A Terra dança. Em torno de si e dentro de si o que de melhor realiza é mover-se, daqui para lá e de lá para cá, no imenso palco do universo. Longe de cogitar a possibilidade de algum deus supremo outorgar o poder de coreografar esse movimento geológico, reafirmo que a Terra é dotada de potência dançante e que nós, que pisamos nesse chão ancestral, integramos o corpo de baile de tão belo e insondável espetáculo, sem ao menos nos darmos conta disso. É mais ou menos como na canção dos Novos Baianos: se você fecha o olho, a menina (a Terra) ainda dança.
A verdade é que as placas tectônicas, os grandes blocos que desenham a crosta da Terra, se movem desde tempos imemoriais. Aproximadamente 300 milhões atrás, a Pangeia – que foi o encontro colossal de todos os continentes que hoje conhecemos em separado – se fragmentou em vários pedaços e, recortadas pelos oceanos, as massas de Terra ficaram à deriva, cada uma independente da outra. O geólogo e meteorologista alemão Alfred Wegener, que cunhou o termo Pangeia, considerou a hipótese desse fenômeno a partir de um fato curioso: havia uma similaridade geométrica entre a costa do continente africano e a costa do continente americano.
Os dois continentes, América e África, pareados a partir da radical fratura ocorrida pelo movimento geológico, comparados pela linha que os separa, indicam, a bem dizer, mais proximidade do que distância, mais familiaridade do que estranheza. No plano físico, América e África, demonstram-se dotados de litorais que são perfeitos em seu encaixe, embora pareçam dois mundos bem distintos, tanto por seus climas quanto por suas paisagens. No entanto, o plano que nos interessa na abordagem do presente artigo difere do geográfico. Ocupamo-nos do plano cultural, do qual é possível extrair a ideia contida no conceito de Pangeia, ou seja, de que há uma totalidade que engloba esses blocos de terra e o que os torna únicos e inseparáveis.
Se no plano físico América e África se encontram apartados na forma de continentes, no plano cultural, por outro lado, podemos sem dificuldade falar em aproximação. O ponto de partida de nossa reflexão toma como exemplo o material expressivo que a África legou ao Brasil, como produto direto do encontro de placas tectônicas. Se quisermos enumerar o extenso material que surgiu do contato continental efetuado entre África e Brasil, nos perderemos em referências que vão da capoeira ao jongo. A título de pesquisa escolhemos abordar a Umbigada.
A umbigada é uma manifestação artística que, no Brasil escravista, mais precisamente a contar do século XVII (período no qual se registram as primeiras criações artísticas afro-brasileiras), veio à lume através do povo negro. Em termos técnicos, a umbigada é expressão combinada, visto que resume dança e música. Como a dança é necessariamente condicionada pelo ritmo (especialmente a dança popular), termina sendo, por consequência óbvia, dependente da música. Daí a umbigada manifestar-se a rigor como cadência percussiva.
Comandada por quatro instrumentos que são o tambu “espécie de tambor feito de tronco oco de árvore”, o quinjengue, “um tambor mais agudo quefaz a marcação rítmica do tambor e nele se apoia”, as matracas, “que são os paus que batem no tambu do lado oposto do couro” e os guaiás, “chocalhos de metal em forma de cones ligados”, a umbigada toma partido do espaço enquanto sonoridade[1]. O batuque promovido pelos instrumentos ecoa e seduz, provocando na audiência vontade imediata de não se limitar apenas a ouvir o batida do tambor.
Aquele que ouve é aquele que participa, que não fica incólume à cadência percussiva. Característica comum aos toques de tambor africanos é a irresistível vontade de acompanhar o ritmo com o corpo inteiro. É preciso, além de sentir as pancadas rítmicas, cantar e dançar. Chama-se, então, batuqueiro todo participante da umbigada, mesmo aqueles que não dominam nenhum instrumento. Logo, a umbigada não se completa se não promover movimentação do corpo. O quinjengue ritma, o tambu incendia e o que se vê são corpos negros dispondo-se em duas fileiras, uma de homens e outra de mulheres, envolvidos com a matéria vibrátil da música.
Além do comando rítmico dos instrumentos, há também na umbigada o comando do modista que é o batuqueiro solista. Este evoca o canto através do que chamam de décima. A décima é uma estrofe curta, uma quadra de versos que o batuqueiro canta incitando nas duas fileiras de participantes a mesma vontade. O canto do modista é respondido pelos demais, que repetem a linhada dupla de versos; e, quando essa se firma na memória, e todos harmonizam no coro de vozes, então outro movimento entra em jogo, além do canto e da música.
