Filipi Gradim: Outras dissonâncias

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A mais significativa badalação cultural do ano de 1924 foi o aparecimento dos manifestos irracionais. Quando ninguém esperava que outro manifesto tão escandaloso e tão polêmico quanto o Dadaísmo viesse; quando ninguém imaginava que poderia haver, na arte, algo tão questionador e desconcertante quanto a estética nonsense de Duchamp e do Cabaré Voltaire, eis que surge no horizonte o Surrealismo. A demolição do edifício clássico da arte, promovida pelo espírito niilista da juventude do segundo decênio do século 20, representou a descrença nos cânones da cultura ocidental que vingou durante mais de dois mil anos; bem como deu margem para que novos combatentes se engajassem na luta contra a tradição. A vanguarda se armava outra vez de munições contra sua tradicional inimiga: a instituição Arte.

O Surrealismo chegou incendiando a Paris do entreguerras. Fez o que pretendia a agenda vanguardista: enfrentou um exército gigantesco e célebre por seu histórico quase invicto. Até o Dadaísmo dar sinais de seu descompromisso com a verdade e com a lógica, a racionalismo ainda vigorava com todo seu esplendor, reinando absoluto no castelo da cultura ocidental. Mesmo com os espíritos de Schopenhauer, Nietzsche, Kierkegaard, expoentes do que se chamou doravante filosofia existencial, ainda assim o racionalismo não declinava em seu objetivo de avançar em direção ao projeto positivista. Acreditava-se fielmente no ideal de civilização como resultante necessário e inevitável de progresso científico. Acreditava-se na razão como se ela fosse uma entidade divina, o próprio esteio da humanidade, sob o qual tudo, inclusive a Arte, estava assentado e estruturado. 

A juventude parisiense não suportou tal imponência. Para eles, soava decadente tomar a razão como senhora do saber, como meio eficaz de dar conta do mundo. O poeta André Breton, líder do movimento surrealista, com jeito iconoclasta e insolente, atraiu outros jovens com a mesma disposição aguerrida já testemunhada em espíritos como os de Lautréamont e Rimbaud: Aragon, Soupault, Vitrac, Tanguy, Ernst, Crevel, Arp e Dali. Entre esses espíritos irrequietos urgia “matar” a ordem vigente, já que vivemos sob a égide do “racionalismo absoluto, que ainda está na moda” e que “só permite  considerar fatos estreitamente ligados à nossa experiência”. Breton escreveu: “sob a cor de civilização, sob o pretexto de progresso, conseguiu-se banir do espírito tudo que o se pode tachar, com ou sem razão, de superstição, de quimera”, relegando a fantasia a uma categoria inferior. O papel fundamental do Surrealismo foi o de reabilitar a imaginação criador e, com isso reabilitar na arte aquilo nela se enfraqueceu ao longo dos séculos.  

Breton – que antes mesmo do lançamento do Manifesto Surrealista (1924) – já  fazia experimentos poéticos a partir da psicanálise de Freud, reconheceu o estatuto da imaginação que a tradição ocidental sempre desprezou, ao dizer que “a imaginação está talvez na iminência de retomar os seus direitos”, fazendo desvelar “as profundezas do nosso espírito” que “ocultam forças estranhas, capazes de aumentar as da superfície, ou de lutar vitoriosamente contra elas”. A partir desse pretexto, a arte tomou para si o direito de capturar essas forças, “para em seguida submetê-las, se possível, ao controle de nossa razão”. Nesse caso, entende-se razão como mera instrumentalização do inconsciente, como meio de gerir o maravilhoso mundo irracional.

Ao reunir em torno de si outros artistas igualmente interessados em desocultar forças estranhas, Breton fundou e estruturou o movimento surrealista através de uma prática que se tornou o principal método de criação, a saber: a escrita automática. Tal procedimento buscava realizar a magia de transmutação, unindo a realidade e o sonho e fazendo vir à tona o fato de que a realidade é apenas uma camada da existência e que o acaso, o absurdo, a ilusão e o fantástico também estão entrelaçados com a realidade que, por ser assim, toma a forma de surrealidade. Dessa forma, a poesia e a prosa passam a ser escritas naturalmente, sem controle de pontuação ou rígidas regras de sintaxe, numa continuidade absoluta do fluxo do pensamento; bem como a pintura passa ser entendida “fotografia a mão e em cores da irracionalidade concreta” e a escultura “a moldagem a mão da irracionalidade concreta e do mundo imaginativo em geral”.

