Filipi Gradim: Serrinha (en)luta

Colunista do DIÁRIO DO RIO fala sobre o rebaixamento da Império Serrano

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“Todo carnaval tem seu fim” – assim canta Marcelo Camelo, vocalista e compositor do grupo Los Hermanos. Não precisamos ir muito longe para entender que o fim segue o princípio lógico causal inerente a qualquer acontecimento, sendo o ponto demarcador que evidencia que um processo, depois de iniciado, se completou ou alcançou seu objetivo. O fim do carnaval, por exemplo, dá por encerrado um curto período de uma alegria ruidosa e colorida que tanto embeleza as cidades durante o mês de fevereiro. Por tal razão, esse fim traz à baila aquela atmosfera melancólica, deixando como rastro o gosto doce de uma festa que poderia não acabar.  

No entanto, para uma parcela considerável dos foliões, o carnaval também pode acabar em tristeza e revolta, mormente quando a energia de competitividade está em questão. Aliás, se há algo que, no meu opinar, fere gravemente os princípios lúdicos do carnaval, é o fato de infestá-lo com a necessidade voraz de disputa, levando agremiações – que, em tese, são recreativas – a entrarem numa arena para provar que seu desfile é melhor do que das suas rivais. Seja como for, no mundo do carnaval, coabita, ao lado da natural alegria, um estado de luto. 

Desde a quarta-feira de cinzas do dia 22 de fevereiro, a escola de samba Império Serrano se encontra em luto. O surdo calou, o tamborim calou, a cuíca calou para ouvir o gemido de um sentimento que só quem é folião conhece. O resultado do desfile do Grupo Especial (subdivisão que considero vergonhosa) deu como rebaixada a escola de Madureira, relegando-a como última colocada. Foram doze agremiações que passaram pela Marquês de Sapucaí no domingo e na segunda-feira, e a Império Serrano, segundo os critérios observados pelo corpo de jurados, fez um desfile inferior em relação às demais escolas, levando-a a se retirar do famigerado grupo.  

Para o senso comum, que se encontra fora dos bastidores do carnaval, e que, por isso, desconhece os meandros que compõem a trajetória de uma escola de samba para empreender seu desfile, o resultado oficial confirma uma verdade que revela o fracasso de um projeto. No entender geral, o “perdedor” do carnaval é merecedor de tal jugo, pois a voz dos jurados é a autoridade capaz de reconhecer os acertos e de reprovar as falhas do desfile. Será?  

É importante esclarecermos as condições que levaram a Império Serrano a fazer seu carnaval, antes de analisarmos as razões que fizeram com que a comunidade da Serrinha e muitos foliões admiradores da escola vestissem a cor preta do luto. Em primeiro lugar, desde que o presidente Sandro Avelar assumiu a gestão da agremiação de Madureira, em 2020, a escola passou por uma reestruturação que transformou suas bases administrativas. Mergulhada em dívidas contraídas pela inadimplência de gestões anteriores, a Império conseguiu saldar o que precisava, recuperou a confiança dos investidores e ainda firmou novas parcerias.  

Além disso, graças à ação do Departamento Cultural, a escola promoveu a tradicional Feijoada Imperial, desenvolveu programas para pessoas em vulnerabilidade social, como o curso de Gastronomia Social, o pré-vestibular comunitário em parceria com a UERJ e a ONG CUPA e o 1º casamento comunitário LGBTQUIA+. Aproveitou-se também para incrementar as redes sociais, como o Facebook e o Instagram e criar um canal no Youtube, a TV Império.  

Somando organização, modernização e compromisso social, a nova gestão da Império Serrano contratou o carnavalesco Leandro Vieira para assinar o primeiro desfile da escola pós-pandemia. Então, em 2022, ainda no Grupo de Acesso, o reizinho de Madureira realizou o belíssimo desfile Mangangá, alcançando a primeira colocação e, consequentemente, garantindo seu lugar no tal Grupo “Especial”. No entanto, antes e depois dessa vitória, o que se viu foi a consolidação de uma escola que, a seu favor, tem uma comunidade aguerrida e vibrante, motivada por uma gestão profissional e por uma equipe de excelência, capazes de fortalecer as estruturas até antes fragilizadas. Durante muitos anos a Império sofreu justamente por falta desses fatores, dando margem para uma série de altos e baixos que abalaram sua autoestima.  

