Filipi Gradim: só não vai quem já morreu

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O imagético livro Gênesis nos descreveu a Criação do Mundo da seguinte forma: do caos, da escuridão plena, fez-se a luz, clareando-se um novo mundo. Fiat lux! A leitura desse livro e a compreensão de seus símbolos sempre se mostrou muito útil não só aos criacionistas devotos da Bíblia, como também aos homens criativos e a quem lida com a arte e suas demandas. A razão de tal utilidade é bem simples: o livro Gênesis trouxe à baila a noção de criação como algo que, a rigor, seria um movimento de transposição.

O que seria isso? Criar, na visão genética do mundo, é fazer aquilo que Santo Agostinho chamou de “transição de uma forma para a outra” a partir da qual as coisas, na forma e na matéria, “deixam de ser o que tinham sido para começarem a ser o que não eram”. O criacionismo, apesar de limitado, nos permite, no entanto, perceber que a criação é, antes de tudo, devir. Algo, no plano da realidade vivida e no plano do pensamento, retira-se da indistinção e do vazio e arroga-se à categoria de “ser”.

Transitar de uma forma para outra é próprio do movimento da cultura. Não poderia ser diferente com o Carnaval que é um emblema no que tange a esse aspecto. Pensar em Carnaval, a fundo, é esbarrar inevitavelmente nessa base conceitual do criacionismo. Observando bem, a luz se fez no meio de um abismo espiritual quando o Carnaval deu suas caras na Idade Média, enquanto festa legitimamente civil e popular. As “trevas” do pecado e da lascívia eram os demônios que a Igreja tentava expulsar de seus fiéis. Era impossível viver apenas para as tentações da carne como se isso fosse rotina. Logo, era preciso se dedicar a Deus e às obrigações com a purificação do espírito. O período da Quaresma era imposto justamente para o corpo e a alma entrarem em quarentena a fim de se libertarem do que não afina com os desígnios divinos.

Antes, porém, de a Quaresma se iniciar e a ingerência da Igreja visar o controle dos atos morais da cidade, havia, no calendário anual, a folia do Carnaval. Para que a população não se perdesse em arrependimentos da carne, surgiu o Carnaval como a luz no meio do abismo. Essa luz, ainda que desvairada, introduziu-se na cultura como a salvação antes de as penitências radicais impostas pela doutrina católica vigorarem.

No Brasil, em que Carnaval se confunde com a própria identidade do país, essa luz carnavalesca irradia uma beleza sem fim. Na Bahia, por exemplo, o criacionismo cultural tomou uma forma impressionante. Quando menos se esperava, o que era deixou de ser e se tornou outra coisa. Ou seja, a cultura do Carnaval, com seus hábitos, tendências e especificidades comuns, passou por um súbito processo de transição, de devir, dando margem ao nascimento de um fenômeno que, sem ele, tornou-se impossível pensar o Carnaval no Brasil como um todo. Esse fenômeno, essa luz que atravessou a matéria já formada do Carnaval, chama-se Trio Elétrico.

Em 31 de janeiro de 1950, os soteropolitanos Adolfo Antônio do Nascimento (1920-1978) e Osmar Álvares Macedo (1923-1997) realizaram um desfile pelas ruas de Salvador. Segundo os dados oferecidos pelo pesquisador Leandro Dantas Silva, a dupla de baianos – amplamente conhecida como Dodô e Osmar – surpreendeu a cidade, montada em um Ford 1929 (o “Fubica”), proporcionando “uma fanfarra de 65 músicos”. Com instrumentos feitos por eles – já que, além de músicos, tinham conhecimentos de eletrônica – Dodô e Osmar tocaram uma sequência de frevos que haviam ensaiado para a apresentação no Clube Carnavalesco Misto Vassourinhas em Recife.

Encabeçados pelo motor da Ford 1929, naquele verão, Dodô e Osmar arrastaram pelas ruas uma turba de foliões que se envolveu com aquele ritmo pernambucano. O diferencial da apresentação estava no fato de que o frevo foi tocado não acusticamente, mas eletricamente. Depois de haver assistido uma apresentação de Benedito Chaves tocando violão elétrico, ainda nos anos 40, Dodô se empolgou com a novidade e a potência do instrumento. Porém, o violão apresentava microfonias e atrapalhava a apresentação dos músicos.  Daí, Dodô teve a ideia de substituir o braço do violão por um pedaço de pau, estendendo cordas sobre ele e conectando-o a um captador, dando nascimento ao “pau elétrico”, que depois viria se transformar na guitarra baiana.

Em 1951, já conhecidos em Salvador, investiram no projeto e conseguiram trocar o carro por uma pick-up Chrysler Fargo. Convidaram Temístocles Aragão para reforçar o corpo musical e ele, com uma guitarra tenor (triolim), fez com que a dupla se tornasse um Trio Elétrico. No ano seguinte, inovações foram implantadas, tornando o trio ainda mais profissional. Visando o alcance de público que o trio fornecia, eles foram contemplados com um caminhão pela fábrica de refrigerantes Fratelli Vita, a partir do qual ganharam maior visibilidade e maior amplitude sonora, uma vez que o caminhão permitia o uso de uma aparelhagem melhor. Introduziram ao redor do automóvel algo que superou o improviso dos primeiros desfiles como autofalantes e geradores.