Em primeira instância, o surrealista tem a vidência como seu “único ato de fé”, como disse Breton. O artista vê; “deve ter olhos abertos para o mundo exterior e ver as coisas, não em sua generalidade aprendida, mas em sua individualidade revelada”. Medita-se profundamente sobre aquilo que se vê. De Chirico medita sobre as praças desérticas da Itália, enquanto Magritte medita sobre o dorso nu do corpo feminino. E o resultado é uma verdade irracional que é decalcada na superfície irreal da obra de arte. Além disso, os artistas adotam como método criativo a atividade paranoico-crítica que sistematiza o conjunto de imagens delirantes e as associações livres do pensamento que surgem dessas meditações, não apenas para decupá-las enquanto tais, mas precisamente para organizá-las na superfície em que trabalham (tela, papel, massa, câmera).

No cômputo geral, contatam-se diversos surrealistas — que não eram só franceses. O movimento foi internacionalista; alcançou a América, por exemplo. Quando vimos a foto em que Breton está sentado nos degraus de uma escada junto com outros integrantes, vimos as vozes dissonantes que o acompanhavam. Sentimos, no entanto, falta da presença de mulheres. Não há sinal nenhum de uma artista feminina entre os aguerridos artistas, embora saibamos que no Surrealismo diversas mulheres se alinharam a tal estética (bem mais do que em qualquer outra vanguarda) e que, por isso, deveriam figurar a galeria dos grandes artistas desse movimento. Porque essa ausência? Seria deslize, mero esquecimento? Uma terrível gafe, talvez? Ou seria a permanência de um padrão social?

Repetindo a mesma toada das outras correntes da vanguarda, não se veem artistas mulheres compondo grupos – nem sequer os liderando. O que não significa ausência do toque feminino. Pelo prisma antimachista e antimisógino que vivemos hoje, em pleno século 21, fica claro (e inadmissível) compreender as razões dessa lacuna: o mundo, ainda arcaico, não estava adaptado para receber artistas mulheres que adotassem posturas iconoclastas. No entanto, outras vozes dissonantes foram ouvidas, confrontando todo esse reacionarismo caduco. Até antes do Surrealismo despontar, entre os vanguardistas expressou-se a artista performática Valentine de Saint-Pont, que mesclava poema, dança abstrata, projeções e luzes coloridas; e, além disso, publicou dois manifestos: da Mulher Futurista (1912) e da Luxúria (1913) no qual escreveu: “mulheres são fúrias, Amazonas, Semiramises, Joanas d´Arc, Giovanas Hachette, Judites, Charlotes Corday, Cleópatras e Messalinas; guerreiras que lutam mais ferozmente que os homens; amantes que incitam; destruidoras que, quebrando os fracos, contribuem para a seleção natural”. 

Valentine significou a vanguarda dentro da vanguarda, pois abriu caminho para que outras personalidades femininas pudessem dar azo à imaginação. Ela arrebentou o cordão de isolamento que nem mesmo o impressionismo de Berthe Merisot foi capaz: a confiança em mulheres artistas visuais. Depois de Valentine, veio a artista plástica e fotógrafa suíça Meret Oppenheim. Fazendo uso de instalações-objetos, na mesma linha de pensamento articulada pelo Dadaísmo, Meret explorou peças do vestuário feminino (sapato, bota e luva) e utensílios (xícara, colher e bandeja), como forma evidente de realocar esses signos tradicionais da vida doméstica para uma dimensão irreal, como por exemplo, colar a ponta de duas botas ou revestir xícara e colher com superfície peluda, então provocando o público a experimentar o fantástico mundo de imagens impossíveis, através das mãos impossíveis de uma mulher.

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A inglesa Leonora Carrington, que viveu e trabalhou no México, declarou que o Surrealismo era um “grupo essencialmente de homens, que tratavam as mulheres como musas. Isso era bastante humilhante. (…) Eu caí no Surrealismo porque sim. Não perguntei se podia entrar”. Pintando apenas para si mesma, contrariou a tendência dentro do própria vanguarda. O resquício romântico que havia no Surrealismo, ao erotizar o corpo feminino, como fizeram Dali e Magritte, foi purificado pelas mãos delicadas de Leonora, que retirou a mulher desse imaginário fetichizado pelo patriarcalismo. Em suas obras, a mulheres nunca estão nuas. Pelo contrário, vestem túnicas diáfanas ou mantos pesados. Há forte impregnação simbolista na composição dos quadros: uma atmosfera nebulosa, mística, quase apocalíptica, por onde desfilam figuras humanas gigantescas e criaturas híbridas. O belo trabalho de Leonora por vezes parece reviver o espírito grotesco de Bosch, tamanho é o enredamento de imagens que se entrecruzam em diversos planos. 

