“É outra criança”. Essa frase foi dita algumas vezes por Janaina Gomes, moradora do Complexo do Alemão, Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, ao falar com a reportagem do DIÁRIO DO RIO sobre os resultados do tratamento com Canabidiol pelo qual sua filha, Ysis Gomes de Souza, de sete anos de idade, está passando há cerca de um ano. Ysis tem paralisia cerebral e faz uso de Maconha Medicinal para controlar crises de epilepsia.
Aos 11 meses, Ysis teve o primeiro ataque epilético. Por toda sua vida, a pequena precisou conviver com essas crises e nos últimos seis anos foi submetida a quatro remédios diferentes.
“No início, esses remédios controlavam as crises, mas iam parando de fazer efeito e as crises voltavam. A Ysis tinha muitas crises. Quando começava os remédios novos, minha filha sofria com efeitos colaterais, como dormir por muito tempo, por exemplo”, conta Janaina.
Em meados de 2022, Janaina recebeu em sua casa Rafaela França, também mãe de uma menina que faz uso de remédio à base de Cannabis. “Em meia hora aqui, a Rafa viu a Ysis ter umas quatro crises seguidas. Aí, ela me falou que não poderia ser assim, que ela iria me ajudar a conseguir o canabidiol para ajudar minha filha“.
E conseguiu. Rafaela, à frente do projeto Núcleo de Estimulação Estrela de Maria (Neem), que fica no Complexo do Alemão, auxilia mães que moram em favelas do Rio de Janeiro na busca por remédios feitos com Cannabis – que são muito caros. Em média, no Brasil, esses medicamentos custam entre R$ 250,00 e R$ 500,00 por frasco.
Há quase um ano fazendo uso do remédio à base de Cannabis, Ysis praticamente não teve mais crises epilépticas.
Vídeo: arquivo pessoal
De acordo com dados da pesquisa Plantando saúde e reparação: o uso terapêutico da maconha nas favelas do Rio de Janeiro, realizada pela Movimentos, uma organização de jovens favelados e periféricos que usa a educação, a comunicação e a arte para combater o racismo, as agressões e as desigualdades nas favelas, pais e mães negros com renda menor que um salário mínimo são os que mais buscam o acesso à Maconha para o tratamento terapêutico de seus filhos. A maioria (68%) das pessoas precisa pagar pela substância ou recorrer a doações de ONGs (32%).
“Enquanto pessoas brancas ricas e de classe média garantem uma melhor qualidade de vida para os seus filhos com acompanhamento médico, amparo judicial e informação, famílias pretas e moradoras de favela enfrentam diversas barreiras para conseguir essa substância. Essas famílias convivem constantemente com o medo da criminalização, violência e repressão associadas ao uso. Nem mesmo quando recebem prescrição médica as pessoas estão a salvo da violência estatal”, frisa Jéssica Souto, coordenadora da pesquisa.
Jéssica Souto na sede da Movimentos. Foto: Daniel Martins
O levantamento, realizado em dezembro de 2022 com moradores de favelas cariocas – especialmente Cidade de Deus e os Complexos da Maré e do Alemão -, traz o perfil de quem faz uso terapêutico da maconha e de quem deseja acessar os benefícios terapêuticos da substância.
Maria Antonella, filha de Rafaela França, também moradora do Complexo do Alemão, faz uso de remédio à base de Cannabis para tratar autismo. “Não foi fácil e não está sendo fácil, mas sabemos que estamos no caminho certo, nenhuma família merece passar por todo sofrimento em busca de uma de tratamento e qualidade de vida. Estamos aqui para lutar pelos direitos das nossas crianças, suas famílias e a população periférica que precisa tanto de apoio”, afirma Rafaela.
Ainda segundo o estudo promovido pela Movimentos, a principal condição de saúde tratada com o uso terapêutico da Maconha em pessoas que vivem nas favelas do Rio de Janeiro é o espectro autista (52%).
