Conhecida por conta da luta em meio às remoções da Vila Autódromo, na Zona Oeste da cidade, no período do ciclo olímpico da Rio-2016, Dona Penha, de 59 anos de idade, é um daqueles exemplos que mostram que muitas pessoas não nascem militantes, mas tornam-se. Um pouco da história dela será contada aqui nessa nova matéria da série Gente do Rio.
Paraibana de Itabaiana, Dona Penha chegou ao Rio de Janeiro em 1975. Foi morar na Rocinha, quando a favela não tinha nenhuma estrutura. “Eu, minha mãe, minha avó e meu irmão morávamos numa banda de barraco. Era metade de um barraco mesmo. Para buscar água, eu tinha que descer o morro todo até uma bica, conhecida como Bacia das Almas, que ficava onde hoje existe uma estrutura do metrô de São Conrado”, lembra.
Nessa época, Dona Penha trabalhou como doméstica em casas da Zona Sul, entre outros empregos. Mas o trabalho que marcou mesmo a vida dela foi em uma lanchonete. Na Rocinha mesmo. Foi lá que ela, com 16 anos de idade, conheceu Luiz, seu companheiro até hoje.
Jovens, eles casaram e fizeram uma outra residência, um pouco maior, também na Rocinha. “Eu gostava dessa casa, mas ainda não era a casa que eu queria“, conta Dona Penha.
O tempo foi passando, as responsabilidades aumentando. Dona Penha e Luiz investiram o pouco dinheiro que tinham em um terreno próximo à Praia de Pedrinhas, em São Gonçalo. Os dois estavam animados com a mudança, poderiam construir uma casa maior, próximo à natureza, do jeito que ela sonhava.
No entanto, quando estavam se organizando para mudar, descobriram que haviam sido vítimas de um golpe. Perderam o dinheiro. Não havia terreno na Praia de Pedrinhas. O suposto vendedor sumiu.
Ainda na Rocinha, o casal seguiu construindo a vida, tiveram uma filha. Um dia, já nos anos 1990, surgiu a oportunidade da compra de um novo terreno. Desta vez em Jacarepaguá. Próximo ao antigo Autódromo.
“A gente ficou com receio. Vimos o anúncio no jornal, mas como já tinha acontecido a história do terreno da Praia de Pedrinhas, a gente ficou meio em dúvida. Mas quando nós chegamos lá para ver o lugar, gostamos muito. Espaço bom, muito verde, a lagoa ali perto. Vendemos a casa na Rocinha e compramos essa terra em Jacarepaguá“.
A mudança aconteceu em 1994, durante a Copa do Mundo de futebol. No dia nove de julho. Brasil e Holanda estavam jogando. “Eu lembro do Luiz vendo esse jogo“, sorri Dona Penha.
Mudaram. “Construí a casa dos meus sonhos. Muito espaço, árvores, minha filha andava de bicicleta no quintal”, recorda Dona Penha frisando que logo começaram a ouvir histórias de que as casas próximas ao antigo Autódromo de Jacarepaguá seriam removidas.
As histórias sobre remoções se repetiram por anos. Até que, em 2013, começaram de fato as ações da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro para retirar as casas vizinhas do que viria a ser o Parque Olímpico dos Jogos Rio-2016.
“Para você ter ideia, quando começaram a remover mesmo os moradores aqui, tinha gente com material de construção guardado, porque tinham medo de construir e derrubarem, de tanto que eram histórias de remoções que iriam acontecer aqui”.
Entre reuniões, promessas não cumpridas por parte do Poder Público, ações que terminaram em violência contra os moradores da Vila Autódromo, Dona Penha resistiu para manter a casa dos seus sonhos de pé. Foram anos nessa luta. Todos os dias.
“Eu e Luiz nunca fomos militantes nesse sentido. A gente era do social. Eu fazia coisas na igreja, ele tinha projeto de futebol para crianças, mas a situação foi levando a gente para esse lado da luta por moradia. No início, a Prefeitura tinha falado que só uma parte da comunidade seria removida e o restante urbanizada. Mas depois a conversa mudou. Nós apresentamos para a Prefeitura um plano nosso de urbanização, porque eles disseram que se a gente apresentasse isso, a maior parte da Vila Autódromo ficaria no lugar. Só que nada adiantou e começaram a derrubar tudo“, relatou Dona Penha.
Ela lembra bem do dia em que perdeu sua casa: “Foi oito de março de 2016. Dia da Mulher. Ali, tentaram me derrubar também, mas não conseguiram. Eu estava numa ação na Câmara dos Vereadores e quando veio a notícia de que tinham derrubado minha casa, no dia da mulher, com a gente resistindo todo aquele tempo, passando por tantas coisas, deu uma repercussão grande”.
Com a casa derrubada, muita violência das forças de segurança do Poder Público, Dona Penha, Luiz e as outras famílias que resistiram chegaram a dormir em containers. Por um momento, foram 30 famílias nessa luta, mas a Prefeitura conseguiu convencer 10 a desistirem de ficar na Vila Autódromo. A mesma Vila que chegou a ter mais de 500 residências.
Há uma foto, que ficou bastante conhecida, que mostra Dona Penha com o nariz sangrando em uma das ações da Prefeitura para retirar os moradores que ainda resistiam na Vila Autódromo. “Esse foi um dos dias mais tensos aqui“, ela rememora.
Após toda essa luta, 20 casas foram construídas para as famílias que resistiram na Vila Autódromo. Fui encontrar Dona Penha, para gravarmos a entrevista, na casa dela. Ela preferiu conversar na Igreja de São José Operário, que fazia parte da comunidade da Vila Autódromo e acabou não sendo derrubada pela Prefeitura da cidade do Rio. Quando saímos do quintal, Dona Penha fechou o portão e falou para a cachorrinha da família “toma conta da casa pra gente“.
No caminho, Dona Penha mostrou onde era sua antiga casa. Ela lembra com detalhes não só da residência dela, mas também de antigos vizinhos. O espaço onde ela morou, hoje em dia, só tem uma pista para poucos carros acessarem a lateral do hotel ao lado do Parque Olímpico e muito mato.
Onde ficava a frente e a parte de trás da antiga casa de Dona Penha
Conversamos por quase duas horas na igreja. Do lado de fora, em um banquinho de praça, Luiz dava uma entrevista para um estudante de mestrado de Portugal. O tema? As remoções e os grandes eventos. O casal virou símbolo dessa luta por pertencimento, por amor a um lugar, por direito à moradia. “A luta por uma casa acabou virando a luta por uma cidade“, me disse Dona Penha.