise econômica, demonstrou incompetência para ingerir na situação. Com as mãos atadas, o governo não apresentava soluções e a sociedade civil se organizou convocando urgentes eleições diretas. Figueiredo concedeu anistia política, desmembrou-se o bipartidarismo, dando margem para o surgimento de correntes de oposição, até que, por fim, a ditadura encerrou seu ciclo.
No plano cultural, com o fim da censura, em 1979, as amarras, que vinham travando o movimento criativo dos artistas, desde a década de 60, foram desfeitas. A cultura principiou a experiência de um período de frescor, de afrouxamento, que, talvez, espelhe o que Raul chamou de “charrete” sem condutor. No entender do baiano, parece que a liberalidade gradual incentivada pelo fim da censura às obras artísticas trouxe, ao mesmo tempo, uma desorientação no estilo e na qualidade do produto cultural. É bem verdade que o Brasil, no pós-1964, esbanjava um significativo quantitativo de bens de cultura produzido, distribuído e consumido, conforme nos aponta Vasques Vidal[2]. Ou seja, o Brasil se firmava no cenário da cultura de massa como um país à altura de fazer emergir um mercado que ampliaria e diversificaria produtos de arte.
Seria a cultura de massa o cavalo desembestado da charrete chamada Brasil? Penso que não. Raul não profetizou nada – pelo menos nesse aspecto; apenas percebeu que os anos 80 inspiraram movimentos de abertura. O Rio de Janeiro, por exemplo, sediou a agitação cultural promovida por expressões artísticas advindas do teatro, do circo, da poesia e da música, ainda sob o regime militar. Portanto, os anos 80 podem ter sido a década perdida na economia, conforme dito, mas, na cultura, o que se via era a proposta de retomada da vitalidade que se diluiu durante a fase mais truculenta da ditadura. Sendo assim, me parece haver mais o tatear dos caminhos em busca de renovação do que propriamente desorientação, como sugere Raul.
Vê-se tatear um diferente caminho através da companhia de teatro Asdrúbal Trouxe o Trombone, que surgiu em 1974, durante a vigência do governo de Geisel. Tal projeto abriu margem para o começo da era de experimentações no campo da cultura. Hamilton Vaz Pereira, Regina Casé, Daniel Dantas, Jorge Alberto Soares e Luiz Arthur Peixoto reconstruíram a cena com “audácia e rebeldia em relação aos cânones e padrões da época”[3]. A criação coletiva, a fusão entre música pop e encenação, a introdução de elementos visuais (vídeo e instalação), o uso da linguagem circense e a comédia besteirol, provaram que o grupo estava na verdade interessado em plasmar uma forma descontruída de se fazer teatro; onde, em nome da informalidade e da experimentação, se sacrificava a necessidade puramente dramática da cena.
O “efeito-Asdrúbal” alardeou o público habituado ao teatro convencional. Por isso, causou “espanto, estranhamento, paixão”[4]. Fez sucesso: “as pessoas que assistiam vinham de todas as classes sociais, de todos os cantos: velhos, crianças, ricos ou menos afortunados”[5]. Não tardou muito e, a partir do pontapé asdrubalino, outros artistas agregaram ao projeto, seja atuando ou acompanhando, como Luiz Fernando Guimarães, Perfeito Fortuna, Fausto Fawcett, Fernanda Torres, Cazuza, Intrépida Trupe, Blitz e o Banduendes Por Acaso Estrelado.
A maior extensão do efeito-Asdrúbal foi a fundação do Circo Voador. “A criação tanto da Blitz e como do Circo Voador foi feita de maneira quase natural, quase como se fosse um subproduto” da proposta inovadora do grupo de teatro, que se desfez em 1983[6]. Antes mesmo de o desbunde do grupo de Hamilton Vaz Pereira encerrar, o Circo Voador levantou sua lona, em 1982, na praia do Arpoador. Quando se pensava que toda a agitação artística e ideológica poderia se extinguir, outro fenômeno veio à tona, reunindo as experiências já conquistadas.
O que Raul Seixas tem razão na sua observação crítica é que a base que sustenta os anos 80 está fundada na melancolia e na promessa de amor. A melancolia é o sentimento que conduz a alma humana a uma viagem de retorno a um paraíso perdido. Portanto, toda melancolia é nostálgica e está necessariamente vinculada ao passado. O que se vê na irreverência do efeito-Asdrúbal, que desencadeou o surgimento do Circo Voador, é o retorno ao espírito livre dos anos 60, onde a arte funcionava como elemento aglutinador de ideologias e de arrebatamentos.
