Libra está no ar; e essa constatação se impõe duplamente. Primeiro porque, desde às 22 h 03 do dia 22 de setembro, quando Virgem se despedia de sua passagem, outro signo se apresentava, confirmando o movimento dos astros; e depois porque Libra integra o grupo dos signos regidos pelo elemento ar. Portanto, até 22 de outubro, Libra estará entre nós exercendo sua influência, tanto no plano astral quanto no plano psíquico onde governa. Esse ciclo indica que o Sol, essa enorme estrela de fogo, brilhará dentro da esfera de um dos signos mais envolventes do Zodíaco. Mas falar de signo sem ao menos saber o que significa não compensa o esforço da leitura. Por isso, cabe a pergunta: o que é signo?
Se nos orientarmos pelo sentido da linguagem, signo é indicativo físico de algo perceptível. Signo é coeficiente da presença física de algo; é fator que pressupõe qualquer juízo analítico ou juízo de valor; é a coisa existente antes da coisa enunciada. Portanto, signo é uma unidade pré-linguística a partir da qual estamos aptos a interpretar o mundo ao redor, pleno de coisas existentes. Graças à linguagem o indicativo físico do signo amplia-se como objeto transcendente e, por isso, extrapola os limites do que é percebido e toma a forma daquilo que chamamos símbolo. Simbolizar é colocar-se frente ao signo de uma maneira inteligente, fabricada, construída como forma de superar a espontaneidade e materialidade das coisas.
Sendo assim, a astrologia, que nos coloca diante de planetas e estrelas é, portanto, uma ciência simbólica – como, aliás, todas as ciências são. Carl Gustav Jung, chamou a astrologia de ciência cujo método se distingue dos demais por ser prioritariamente intuitivo em vez de conceitual[1]. Se Jung afirmava tal coisa considerando a intuição como pressentimento, então sou obrigado a discordar do grande mestre. Na medida em que intuição é, como ensinou Kant, percepção da realidade física dada no tempo e no espaço, então a astrologia está impedida de ser algo pressentido pela consciência[2]. Posto que o pressentimento antecipa o que vai suceder no tempo e no espaço, então não é correto chamar a astrologia de intuitiva – muito menos de ciência – já que toda ciência depende da percepção de signos presentes.
Por isso mesmo a astrologia não é uma ciência apoiada no futuro, mas no presente. Os signos são indicativos de estrelas presentes no céu em sua dinâmica atual. Então, conforme dissemos no início do artigo, Libra está no ar como signo de um movimento da Terra em relação ao Sol, durante especifico período anual. Todavia, além do que é observável no céu já não se trata mais de signo, mas de símbolo, de interpretação sobre esse dado físico/astronômico. Por isso, prefiro chamar de simbólica essa ciência tão fundamental que existe há milênios e que resiste a séculos de rejeição, exílio, perseguição, invalidação e preconceito.
Enquanto observação do signo, a astrologia é astronômica e está ancorada em conceitos físicos. Nesse aspecto, analisam-se órbitas, posicionamentos, distâncias, energias e movimentos de avanço e retrocesso. Para além do físico, participam os conceitos-símbolos, por meios dos quais ideias simples, referidas aos astros, tornam-se ideias complexas dentro de um esquema intricado de significados. É quando a psicologia colabora com a astrofísica operando como a tradutora dos movimentos celestes em conexão com os movimentos da psique humana.
No entanto, entre astronomia e psicologia, se encontra um procedimento intermediário que é a mitologia. A mitologia não é uma ciência física como a astronomia nem tampouco é uma ciência simbólica como é a psicologia; isenta-se de ambas as direções. A mitologia independe de dados espaço-temporais, como também não se encerra em uma tradução de fenômenos da psique. O domínio da mitologia se desdobra em outras camadas que escapam ao mecanismo físico das coisas e à assertividade conceitual das interpretações que nos faculta a linguagem.
A mitologia é transcendental ao mundo físico e ao mundo conceitual. Existe como logos, como narrativa, mas que atravessa o plano das coisas e das ideias; sendo transversal aos dois domínios, o conteúdo da mitologia é a narrativa do inconsciente. No desenvolvimento de uma análise astrológica, a premissa astronômica deve partir do efeito físico gerado pelo movimento celeste, enquanto a psicologia deve compreender as implicações conscientes da psique. No entanto, a mitologia aprofunda-se e mergulha em uma zona de obscura e misteriosa decifração.
