Henrique Korman: As escolhas de Neymar e a crise cultural brasileira

Para colunista do DIÁRIO DO RIO, a figura de Neymar deve ser encarada como um dos grandes exemplos da nossa crise cultural

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Neymar em ação pelo Brasil contra a Sérvia pela Copa do Mundo 2022
Neymar em ação pelo Brasil contra a Sérvia pela Copa do Mundo 2022 - Foto: Lucas Figueiredo/CBF

Neymar surgiu como uma grande promessa. Aos 17 anos, já encantava o Brasil com a sua genialidade em campo, com gols antológicos e uma criatividade inesgotável.

Em pouco tempo, passou a ser uma referência nacional, se tornando uma grande esperança para toda uma geração, que almejava que seguisse a tradição vitoriosa do Brasil no esporte bretão, empilhando prêmios individuais, tendo destaque na Europa e levando o país ao tão sonhado hexacampeonato.

Ainda no Brasil, Neymar já ia além das expectativas. Ganhou uma Libertadores e Copa do Brasil com o Santos, foi premiado com o Puskas com o gol mais bonito do ano e teve a honra de estar no top 10 mundial no prêmio de melhor do mundo – algo que antes era alcançado apenas por jogadores em solo europeu.

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Foi então para Europa com status de realidade. De um grande jogador que já era a grande referência do país e que seria, em questão de tempo, melhor do mundo.

No início, cumpriu as expectativas. Ganhou títulos importantes com o Barcelona, como a Champions League e vários campeonatos espanhois, foi 3o melhor do mundo e, além do mais, liderou uma inédita medalha de ouro nas Olimpíadas em casa, marcando o gol do título no Maracanã.

Tudo indicava que Neymar, como imaginado, se tornaria ídolo e uma grande referência para toda uma geração, não só para defender o legado do país no esporte, mas também para levar adiante a criatividade, a magia e o jeito brasileiro de jogar futebol – que sempre encantou os fãs apaixonados – para o restante do mundo. Mas, sabemos bem, não foi o isso que aconteceu…

Será que a quebra desse processo se deve simplesmente às escolhas individuais de Neymar? Ou também refletem uma crise cultural brasileira? Ortega y Gasset talvez tenha essa resposta.

Esse filósofo espanhol dizia, no livro A Rebelião das Massas, que: “O homem não é nunca um primeiro homem: começa desde logo a existir sobre certa atitude de pretérito amontoado. Este é o tesouro único do homem, seu privilégio e a sua marca.”

Neymar então, ao longo da sua carreira, sabia o que estava construíndo. Ao encantar o Brasil com seus dribles, criatividade e gols antes inimagináveis, sabia que estava levando adiante o jeito brasileiro de jogar futebol. A genialidade de Pelé, as pernas tortas de Garricha, a magia de Ronaldinho e tantos outros que ajudaram a construir a imagem de uma país que sabe – e encanta – ao jogar futebol.

Inclusive, era evidente que Neymar sabia o legado que carregava quando chegou na Europa. Sabia que não era só um menino do interior de São Paulo que almejava ganhar dinheiro no maior centro futebolístico do mundo, mas sim um detentor de uma tradição futebolística valiosa, iniciada com Pelé, que poderia ser ainda mais potencializada.

Não à toa, ele começou a seguir esse legado. Carregava a responsabilidade de ser o 10 do Brasil e exaltava o seu “jeito moleque de ser”, rico em ambivalências, mas que no fim das contas potencializava o personagem acima de tudo representante do futebol brasileiro que estava vendendo ao mundo.

Mas, com o passar do tempo, Neymar foi se perdendo. Um pouco por questões internas, que inevitavelmente afetaram a sua construção como pessoa, mas sobretudo por uma questão externa, em que o seu potencial e legado passaram a ser colocadas à prova.

E isso não ocorreu apenas na Europa, nas mídias sociais e na imprensa esportiva, que passaram a tratar Neymar como “Cai-cai”, jogador pouco objetivo ou um eterna promessa. Esse processo aconteceu, sobretudo, em sua própria nação. Se Neymar era questionado, criticado e posto à prova diariamente no exterior, ele aqui sempre foi rebaixado, alvo de piada e questionamentos dez vezes mais.

E chegamos então no ponto central dessa reflexão: se Ortega y Gasset ressalta a construção de uma marca, de memórias, como o ponto central e mais valioso de um homem, isso passa por preservar tudo o que foi feito e levá-lo adiante, para que essa tradição seja mantida e possa ser cada vez mais fortalecida.

Logo, essa mentalidade passa, sem dúvidas, pela manutenção da história, de tradições e na possibilidade de segui-la adiante a partir de grandes referências. Fizemos assim com Pelé, Garrincha, Romário, Ronaldinho e tantos outros. Exaltamos suas perfomances, protegemos o seu processo como referência, afastamos de questionamentos e defendemos, com a melhor das intenções possíveis, o seu legado. E por que não fizemos o mesmo com Neymar?

Reafirmo: todo esse processo não exime Neymar de suas decisões, criticáveis e que podem ter motivações estritamente pessoais. Mas, acredito que pode sim simbolizar a nossa crise cultural.

Afinal, o que queremos construir como nação? Quais são os valores, elementos, linguagens

que o nosso país quer defender internamente e compartilhar com e para o mundo?

Em meio a uma crise, em que esses valores são questionados, esquecidos ou que carecem de manutenção, nossas poucas referências são subjugadas e, ao invés de se construírem como tal, passam a se assumir como cidadãos comuns, que constroem o seu caminho por simples desejos e necessidades individuais.

Neymar seguiu então esse caminho. Primeiro, em um campeonato sem tanto prestígio, como o francês, e um time em construção, em que se tornou a maior contratação da história, mas dificilmente poderia se potencializar como melhor do mundo e referência nacional. E agora, o estopim, com a transferência para o futebol árabe, no auge físico, por motivações estritamente financeiras e pessoais.

Neymar enfim assumiu o seu destino: não quis, por escolha própria, ser uma referência de uma geração no esporte mais querido do país. Mas, até que ponto nossa construção como sociedade não o influenciou a tomar esse caminho?

A figura de Neymar deve ser encarada como um dos grandes exemplos da nossa crise cultural. Que possa pelo menos ajudar a produzir uma reflexão profunda e necessária em todos nós: o que representamos, o que queremos preservar na nossa história e aonde queremos chegar como país? Quais são os elementos e tradições que irão nos auxiliar nesse processo?

Um país sem essas respostas claras é um país cada dia mais perdido e sufocado pelo curso da história. 

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