A consultora canabinoide Fran Assis, através do Coletivo Reparação Social-Histórica e Acesso (RSHA), também ajuda pessoas com baixo poder aquisitivo que precisam fazer uso de medicamentos feitos com Maconha. “Nós fazemos a mediação para que as associações que têm autorização judicial para produzir os remédios à base de Cannabis no Brasil possam fazer essas doações. As associações produzem e nós fazemos o atendimento da população preta, pobre, parda, indígena, de favelas e periferias com triagem inicial, encaminhamento para consultas médicas gratuitas e conseguimos levar esses medicamentos para quem precisa e não pode pagar por eles”, detalha Fran.
Fran Assis. Foto: Daniel Martins
Em parceria com o Coletivo RSHA estão as associações Divina Flor (Mato Grosso do Sul), Flor da Vida (Franca/SP), Cannab (Bahia), AbraRio (Niterói/RJ), Humanitária Canábica do Brasil e Apepi, ambas na cidade do Rio de Janeiro.
No último dia 26/06 aconteceu na Câmara Municipal do Rio de Janeiro uma audiência pública sobre o uso terapêutico da Cannabis para crianças. Fran Assis e Rafaela França estavam presentes.
“A Cannabis já é regulamentada para fins terapêuticos em vários países. Muitas famílias buscam neste tratamento a possibilidade de melhoria da qualidade de vida de crianças e adolescentes. É muito importante a difusão de informações sobre o tema, garantir que o acesso e o tratamento sejam oferecidos pelos SUS”, declarou a vereadora Luciana Boiteux (Psol), que preside a Comissão Especial da Cannabis Medicinal da Câmara do Rio.
André Barros, advogado atuante nas pautas ligadas à Maconha, também foi à audiência pública realizada na Câmara de Vereadores do Rio. À reportagem, ele afirmou que: “Essa distribuição de óleos feitos com Cannabis que está acontecendo nas favelas do Rio de Janeiro é muito positiva. Porque sabemos que esses mais de 500 medicamentos quando vêm importados para o Brasil, com autorização da Anvisa, são caríssimos e a maioria das pessoas pobres não pode pagar. O remédio já é totalmente acessível para quem é rico aqui no nosso país. Então, esse movimento nas favelas é altamente positivo. É uma questão de justiça. Caso contrário, é só racismo contra a população pobre dessa cidade, criminalizando a Maconha e as pessoas que vivem nas periferias e favelas do Rio, fazendo essa guerra às drogas que sabemos que não é às drogas. Se o sistema quisesse combater o tráfico iria no artigo 36 que nem inquérito nem investigação tem na cidade do Rio de Janeiro. O que acontece na favela não é combate e repressão ao tráfico. É só racismo”.
A Cannabis é muito associada à violência no Rio de Janeiro. A pesquisa da Movimentos também toca nesse tema, que acaba virando uma grande questão: é remédio para salvar vidas ou é algo que gera tráfico e mortes? A análise mostra que das pessoas que guardam em casa maconha ou substâncias derivadas, 55,2% dizem sentirem-se seguros. Mas para 38,1% nem o uso restrito ao ambiente doméstico é capaz de tranquilizá-los.
Cartilhas feitas pela Movimentos. Foto: Daniel Martins
Alguns participantes afirmaram que usar o óleo da maconha – e não outra forma de uso – e ter prescrição médica e/ou autorização judicial para tal são fatores que os fazem sentir mais seguros. Outros, no entanto, afirmaram ter medo mesmo em posse dos documentos que autorizam a medicação.
A pesquisa de caráter quantitativo foi realizada através da aplicação de um questionário anônimo online semiestruturado, pela ferramenta Google Forms. As perguntas foram destinadas a moradores de favela que fazem ou querem fazer uso terapêutico da maconha. Ao todo, 108 respostas foram consideradas. As respostas foram reunidas em um banco de dados e, após sua sistematização, foram geradas tabelas e gráficos com os números encontrados e uma planilha com as respostas das perguntas abertas.
Lembram de Janaina e da Ysis, do começo da reportagem? Desde que passou a usar Canabidiol, a menina melhorou as questões motoras, consegue dar alguns passos com um andador e atende olhando quando é chamada. Nada disso acontecia antes do remédio. A mãe, que tem uma leoa protegendo a cria na foto de seu Whatsapp, não cansa de repetir que a filha é outra criança desde que começou a usar o medicamento à base de Cannabis.