Tentei contato com Íris Lettieri, de 81 anos de idade, por mensagem de texto. Não tive resposta no primeiro momento. Dias depois, enviei outras mensagens falando do meu interesse em entrevistá-la para fazer um perfil que seria publicado no DIÁRIO DO RIO. Íris retornou com um “me dá um tempo, no momento estou ocupadíssima”. Dei um tempo e reforcei minha vontade de fazer a matéria sobre a trajetória dela. Não tive resposta. Já estava pronto para contar essa história aos moldes do jornalista estadunidense Gay Talese, que nos anos 1960 foi produzir uma reportagem sobre Frank Sinatra e não conseguiu entrevistar o astro da música. Então, ele ouviu as pessoas que cercavam o artista e publicou “Frank Sinatra está resfriado”, somente com informações de outras fontes que não o cantor. Contudo, não precisei recorrer ao já quase manjado recurso de Talese – um dos criadores do jornalismo literário. Tentei falar com Lettieri por mensagem de áudio e deu certo. Falei na linguagem dela.
Íris Lettieri, que por mais de 30 anos foi a “voz do Aeroporto do Galeão”, no Rio de Janeiro, me respondeu (por áudio) e marcamos a entrevista. Ela, considerada a voz mais bonita do mundo, ainda trabalha usando esse instrumento que a fez ganhar a vida desde muito nova: a fala.
“Eu sou de uma geração que as mulheres foram criadas para casar e ter filhos. Mas tive um pai muito inteligente, um homem à frente do tempo dele. Ele sempre me disse que eu tinha que ter uma profissão, porque quem paga, manda. Desde os 16 anos de idade ganho meu dinheiro”, lembra Íris.
Íris e os pais
Filha única do alagoano José Avelino da Costa, um ex-locutor da antiga Rádio Cruzeiro do Sul, e da potiguar Josélia Lettieri, uma professora de piano, teoria, harmonia, canto e dicção, Íris, carioca do bairro do Flamengo, começou a trabalhar com propaganda, em 1957. Foi também cantora, atriz, modelo.
“Ano de 1963. Num encontro casual com um dos diretores da TV Excelsior, sou convidada a assinar contrato como locutora comercial e apresentadora. Aceitei prontamente o convite e comecei a trabalhar. Fui vista então pelo diretor de Jornalismo, Fernando Barbosa Lima, e convidada a ser a primeira locutora de telejornal do país. Abri mercado para que muitas outras mulheres pudessem trabalhar nessa área da locução e isso me deixa muito feliz. Hoje temos mulheres narrando futebol. Eu [fala pausadamente] adoro ver mulheres ocupando os mais variados postos de trabalho. Mulher delegada, mulheres nas Forças Armadas, mulheres em todos os tipos de emprego”.
Em 1965, ela foi convidada a inaugurar a TV Globo, como locutora de telejornal ao lado de Hilton Gomes.
No ano seguinte, ” me chamaram para integrar o ‘cast’ de locutores noticiaristas da TV Tupi, na época, a maior rede de televisão do país. Nessa emissora, fico por onze anos, atingindo com o avanço da tecnologia (transmissão Via Satélite), projeção nacional”.
Com o advento da transmissão Via Satélite, a imagem de Íris chegou a todos os recantos do Brasil, dando início a uma série de viagens por todo o país apresentando os mais variados eventos, como: palestras, festas inaugurais, desfiles de moda, festivais de música, concertos sinfônicos, convenções e outros.
“Nesse período, minha vida se tornou uma verdadeira roda viva, não há tempo para nada. De segunda a sexta, apresento um jornal (Jornal Perspectiva) às 23 horas; à tarde, gravo publicidade para as maiores agências e produtoras do país, aos sábados, embarco num avião para os mais variados lugares do Brasil para apresentação de eventos; aos domingos, retorno ao Rio para participar ás 20 horas de um programa popular (Programa Flavio Cavalcanti), líder de audiência no país. Ao meu lado neste programa, profissionais como: Jornalistas, Danusa Leão e Sergio Bittencourt; Atrizes, Vera Fisher, Márcia de Windsor e Leila Diniz; Maestro Erlon Chaves, entre outros”.