A fundação do Circo Voador exigiu a vontade de recuperar o paraíso perdido, a liberdade ceifada pela ditadura militar. Com isso, percorrer novos caminhos nos anos 80 significaria não “voltar atrás”, mas agir no sentido da antropofagia, se alimentando do vigor do passado como forma de se preencher de futuro, de combustível necessário para avançar voando. Em vez de trilhar o caminho em cima de uma charrete, como imaginou Raul, os anos 80 optaram por outro meio de transporte, um meio mais ágil e mais jovial, a saber, a nave.
Marcio Galvão, um dos fundadores do projeto, declara: “o Circo Voador é a construção de um sonho, vindo de uma geração em que se dizia ‘não se pode sonhar’, ‘pra que sonhar?’, ‘pra que viver?’”[7] O contexto histórico de quase vinte anos de repressão tentava impedir que a juventude vislumbrasse um cenário de esperança. “Parecia”, diz ele, “que a gente tinha um vazio político, era uma coisa que você não era nem uma democracia e nem era um regime militar austero. (…) Era um momento em que a política não se colocava como verdadeiro poder. Isso gerou um movimento artístico muito interessante”[8]. Então, o vigor da juventude se firmou novamente como um poder capaz de estabelecer fronteiras entre o passado e o futuro.
A geração 80 respirava aquele neorromantismo, inflando-se de coragem para enfrentar a ditadura, desobedecendo a regra da forma mais civil possível. Era preciso seguir a favor do tempo e se lançar no voo em direção ao vazio, ao desconhecido, ao não experimentado. “Tudo está difícil. Ok. Se está difícil, então vamos fazer um Circo que voa. Não se quer pouco. Não se pode desejar pouco”, declarou Hamilton Vaz[9]. Foi então que ocorreu a Surprendamental Parada Voadora, em 15 de janeiro de 1982. A parada contou com um contingente de quinhentas pessoas, composta de artistas e de alunos dos cursos de teatro ministrados pelo Asdrúbal, que desfilaram pelas ruas do Arpoador fazendo algazarra em carros alegóricos e triciclos, portando figurinos, maquiagens, bandeiras e estandartes. O verão daquele ano não contava com tremenda ousadia. Os artistas foram à rua performar em favor de um espaço alternativo de arte.
“O voo do delírio”, como chamou Alceu, foi longe. A mobilização, que duraria um mês, durou de janeiro a abril, graças ao espírito de cooperativa aprendido nos tempos do Asdrúbal, que incentivou a cotização financeira (4 milhões de cruzeiros), bem como o esforço braçal dos envolvidos. Houve também o apoio da esposa do governador, dona Zoé de Chagas Freitas. Mauricio Sete, Marcio Galvão, Ivo Setta, Perfeito Fortuna e Alice Andrade foram as figuras responsáveis por administrar o projeto do Circo. Segundo relata Chacal, “eles fizeram todo um planejamento, fizeram uma maquete do Circo e foram à Prefeitura oferecer o projeto”[10]. Em uma “Kombi velha” os rapazes se encaminharam até a Prefeitura e lograram o alvará de funcionamento do espaço. Defronte ao mar, as estruturas metálicas foram montadas e, por cima do esqueleto, sobrepôs-se uma enorme lona azul estampada com estrelas, tendo à testa uma fachada tipicamente circense com refletores e faixas pintadas com nomes dos grupos de teatro.
Conquanto a estrutura fosse mambembe e improvisada (“areia com microfone e lata”, como frisa Ivo Setta), os eventos aconteciam. A proposta do Circo Voador era ser um espaço de arte polivalente e contínuo. Relembra Evandro Mesquita: “tinha essa coisa de 24 horas de arte disponível. Aula de capoeira, de teatro, de dança, de música”. Desse modo, o projeto aglutinou pessoas interessadas em sair do estabelecido, e também em romper com o isolamento coletivo forçado pela ditadura. A acessibilidade e a despretensão observadas por Lenine fizeram do Circo um equipamento cultural, cujo “terreno fértil” viabilizou a escuta da voz da juventude até então abafada por uma geração de artistas que não os representava.