Chama-se arquétipo a premissa mitológica para acessar a tal zona dificultosa que é o inconsciente. No entender de Jung, arquétipo é uma espécie de linguagem do inconsciente, de uma interpretação da psique, mas expressa no modo coletivo e não no modo pessoal. Segundo ele, “o conceito de arquétipo, que constitui um correlato indispensável da ideia de inconsciente coletivo, indica a existência determinadas formas na psique, que estão presentes em todo tempo e em todo lugar”[3]. Dito de outro modo: o arquétipo é a forma coletiva da psique; que, insuficiente para dar conta de um único indivíduo situado neste ou naquele tempo ou lugar, alonga-se de tal modo a abranger uma quantidade incomensurável de pessoas e, portanto, de estruturar a psique na sua amplitude que, de tão imensa, termina escapando-nos à consciência.
Ademais, “o inconsciente coletivo não se desenvolve individualmente, mas é herdado. Ele consiste em formas preexistentes, arquétipos, que só secundariamente podem tornar-se conscientes, conferindo uma forma definida aos conteúdos da consciência”[4]. Se Libra é um signo que corresponde a algum fenômeno astronômico que compreende um período anual do ciclo astral, e se esse ciclo acontece de modo global, ou seja, ao redor do planeta Terra, então entender o signo de Libra nos exige alçá-lo ao domínio da coletividade. O signo percebido globalmente nos indica a existência de uma estrutura psíquica que não pode ser outra a não ser arquetípica. A bem dizer, em nada tem de pessoal a manifestação de Libra enquanto signo.
O arquétipo é um comportamento inconsciente da psique. Por isso, é instintivo. Os instintos “são fatores impessoais, universalmente difundidos e hereditários, de caráter mobilizador, que muitas vezes se encontram afastados do limiar da consciência”[5]. Como se trata do signo de Libra, o arquétipo que corresponde, digamos assim, aos instintos librianos, é a deusa grega Afrodite – que na versão romana foi batizada como Vênus. Esse é, todavia, um dos nomes do arquétipo libriano. Não devemos nos reservar a pensar Libra apoiados no paradigma ocidental, uma vez que arquétipo, por sua definição, se esquiva da determinação espaço-temporal, fator que o afasta da tendência territorializante, que a astrologia desconhece.
Mesmo tendo nascido na Mesopotâmia e ganhado terreno na Europa, a astrologia não se encerra em territórios. Apenas no concernente às teorias astronômica e psicológica, a astrologia possui endereço fixo: a Europa. Mas, na qualidade de mitologia, a astrologia, ao transcender lugares, circunstâncias e pessoas, alcança outras culturas. O arquétipo conserva uma linguagem universal, capaz de se expandir e de plasmar diferentes formas. Sendo assim, reconheço no orixá iorubano Oxum um arquétipo libriano capaz de traduzir funções instintivas e inconscientes da psique coletiva de um modo equivalente ao de Vênus/Afrodite.
Como funciona o arquétipo Vênus/Oxum? Nas mulheres, expressa-se como instinto feminino; já entre os homens, dotados de instinto feminino interior, que é sua sombra, expressa-se como anima. Homens e mulheres estão carregados de Vênus/Oxum na forma coletiva da psique e, em especial, os nativos de Libra. Ou então quem possui Vênus/Oxum em alguma casa do mapa astral será conduzido por esse instinto, principalmente se estiver em conjunção com o Ascendente. Vênus/Oxum se apresenta em ambos os sexos imprimindo os seguintes traços: a partilha com o Outro, o encantamento, o gosto pelo Belo, a reciprocidade, a sutileza, mas também frivolidade, superficialidade, imparcialidade e dependência do Outro.
Vênus é conhecida por ser a deusa do Amor e da Beleza. Nasceu por ocasião da castração de Urano, seu pai, quando seus testículos foram cortados e lançados ao mar. Vênus veio do céu e cresceu no mar borbulhante, tanto que seu nome, em grego, é espuma [afros]. Do mar subiu aos céus novamente e foi se juntar aos deuses do Olimpo. Por isso, sua natureza se mescla ao encanto das águas, meio físico que envolve e acolhe, sem se restringir a isso; também tem sua morada no plano celeste, onde desempenha um papel idealizador e estranho à realidade.
