Filipi Gradim: Respeitem meu nariz

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“Que palhaçada!” A memória de quando se exclamava assim, para reconhecer a gaiatice de alguém, se perdeu no tempo. A visão sobre o palhaço sofre hoje de uma triste miopia. No mundo, sua figura transita na categoria de coisas desprezíveis. Ninguém, em sã consciência – diria a moralidade –, quer ser chamado de palhaço ou mesmo fazer “papel de palhaço”. Ser palhaço é tão pior quanto ser bandido, posto que representa reducionismo de potências intelectuais, declaração aberta de inaptidão para pensar com lógica, de perceber as malícias e sutilezas da vida, de distinguir entre certo e errado. Ser palhaço é ser o “otário” do grupo. Quem quer?

Como se não bastasse, no Brasil, o palhaço se tornou referência caricatural para traduzir certo descontentamento com a conduta ética dos governantes. Daí passamos a assistir constrangedores cenas de “manifestantes” que se reuniam em passeatas, erguendo bandeiras, lançando palavras de ordem e, indevidamente, vestidos com a máscara que simboliza a arte do palhaço, digo, o nariz vermelho. Parecem legítimos em sua indignação se apresentarem assim, já que o palhaço é, segundo a opinião, uma criatura que ninguém quer se assumir como tal.

No entanto, o palhaço é e sempre foi uma figura de altíssimo valor cultural e político; que, em situações de crítica social, não deveria ocupar a posição do “ser achincalhado”, mas ao contrário, de ser aquele que achincalha e ao qual deveríamos nos aliar em vez de desprestigiar.  

A história do palhaço remonta tradições longínquas. Desde o seu princípio até a pós-modernidade – em que “ser palhaço” equivale a “ser indigno” – o palhaço vem perdendo crédito na sociedade e sendo exposto a um injusto percurso de banalização e de linchamento. Se quisermos que palhaço seja novamente válido e valioso em nossa cultura, é mister que trilhemos um caminho de volta ao seu passado. Nossos erros mais grosseiros estão em geral pautados na desconexão das fontes que deram origem às coisas. Que regressemos a ela!

Na Antiguidade, os imperadores romanos apreciavam a arte cênica, em especial o teatro. As encenações eram parte fundamental da rotina civil e religiosa e, por isso mesmo, eram cultivadas como sendo potentes expressões do pensamento humano; além, é evidente, de também promoverem a diversão popular. Através dos ludi scaenici (jogos cênicos), o palhaço era o mimo que se apresentava nos coliseus, nos teatros e anfiteatros ao largo de todo território dominado pelo império. Virtuoso, “o mimo não necessitava de nada mais do que de si próprio, sua versatilidade e sua arte de imitação”, declara a pesquisadora Margot Berthold.

O mimo era o “careteiro” que, com elasticidade corporal e facial, produzia o prazer do riso com suas imitações. Além do mais desempenhava uma série de “gestos zombeteiros” de efeito ridículo executados “com todo o seu corpo”. Tinham espaço reservado nos ludi scaenici com apresentações que ocorriam no intervalo entre uma peça cômica e uma peça trágica. Atraíam o público principalmente porque eram dotados de competências múltiplas. Eram hábeis na produção de caretas e de tipos ridículos, já que não usavam máscaras, e dominavam a acrobacia, a dança, a música e aquilo que lhes distinguia dos atores, a saber: a arte da bufonaria.

Com o eclodir da arte cênica em Roma, aprendemos que o palhaço consiste basicamente em ser um mímico que, com um aparato corporal desenvolto, organiza um repertorio de gestos, ora espontâneos e atrapalhados, ora ensaiados e coreografados. Ademais, o palhaço é um artífice da zombaria, quer dizer, ele faz uso de dispositivos cuja finalidade é arrancar o riso. E como ele logra esse efeito ridículo? Por variados caminhos. Todavia, o caminho mais eficiente é o do paradoxo; que se tornou a regra comum em toda a arte do palhaço, em todo clownismo.

Antes de definirmos o que é esse paradoxo, é preciso entender que o mimo, na Roma antiga, zombava de tudo o que era poder constituído. O maior dos poderes constituídos é a moralidade dos costumes. Se o riso era despertado, a sua causa não era somente um simples escorregão ou tombo do mimo, bem como era a forma com que ele zombava da moral. E zombar da moral era rebaixar o que se supunha sério, grandioso e imaculado. O “sagrado” era posto do avesso e, assim, tudo o que se reverenciava, de deuses a imperadores, de leis a tradições, era libertinamente exposto, com o propósito de destacar a dimensão absurda de suas existências.