Em 2023, a Império Serrano se encontrava transformada em relação a um passado de desrespeito e de abusos cometidos ao seu pavilhão. Dessa vez, acreditava-se que a escola não cometeria erros viciados, pois tanto gestão quanto comunidade estavam confiantes no bom desempenho de suas funções. Contratou-se o carnavalesco Alex de Souza e o intérprete Ito Melodia, contando com suas competências, para que a escola fizesse o seu melhor. E não foi diferente. O enredo Lugares de Arlindo foi uma acertada escolha que endossou o talento da Império Serrano para homenagear pessoas (nesse caso, uma pessoa viva) e emocionar o público.  

Sendo a primeira a escola a desfilar no domingo de carnaval, a Império não se fez de rogada diante do desafio de abrir os trabalhos e “esquentar” o público. A bateria excepcional regida pelo mestre Vitinho faria sua parte, deixando o restante para o excelente samba de Aluízio Machado, Rubens Gordinho, Sombrinha, Carlos Senna, Orlando Ambrósio – todo composto sob a poética métrica do acróstico – e, por fim, para a alegria natural dos desfilantes da Serrinha.  

Desde o desfile Império do Divino (2006), não se via a escola tão bela. Lugares de Arlindo surpreendeu o público mostrando uma Império Serrano digna de se ver. No aspecto visual, a escola brilhou com fantasias criativas e luxuosas, com alegorias suntuosas, coerentes, com bom acabamento e iluminação, e que, no conjunto, formavam o perfeito equilíbrio entre cor e forma. Com um samba forte, a Império veio alegre, cantante, sem apresentar buracos entre as alas e sem dar indícios de um desfile desorganizado ou acelerado. Tudo decorreu perfeitamente.  

Os elogios recebidos pelos componentes, pelo público e pela mídia endossavam um sonho entre os imperianos: a gloriosa escola de Madureira, depois de tantos anos de luta, conseguiu enfim dar a si mesmo o direito de desfilar com gigantismo. Como o carnaval deixa às claras o sucesso ou o fracasso de uma apresentação, então não havia dúvidas de que a Império tinha feito o seu melhor, independentemente de ser a primeira escola a desfilar e de ter migrado do Grupo de Acesso. Circulava-se, inclusive, a possibilidade de a escola retornar ao sábado das campeãs, tamanha a competência e qualidade do desfile.  

Para quem está retornando, já seria de boa acolhida à escola um 7º ou 8º lugar. Mas, em hipótese alguma a Império não estava em condições de integrar o Grupo Especial, como tentou nos convencer o argumento cínico de Jorge Perlingeiro. Muito menos ficar em 12º lugar e ser rebaixada. Pode-se, sim, falar em rebaixamento, pois essa é a linguagem esportiva que a LIESA empresta ao desfile das escolas e se orgulha em reproduzir. Todavia, não se pode falar em derrota. A Império Serrano não foi derrotada, como afirma Rachel Valença:  “não me considero derrotada. Se minha escola tivesse desfilado com pés de chumbo, matando de tédio a plateia, como a Mocidade Independente, décima primeira colocada, me sentiria triste. Se minha escola tivesse dado um show de incompetência e falta de gestão, estaria arrasada. Mas não foi o caso”[1]

Além do mais, a Império “não teve carros desgovernados ameaçando a integridade das grades das frisas nem deixou buracos gigantescos em sua evolução, como fez a Portela, décima colocada; não desfilou da concentração à dispersão com escultura quebrada em carro alegórico (…), como se viu na Unidos da Tijuca, nona escola na classificação final”[2]. Seu desfile correu dentro da normalidade técnica, razão que a afasta do peso do fracasso. Pelo contrário, realizou um dos desfiles mais belos e mais à altura de sua história, vingando o fiasco do biênio 2019/2020.  