Apaziguadora, amante da harmonia e do equilíbrio, Vênus é alheia ao instinto masculino da guerra e da força bruta. Jamais apela pela desordem. No entanto, foi com Marte, o guerreiro, que se deitou e deu à luz a Cupido/Eros. Desse modo, contíguo ao arquétipo de Vênus está o erotismo, que é a união com o Outro de uma maneira sentimental e sexual. O conluio com Marte, na verdade, é produto da traição de Vênus, que enganou o marido Vulcano. Razão que nos dá a entender que Vênus, além de atraente e sedutora, também é infiel e volátil.
No entanto, estamos falando da Vênus Pandêmia, a “venerada por todo o povo”, que era fértil, porém vulgar[6]. A Vênus Urânia, contemplada por Platão no diálogo O Banquete, já inspira outra particularidade do arquétipo, que é o amor idealizado, que prefere a forma transcendente do amor ao amor carnal. Essa Vênus se acha mais próxima do equilíbrio racional exigido na relação eu-outro, e interessada em construir uma parceria ideal, um nós, do que a Vênus que apenas se liga ao outro movida pela passionalidade do corpo.
Oxum [Osun] é o orixá da Beleza e do Equilíbrio. Verger traçou-a como divindade “bonita, dengosa e vaidosa” que gosta de se exibir em “panos vistosos” e “joias de cobre[7]”. Filha de Iemanjá, também deriva das águas do mar, como Vênus; por isso, espelha a mais translúcida beleza. Reina na água do doce dos rios, sendo graciosa, límpida e fresca. Mas de temperamento instável, equilibra-se entre a candura e a fúria. Quando não está serena, está em torvelinho, alternando pontos de estabilidade que se situam entre a terra firme e a fluidez da água.
O poder feminino contido em Oxum está no instinto do autocuidado, na afirmação constante de seus poderes de encantamento e de magnetismo; ela precisa ser reconhecida pelo olhar do Outro nas qualidades que a tornam única e desejável. Por isso, o espelho [abebé] é um de seus objetos simbólicos, posto que reluz a beleza exterior, envolvendo o ambiente, tornando-o agradável, formoso, artificial e dourado, já que o ouro é um dos metais por ela regidos.
O bloco instintivo Vênus/Oxum extravasa no ego libriano pulsando um inconsciente feminino, ainda que Libra seja signo masculino, tal como os irmãos aéreos (Gêmeos e Aquário). Em cada homem, o instinto Vênus/Oxum aparece como sombra feminina que pulsa por debaixo da camada superficial masculina. Sendo o homem nativo de Libra, ou com um mapa repleto de planetas importantes em Libra ou posicionados na casa 7 (a casa equivalente à Libra), o feminino interior revelará uma psique coletiva que anima os homens a agir tal qual Vênus/Oxum: com delicadeza, senso de equilíbrio, moderação, vaidade, futilidade e carência do Outro, incitando-os na busca de parceiros que os preencham, esforçando-se para encontrar uma unidade entre o ideal e o real, conciliando as diferenças entre o céu e a terra (Vênus) e a terra e a água (Oxum).
Por fim, Vênus/Oxum exprime-se na mulher libriana, ou na carregada de planetas em Libra ou na casa 7, não como sombra, mas como consciência. A não ser que Lua (que é atividade inconsciente) esteja em Libra ou que Libra esteja nas casas 12 ou 8 (casas inconscientes). Na mulher com tais posicionamentos, o arquétipo libriano é tão peculiar quanto nos homens, manifestando-se coletivamente no caráter de diversas pessoas. Daí é que vimos a cada dia uma ou outra mulher frisar a necessidade de embelezamento do corpo, usando inúmeras estratégias de encantamento para atrair o Outro, como forma de criar laços e de provar seu valor.
[1] Disponível em: 20 citações de Carl Gustav Jung sobre astrologia – Astrologia (cubanfoodla.com). Acesso em 08 de outubro de 2022.
[2] KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Col. Os Pensadores. Trad. Valerio Rohden e Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Nova Cultural, 2005.
[3] JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Trad. Dora Mariana Ferreira e Maria Luiza Appy. 2ª edição. Rio de Janeiro: Vozes, 2000, p.53.
[4] Idem, p.54.
[5] Idem, ibidem.
[6] BURT, Kathleen. Jung e a astrologia. Trad. Euclides Luiz Calloni e Cleusa Margô Wosgrau. São Paulo: Pensamento, 2022, p.262.
[7] VERGER, Pierre Fatumbi. Lendas africanas dos orixás. Trad. Maria Aparecida da Nóbrega. 4ª edição, 1997.
Que linda e transcultural reflexão. Adorei.