A fórmula do palhaço é tal qual: quanto mais se leva a sério, mais o humano é absurdo. Quanto mais absurdo, mais cômico. Porque o absurdo é a desarmonia em relação ao que é “perfeito” e “certo”. Não é o belo, mas o torto e o errado que arrancam o riso. Se algo se supõe perfeito, e é realçado na sua imperfeição, decai de valor, deixa de ser momentaneamente sagrado para ser igualado às coisas mundanas. O mimo era, então, imoral porque debochava dos paradigmas. Animalizado e, ao mesmo tempo, inocente, o mimo fazia rir daquilo que se solidificou e se afastou da vida, pela falsa crença de superioridade humana. Daí o apelo dos mimos para atitudes consideradas grotescas e que enfatizavam mais o corpo que o espírito.

A arte do palhaço é uma expressão física e fisiológica. Não tem pudores de ser a espontaneidade de um corpo animal: o mimo come em excesso, peida, arrota, apalpa seus genitais e simula o sexo; é imoral; escapa à normatividade. Mas também é o corpo inocente, bobo, que desconhece as regras estabelecidas pela sociedade e, por isso, representa a linha de fuga imprescindível para o rigor das necessidades práticas da vida que, por azar, formaram essa ruptura neurótica entre o natural e o artificial, entre o real e o ideal e entre a criança e o adulto.

Na Idade Média, o palhaço era o bufão ou o bobo. Enquanto bufão, andava pelas ruas e praças, expulso dos teatros e coliseus, apresentando-se com andrajos volumosos, insultando tudo o que era absurdo e tabu para a sociedade. Mas, na qualidade de bobo, ou animava as festas populares promovidas pela Igreja, antes da liberação do Carnaval como festa oficial, ou se enfurnava nos castelos, como companheiros leais dos reis. Na corte, eram bem tratados e respeitados, porque consistia em status de privilégio ter um bobo em seu castelo. O bobo era a virtuose que enobrecia com seus truques, danças, acrobacias, caretas e piadas mordazes.

Em Rei Lear, de Shakespeare, é o bobo quem ilumina a visão do rei. Nesse caso, o paradoxo que produz o sentido humorístico do palhaço, aparece. O paradoxo consiste na desproporção presente na realidade absurda das coisas. O grande deixa de sê-lo quando se vê pequeno, quando é ridicularizado por aquilo que não contava nas expectativas de si mesmo. O rei é tão bobo quanto o bobo que o vê de fora e ri de sua inocência. Quem se pensava inatingível é quem recebe um balde de água fria na cabeça. O patrão rabugento e dono de si é burlado pelo empregado esperto. Dois casos muito recorrentes nos jogos do palhaço, nas chamadas gags.

Da Idade Média, onde era respeitado, até a Idade Moderna, o palhaço sofreu cruciais modificações, todas elas respectivas à nossa receptividade em relação ao seu papel social. O riso escancarado, que mostra os dentes, que chora de tanto achar ridícula uma situação absurda e paradoxal, foi proibido com a reação católica e moralizante. O riso foi censurado e moderado, devendo ser “civilizado”, ajustado às piadas “elegantes” e “sutis”. Assim, o palhaço perdeu espaço na realeza e nas ruas. Coube-lhe, então, o circo, que surgiu como um espaço autônomo do riso, como um território livre e iluminado por refletores, onde o palhaço ganhou centralidade e protagonismo, liberado de zombar do que quisesse e de ser o avesso da vida humana.

Sob a lona do circo, sua máscara não concentrou apenas no nariz vermelho, mas voltou a ser a máscara de um corpo inteiro, sem medo de que o rei pudesse castigá-lo por alguma piada. Lá, as figuras do palhaço Branco (o patrão/ aquele que regula) e do palhaço Augusto (o empregado anárquico e desastrado) dominavam o espetáculo. Ambos faziam com que o paradoxo estivesse presente no foco de luz do picadeiro, arrancando o riso a partir do avesso das coisas, quando o empregado infantil e ludibriador desempenhava ações despretensiosas de forma precisa ou, ao contrário, desempenhava ações pretensiosas de forma desastrosa.

Fazer-se de bobo ou de trouxa é verter o ficcional ao plano do real; é parecer que o que é, é da forma como é. Nesse sentido, o paradoxo se dá: subvertendo o ser, mostrando a parte escondida, os fundilhos furados da calça que temos vergonha de mostrar. Não queremos ser bobos, porque isso parece nos desmerecer, nos inferiorizar. Mas o palhaço vem e nos apresenta uma contraluz e seu reflexo na parede. Somos bobos, na medida em que dizemos ser espertos, em que parecemos dominar uma situação, quando é ela quem nos agarra e nos derruba.

O palhaço representa o reflexo da fragilidade que somos, cuja imagem produz tamanha vergonha que não queremos encarar. Ele não só diverte, nos retirando do tédio e da tristeza, mas também conduz nosso olhar para a ferida que carregamos e que, na verdade, não tem graça nenhuma. Rimos também do que é insuportável, por função pedagógica e também terapêutica. Rimos por descarrego. Chaplin riu do que seria impossível: da tirania de Hitler, da alienação do capitalismo. Mas, graças ao palhaço, conhecemos nossas fraquezas e, na leveza, damos uma pirueta em cima dos problemas. Por isso e outras coisas, respeitem o nariz desse artista genial.

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