Para os foliões amantes da escola foi arrebatador o impacto de Lugares de Arlindo, mas para os jurados e para a Liga Independente das Escolas de Samba (LIESA), o mesmo impacto causado foi dissimulado. Era evidente que a escola tinha feito um desfile merecedor de honras. Porém, o corpo de jurados, a quem se atribui competência e conhecimento de causa, agiu de má-fé com a escola, o que não é novidade, pois, desde outros carnavais, prejudica-se a Império. O que significa que, qualquer desfile que fizesse, a escola de Madureira seria “canetada” com notas baixas, com o único propósito de humilhá-la e de poupar a humilhação das “coirmãs”.  

Como explicar notas baixas em quesitos onde a escola cumpriu as exigências com eficiência? Como descontar pontos de evolução se a escola não abriu buracos como fez a Portela? Pois, somente um jurado que parecesse julgar, em vez de julgar de verdade, poderia cometer tal injustiça. O filósofo Jean-Paul Sartre chama de má-fé a consciência de alguém que acredita ser o que é, mas sem sê-lo de verdade. A pessoa que age de má-fé se apoia na crença de que aquilo que ela é se mostra tal como acredita ser, sem contar que o olhar de fora, vindo do outro, capta o outro ser diferente desse da crença. O que o outro vê é uma pessoa sendo o que não é, apesar de todas as máscaras sociais que utiliza. Sendo assim, um jurado apenas representa ser jurado, quando na verdade não o é. Falta-lhe, então, a competência para sê-lo. 

Mesmo que os motivos do rebaixamento não sejam expostos e se mantenham escusos, pois essa é a parte corrupta do jogo de interesses entre os dirigentes das escolas e os da Liga, a evidência se mostra por ela mesma. Uma jurada tendenciosa, como é Regina Oliva (que há décadas persegue a Império Serrano) e outros que não são dignos de tal ofício, fingem para si mesmos que sabem julgar, pensam que ocupam esse posto, que são legítimos julgadores, mas para a consciência, que vê de fora, está explícito que tudo não passa de uma representação.  

No espetáculo das escolas de samba, o quesito má-fé é que o vale mais ponto. Pois, quanto menos você é o que é, quanto menos você assume as qualidades que possui e não toma consciência do que é, mais a pessoa se constitui como aquilo que ela não é, mais ela é configura uma mentira para si mesma, ao enganar-se que é o que não é. Logo, o mau juiz, que julga por vingança ou ressentimento, não se assume e foge do que é, criando malabarismos para justificar essa ausência. Ele capta seu ser como sendo “justo”, não o sendo. Em vista disso, não confessa ao outro sua incompetência, preferindo fugir de si e do olhar do outro, o que é impossível. Os milhares de comentários indignados na página da Império, no Instagram, provam que o “justo” é “injusto”, e que a equivocada competição entre as escolas se resume a um cruel baile de máscaras, onde alguém deve ser punido para manter a maquinária da mentira e da corrupção.   

O júri está adestrado a ser cruel: toda escola que “sobe” deve “descer”. Qual será o critério de avaliação dos desfiles? As mesmas leis físicas que determinam que a pedra que sobe desce? Ou, então, faz-se urgente moralizar os desfiles e entronizar no coração da LIESA algo que nunca ouviram falar, ou seja, rigor ético, a fim de que nenhuma escola seja mais humilhada? Que seja dado a cada um a sua parte. Isso não é justiça? Pelo menos conceitualmente sempre foi assim. Mas o carnaval prefere romper não só com os pudores, mas também com o respeito e, principalmente, com a responsabilidade. A justiça não sabe sambar. Pelo menos até onde se vê. E, nesse embalo, cria-se o vício de rebaixar qualquer escola que fure o cerco da má-fé, mesmo uma escola como Império Serrano, fundadora da Liga e matriz ancestral do samba carioca.  

Mas, sendo filha de Ogum e de São Jorge, Serrinha tem nas veias o sangue da resistência e da luta, de onde se concluem quatro coisas: a) que nenhum ato de má-fé ou juízo incompetente oblitera a divina potência da história da Império Serrano; b) que não houve derrota no carnaval de 2023, mas injustiça; c) que a injustiça tentou em vão apagar um desfile grandioso; e d) que o luto que a nação imperiana sente não é pelo rebaixamento, mas pelo aviltamento de uma associação e de um júri que mascararam os resultados, em benefício de quem não merecia. 

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