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A catalã Remédios Varo flertou com os surrealistas através do poeta Benjamin Peret, com quem teve um intenso romance. Nessa troca de experiências, conheceu Leonora Carrington, com quem se estabeleceu rápida conexão e parceria. Ambas se influenciaram, pois admiravam em igual medida o trabalho de Bosch – considerado um surrealista primordial – de modo que também na obra de Remédios estão presentes os mesmos elementos plásticos. Ainda mais delirante que o imaginário de Leonora, a composição de Remédios apela para um misticismo alquímico, onde figuras mágicas ocupam o centro de ambientes fechados que parecem aposentos ou laboratórios, envoltos em fumaças e nuvens coloridas. Remédios é uma pintora moderna recuperando a velha aura medieval, e isto é visível na execução distorcida da figura humana sempre delgada e do amontoado de corpos que ela reúne dentro do espaço, causando uma multidão de imagens.

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A mexicana Frida Kahlo se inclui no rol das artistas femininas surrealistas, embora ela própria não admitisse tal filiação. Dizia: “nunca pinto sonhos nem pesadelos. Eu pinto a minha própria realidade”. Embora a pintora mexicana tenha se referido ao sonho/pesadelo de forma negativa, ela, no entanto, não expulsou de seu trabalho o conteúdo delirante. Tendo vivido de forma conturbada, passando por um acidente que a entrevou na cama durante meses, tendo sofrido dores terríveis na cervical e abortado espontaneamente diversas vezes, a artista se relacionou com a vida no âmago de sua tragicidade. O que vimos na pintura de Frida não são meras representações de sonhos, como é de praxe nos demais surrealistas. O diferencial dessa artista é que sua vida é irremediavelmente atada ao sonho e ao pesadelo; não há distinção; não há abismo que separa o real do irreal. A dor da coluna partida, a dor por cada filho perdido causam efeitos alucinantes; e o que se vê em sua obra: a própria Frida expondo as frágeis marcas do seu corpo sangrado, atravessado por folhas e raízes, perfurado por pregos e um edifício, tatuado na testa com o rosto de Rivera, metamorfoseado em cervo. A surrealidade, em Frida, não é um estilo de arte, mas a vida em si com toda sua dolorosa e absurda condição. 

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Por fim, a estadunidense Gertrude Abercrombie apresenta uma pintura surrealista que mistura o lúdico e o melancólico. Em geral, Gertrude pinta paisagens minimalistas, feitas em pinceladas lineares, planas, monocromáticas. O figurativismo está presente, da mesma forma como em Magritte ou De Chirico, com o diferencial de que são sempre mulheres as protagonistas da cena. Em corpos longilíneos e em poses hieráticas, as mulheres estão sempre solitárias ou na presença de animais (corujas, gatos, cavalos), atravessando caminhos, sob o céu sombrio da lua. 

Se não houvesse a experiência feminina do Surrealismo talvez o movimento tivesse se restringido a se contradizer violentamente; pois, se foi justamente essa a mais sofisticada das vanguardas, a que melhor conseguiu conciliar a estética da forma com o conteúdo profundo da existência, então não se poderia esperar outra coisa senão a presença de mulheres entre os grandes artistas. Seria incoerente desejar quebrar de vez com o legado da razão sem quebrar, ao mesmo tempo, com o conservadorismo do patriarcado, o maior responsável pela manutenção de tal legado. Se sempre foi a voz masculina a razão soberana, então, o mínimo que o Surrealismo deveria fazer seria dar carta branca às mulheres para que outra vozes pudessem destoar do coro.

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[1] BRETON, André. “Que é Surrealismo?”. In: CHIPP, Herschel B. Teorias da arte moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.418.

[2] Idem, ibidem.

[3] Idem, ibidem.

[4] Idem, p.419.

[5] Idem, p.421.

[6] Idem, ibidem.

[7] SAINT-PONT, Valentine de. “Manifesto da luxúria”. op.cit. GUINSBERG, J. LEIRNER, Sheila (org). o Surrealismo. São Paulo: Perspectiva, 2008, p Idem, ibidem.

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