Em dezembro de 1976, após pedir demissão da TV por conta de problemas na vida pessoal (três casamentos que não deram certo, por exemplo) e falta de privacidade, Íris foi convidada pela Infraero, então ARSA, para ser a voz oficial do Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro, o Galeão.
“Foi um trabalho que me deixou conhecida mundialmente, fui considerada a voz mais bonita do mundo neste período, sou muito grata pelo que aconteceu. E foi surpreendente, porque antes eu aparecia na TV e não houve essa repercussão toda. No aeroporto era só minha voz e foi muito marcante o sucesso que fez”.
Pergunto sobre a recente questão envolvendo mais ou menos voos para os dois aeroportos do Rio de Janeiro e Íris lembra que décadas atrás tentaram tirar todos os voos internacionais do Rio os levando para São Paulo, o que não deu certo. Por outro lado, ela lamenta nossa cidade ter tantos problemas que afetam até os voos que vêm para cá.
Apesar de toda a fama alcançada durante e após o trabalho no aeroporto, Íris Lettieri não considera esse o emprego mais importante de sua carreira. No entanto, ela não consegue apontar apenas um. Orgulha-se no geral, sobretudo por ter sido pioneira em quase tudo o que fez profissionalmente. Ela também é a responsável pela voz que escutamos nos BRTs do Rio de Janeiro. Próxima parada…
“Sou convidada a pedido do então prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, para ser a voz do BRT. Contrato este que abrangeu o período de 2012 a 2018. Um ano depois da assinatura do contrato com a BRT e após 37 anos como a voz de vários aeroportos, tais como: Foz de Iguaçu (Paraná), Guarulhos e Congonhas (São Paulo), Eduardo Gomes (Manaus), Antônio Carlos Jobim/Galeão e Santos Dumont (Rio de Janeiro), em Dezembro de 2013 meu contrato com a Infraero é rescindido. Fato que não me surpreendeu, haja vista a privatização já esperada e anunciada. Porém o destino sempre me reserva excelentes surpresas, a minha saída foi amplamente divulgada pela imprensa chegando ao conhecimento do Prefeito, ele então diz, que minha voz era uma marca da cidade do Rio de Janeiro e que merecia inclusive ser tombada como patrimônio imaterial. Portanto fazia questão da continuidade do meu trabalho junto aos novos administradores do Aeroporto Tom Jobim”, recorda íris.
A fama foi tanta que a banda de rock dos Estados Unidos Faith No More incluiu, sem permissão, a gravação da voz de Íris na faixa “Crack Hitler”. E ela processou os roqueiros. “Me falaram, aí comprei o CD, ouvi e mandei para meu advogado. A gravadora quem pagou a indenização na época”, conta.
Comunicar-se por áudios hoje em dia é algo bastante corriqueiro. Seja por mensagens ou até jornalisticamente, vide os podcasts aos montes por aí. Íris diz que não tem muita paciência para redes sociais e novidades digitais. “Eu não quero compromisso com nada que não queira fazer”, afirma.
Mas, com o que quer fazer, Íris Lettieri ainda tem muito compromisso. Em um estúdio montado dentro de casa, a “inesquecível voz do aeroporto” grava publicidades, textos literários e jornalísticos, material para a Internet e até votos de casamento. E entrega os pedidos em até 24 horas. “Amo meu trabalho e não penso em parar”.
A única dificuldade é ir a eventos por conta de uma hérnia de disco que dói quando passa muito tempo de pé. No mais, está tudo bem. “O corpo mudou, o rosto mudou. Mas a lucidez e a voz continuam as mesmas”, disse Íris.