Para o pesquisador Paulo Miguez, Salvador é uma cidade de “cores vivas” dotada de uma “exuberância cultural” que faz “da celebração e da festa suas expressões maiores”. O Carnaval representa esse ápice da vivacidade cromática; é quando o brilho de Salvador se torna mais incandescente. O Trio Elétrico, por sua vez, toma parte nessa festa como fenômeno revolucionário. De fato, ele foi uma luz criadora que transformou o cenário do Carnaval e os atores componentes. Primeiro por questão instrumental, pelo fato de ter inserido na música brasileira a guitarra elétrica, bem antes do suposto pioneirismo da Jovem Guarda. Houve, paralelo ao despontar do rock nos EUA, uma eletrificação do frevo e a ascensão desse ritmo ao patamar de universalidade. Graças à ousadia de Dodô e Osmar, outros ritmos foram incorporados ao Carnaval, como o rock, o reggae e o ijexá, plurificando e enriquecendo as texturas sonoras da festa.

Depois, a criação do Trio Elétrico foi decisiva para a reorganização do espaço e da relação entre o cidadão e a festa. O carnaval que antes era estratificado entre ricos e pobres, democratizou a festa a tal ponto que o Trio Elétrico passou a atrair pessoas de níveis sociais distintos. Antônio Risério assinala que distinções socioeconômicas “vão por água abaixo” fazendo da cidade um campo aberto, uma “zona liberada” cuja única lei é a consciência alegre de que a carna vale, quer dizer, de que o livre prazer é festejado naquele limite de dias antes de a vida retornar à moralidade dos dias comuns.

O Trio Elétrico logrou ser aquilo que não era, ao aproximar os nichos da cidade para “pular o carnaval” junto a um grande aparelho de música circulante. Logo, ele movia a cidade, ao se mover enquanto festividade, ao se mover enquanto socialização. O que é belo no Trio Elétrico, na qualidade de arte e de cultura, é a capacidade de promover um esvaziamento das estruturas, uma vez que o espaço em que ele se dá é uma zona liberada e também movente, saltitante. Não se brincou mais Carnaval a partir do surgimento do Trio; passou-se a se eletrificar, a se extasiar de uma nova forma, pulsando com o alto volume das caixas de som e com todo o fervor da rua e da multidão.

Além disso, conforme as palavras de Risério, o Trio Elétrico, na metade dos anos 70, reafricanizou o Carnaval. Após décadas de enfraquecimento, a matriz afro-baiana emergiu novamente no esquema da festa afirmando-se como expressão artística, a partir do momento em que foi adicionada na programação do Trio Elétrico. O espaço, que antes era um privilégio das elites brancas, tornou-se hegemonicamente mestiço. Daí a festa reforçou o caráter ancestral da cidade, ao permitir que os tambores africanos pudessem ser ouvidos e que, assim, o axé music fosse incorporado ao repertório e tivesse tanta força quanto o frevo, que era a música original do Trio Elétrico.

Apesar da grandeza inventiva de Dodô e Osmar e da generosidade em receber diversas expressões musicais de Salvador, o Trio Elétrico não resistiu ao processo de mercantilização de seus valores. Após a morte de Dodô, em 1978, os esquemas de montagem e apresentação do Trio passaram a ser controlados pela estrutura econômica e estimulados pela exploração turística. Nas décadas de 80 e 90, com a explosão do axé music e com a formação gradativa de blocos de Trio, podemos observar que, da genuinidade inicial do projeto, só restou a guitarra elétrica e a fusão dos ritmos. A hierarquização social, que não havia, passou a redefinir o espaço e o Carnaval tornou-se branco, estrangeiro e rico; e é o que temos hoje enquanto festa. Mesmo assim a máxima de Caetano Veloso ainda prevalece: “atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu”.

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1 COMENTÁRIO

  1. O criacionismo é formação engendrada pela metafísica, enquanto o devir é a transformação físico química percebida pelos sentidos e razão.
    Como a própria filosofia é fruto da dialética metafísica, todas as divindades podem perfeitamente habitar o dualismo.
    Leucipo de Mileto cita o átomo e acaba por agregar o devir à transformação química, que, por sua vez, não passa de uma espécie de dualismo intermolecular, promotor das reações químicas, cujos produtos são a prova do devir… 2.400 anos depois, Lavoisier acaba por confirmar Leucipo…
    Portanto, o sincretismo é um elemento de transformação metafísica, e também confirmação do devir.
    Assim, imagino que o carnaval seja uma explosão feérica do sincretismo, e este, por sua vez, a comprovação do devir metafísico.

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