A fileira formada pelos batuqueiros homens encabeça a coreografia configuradora da dança de umbigada. Portando e chocalhando as guaiás nas mãos, eles avançam até a fileira das mulheres, saudando-as com alguma reverência. As mulheres os recebem com outra reverência. Depois dessa introdução, os batuqueiros homens inclinam seus corpos para frente, e, no ritmo do tambu, giram em torno de si, erguendo os braços e os guaiás, para em seguida avançarem na direção das mulheres, mas agora com o propósito de chocar os respectivos ventres.
Na dança, homens e mulheres se encontram e efetuam a semba, ou seja, o giro em torno do umbigo, em princípio como dança ritual de fertilidade. Mas, acima de tudo, a umbigada era dançada para matar a “fome da alma”, para anuviar a dor da lavoura, da chibata, da humilhação e da expatriação[2]. Está contida na umbigada, além do sentido biológico que avulta a fecundidade latente do povo negro, o sentido político e social; posto que, ao dançá-la, o negro festejava sua negritude e superava “a angústia de sair de caos”, de manter-se vivo e orgulhoso de si e de sua raça no meio da violência de um sistema colonialista que o invalidava e o oprimia[3].
A umbigada, conhecida também por caiumba, é legítima representante da matriz étnico-linguística bantu. A cultura bantu se estende pelo território africano, percorrendo desde o solo subsaariano até o sul do continente. Com a migração das massas humanas usadas como mão de obra escrava para a América, o bantu ampliou seu domínio e influência. O Brasil recebeu um quantitativo expressivo de negros que interferiram de modo considerável na formação do povo.
Foi graças ao pioneirismo do estado de São Paulo que a umbigada emergiu no Brasil como manifesto artístico e político. Nas senzalas que ocupavam os engenhos de açúcar da região do Tietê, de Capivari e Piracicaba, os senhores fazendeiros encontraram um modo de aliviar as tensões entre os negros revoltosos: permitiam que os escravos dançassem nos terreiros, ainda que a Igreja os recriminasse julgando a semba como pecaminosa. Mas, como vimos, a dança guarda mais significância política e social do que outra coisa; portanto, interessava ao negro manter viva aquela manifestação espontânea, firmando ainda mais os laços entre África e Brasil.
A umbigada pode ser vista como expressão do movimento que visava unir aquilo que estava separado. Em estrito sentido, umbigo [uno=um] + [bigus=bebê] é o fruto unido à mãe, o rebento que não é parte, mas o todo de um ser que o concebeu, o nutriu, o protegeu e o amou. O signo definitivo dessa união é o cordão, a extensão de pele, o fio que, mesmo cindido no corte do nascimento, se mantém de um modo metafísico vinculando ainda a mãe e o filho; ou, no caso da umbigada, vinculando a matriz, a pátria, a terra originária, ao fruto, ao descendente.
Quando um umbigo encosta no outro, homem e mulher querem bem mais que fertilizar novos corpos para perpetuar a espécie. Dança-se a umbigada para realinhar as partes que, em tempos idos, foram fraturadas com a deriva continental. Antes, os blocos eram agrupados em um continente ilimitado, sendo que, por força do próprio dançar da Terra, se viram dispersados. As massas humanas se isolaram na África e na América, forçadas a cultivarem valores como se fossem células alienadas do todo, como se algo as emancipasse de uma ideia global de cultura.
Veio, porém, a diáspora negra trazendo africanos para o Brasil, que incorporaram a nova terra como se fosse o cordão umbilical perdido. A dança foi uma das maneiras inteligentes que o corpo negro encontrou para seguir o fluxo das massas de terra, sem que olvidasse que o ventre está conectado a outro território, que a matriz é africana, ainda que assentada em solo sul-americano e brasileiro. Por essa razão, a umbigada é uma espécie de dança pangeica, de gestual ritual e celebrativo do Todo, que se esforça em aproximar os ventres, com vistas a unir-se ao outro, tornando o eu uno com o outro, e todos unidos entre si, por meio de uma matriz única e indissolúvel. Vale frisar que na Pangeia não há diferenças que segmentem os tipos humanos a partir de raças; existe apenas uma única raça que preenche o imenso espaço de terra.