Por essas e outras os anos 80 estão longe de ser a charrete que perdeu o condutor. Antes, o Circo é a nave voadora que foi capaz de erguer a massa consumidora de bens culturais a um nível irreverente. Mesmo feito no improviso a nave voava e, dentro dela, viajavam vários passageiros, desde artistas em começo de carreira até crianças de comunidades carentes que acessavam os cursos oferecidos gratuitamente. Enquanto a população se divertia e se educava, as primeiras bandas de rock da década se apresentavam no palco montado no Arpoador: Blitz, Barão Vermelho, Paralamas do Sucesso, Lobão e os Ronaldos e Kid Abelha.
No entanto, com o fim do projeto, em abril de 1982, os gestores foram forçados a baixar a lona estrelada e, por um breve tempo, a nave precisou pousar e encarar a realidade. Todavia, em setembro do mesmo ano o delírio recomeçou, mas agora na Lapa, em um terreno situado atrás dos Arcos. Perfeito Fortuna relata que jamais cogitou que “saindo do Arpoador, o Circo morreria. O Circo é uma ideia, e as ideias não morrem, se transformam.(…) Não queríamos ser vistos exclusivamente como um circo, mas como um núcleo de animação cultural”[11].
Frejat chamou esse núcleo de “grande polo potencializador de tudo o que aconteceu nos anos 80”, capitaneado pelo espírito asdrubalino e alavancado com a colaboração midiática do Jornal do Brasil e das rádios Fluminense e Cidade[12]. Então, em 5 de outubro de 1982, a lona reinaugurou, com estrutura reformada e ampliada, contendo arquibancadas e, na área externa, um projeto paisagístico que embelezava o ambiente com mudas imperiais e arbustos floridos.
A nova localização do Circo, ainda por cima favorecia o acesso das pessoas por ser uma região central, estabelecendo o cruzamento do público da zona norte e da zona sul. Com isso, a programação do espaço foi devidamente articulada para receber esse público eclético. Além dos shows das bandas já citadas, outras vieram “chacoalhar a aldeia” carioca, como Legião Urbana, Titãs, Ultrajearigor, Camisa de Vênus, Ratos de Porão, etc. Para além dos shows havia a creche que funcionava diariamente, espetáculos de dança, peças infantis, apresentação de coral, de orquestra e fóruns de debates sobre cultura e patrimônio. O caldeirão do Circo fervilhava.
A necessidade de alçar voos mais altos levou Maria Juçá a redirecionar os caminhos do rock nacional. Dessa maneira concebeu e realizou o projeto Rock Voador, reunindo, na mesma programação, artistas veteranos, como Tim Maia, e bandas iniciantes de punk e new wave. O resultado dessa “geleia geral” era aproximar artistas distintos em estilos e as “tribos” que os acompanhavam, atenuando as fronteiras existentes entre as diferenças econômicas, étnicas e sociais. Entendo que esse foi o voo mais ousado do Circo, ao fundir os territórios tanto no palco quanto na vida, provando que a década de 80 foi, na verdade, a grande celebração da liberdade, tendo no aparelho cultural o marco iniciador do que desejamos como democracia.
[1] ANOS 80. Intérprete: Raul Seixas. Compositor: Raul Seixas e Dedé Caiano. In: Abre-te, Sésamo! Intérprete: Raul Seixas. Rio de Janeiro: Discos CBS, 1980.
[2] VIDAL, Adam Tommy Vasques. História do Circo Voador: Cultura, Sociedade e Democracia no Brasil Contemporâneo (1982-1996). Disponível em: ( PDF ) História do circo voador: cultura, sociedade e democracia no Brasil Contemporâneo (1982-1996) (livrosgratis.com.br). Acesso em 19 de setembro de 2022.
[3] HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Asdrúbal trouxe o trombone: memórias de uma trupe solitária de comediantes que abalou o Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Aeroplano, p. 9, 2004.
[4] VIDAL, op.cit., p, 53.
[5] Idem, ibidem.
[6] Idem, p.54
[7] Documentário Circo Voador – A nave (2020), de Tainá Menezes.
[8] Idem.
[9] Idem.
[10] Idem.
[11] VIDAL, op.cit., p. 75.
[12] Documentário Circo Voador – A nave (2020), de Tainá Menezes.